Um ano ecoando vozes feministas para mudar o mundo

06/01/2022 |

Capire

Capire completa um ano de existência; confira o que compartilhamos e aprendemos com a resistência feminista internacional

Capire foi lançado em janeiro de 2021, com website e redes sociais próprios, a partir dos esforços da Marcha Mundial das Mulheres na construção de uma comunicação feminista e popular internacionalista. Passou apenas um ano, mas parece que foi muito mais. Organizamos conteúdos resultantes de décadas de lutas porque pudemos contar com a intensa participação de mulheres militantes da MMM e de organizações aliadas, como Via Campesina, Amigos da Terra e as envolvidas no projeto “Fortalecendo Feminismos Populares”. Assim, construímos coletivamente um portal com conteúdos em texto, áudio e vídeo das mulheres organizadas de África, das Américas, do Oriente Médio e Norte da África, da Europa, da Ásia e Oceania.

Capire, que significa “compreender”, trouxe para o debate as vozes, experiências e visões políticas de movimentos populares e feministas de todo o mundo. Aproximou, abriu fronteiras e fortaleceu referências das mulheres que estão em luta nas ruas, nas redes e nos roçados.

Para compreender os ataques do capital contra a vida pelas lutas das mulheres, nesse primeiro ano no ar, publicamos 153 materiais, entre entrevistas, textos de análise, vídeos, relatos de experiências e expressões culturais feministas de 43 países. Os desafios que o feminismo enfrenta em cada um desses lugares são específicos, porque partem de histórias, culturas, contextos e trajetórias particulares. Mas, no Capire, as aproximações entre as experiências vividas ficam evidentes. Mais que isso, elas indicam a necessidade de fortalecer o feminismo internacionalista e as estratégias da economia feminista como respostas antissistêmicas rumo ao fim do capitalismo patriarcal e racista.

Mulheres organizadas em todo o mundo lutaram em 2021 para sustentar a vida, enfrentar o imperialismo, a pobreza e a violência aprofundadas pela pandemia de covid-19, das investidas das transnacionais contra seus corpos, territórios e comunidades. Lutaram por soberania alimentar, pela paz e desmilitarização, por autonomia, por justiça climática e por uma economia feminista que coloque a vida no centro. Ao longo de 2021, Capire se consolidou como um instrumento para a construção desse feminismo popular internacional.

Organizamos imagens dessas lutas em quatro galerias virtuais. No 8 de março, lançamos uma reunião de 133 fotografias de mobilizações do Dia Internacional de Lutas das Mulheres. Em 17 de abril, Dia Internacional de Luta Camponesas, publicamos fotos dos acervos da Via Campesina, Amigos da Terra e Marcha Mundial das Mulheres que retratam o protagonismo das mulheres na construção da soberania alimentar. No 1º de maio,  lançamos uma galeria de cartazes sobre feminismo anti-imperialista para mudar o mundo, com participação de mulheres de 12 países e territórios a partir de chamado aberto, em parceria com a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) e a Jornada Internacional de Luta Anti-imperialista. E, em outubro, como parte da preparação para o 12º Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, recuperamos a memória de todos os encontros anteriores, com fotos e relatos das militantes que, há mais de duas décadas, constroem o movimento.

Um ano de resistências

Lançamos Capire em 6 de janeiro de 2021 apresentando caminhos das resistências feministas contra o colonialismo, os bloqueios imperialistas, as empresas transnacionais, o latifúndio, o racismo e a violência; e apontando também as alternativas para a economia feminista, a democracia e o poder popular, a soberania alimentar e a autodeterminação dos povos. Os passos das mulheres vêm de longe e as mobilizações, mais do que eventos pontuais, são parte de amplos processos de transformação das vidas e da sociedade. Compreender o mundo pelas vozes feministas é também conhecer os processos de construção de feminismo popular, como são a formação, a solidariedade internacionalista e a comunicação feminista.

Pensando nisso, buscamos alçar as vozes das mulheres organizadas de cada lugar para pautar, pela visão delas, os avanços e desafios dos processos de luta. Logo no início do ano, nos preparamos para grandes mobilizações no 8 de março em nosso primeiro webinário internacional, “Desafios do feminismo popular”, com a participação deYolanda Areas Blass (Via Campesina), Karin Nansen (Amigos da Terra) e Sophie Dowllar e Nalu Faria (Marcha Mundial das Mulheres). Para Nalu, “temos a mesma tarefa que as mulheres da Rússia em 1917 tinham quando iniciaram a Revolução Russa lutando contra a fome e contra a guerra”. No mês seguinte, nos encontramos de novo para compartilhar o balanço das mobilizações e as tarefas que identificávamos para organizar a resistência e a solidariedade feminista ao redor do mundo.

Em março, também celebramos a memória e as sementes de luta da liderança hondurenha Berta Cáceres. Publicamos uma transcrição inédita do discurso de Berta Cáceres na VII Oficina Internacional sobre Paradigmas Emancipatórios, realizada em Havana, Cuba, em 2007. Suas palavras foram publicadas em texto e em áudio no dia que marcou os cinco anos de seu brutal assassinato político. Seu legado se manteve vivo na luta do povo lenca, em Honduras, e também na Escola Internacional de Organização Feminista “Berta Cáceres”. A Escola reuniu 135 companheiras e companheires durante 3 meses. No Capire, acompanhamos e produzimos sínteses dos encontros quinzenais da Escola. Assim, ajudamos a registrar a memória e ampliar o alcance dos acúmulos desse espaço de organização feminista internacional, que segue como um processo de formação popular.

Segundo a militante indiana Archana Prasad, “quando o capitalismo e o fundamentalismo se unem, a combinação se torna extremamente fatal”. Para compreender as lutas contra esses sistemas imbricados, compartilhamos perspectivas sobre o golpe no Sudão e em Mianmar, os processos constituinte e eleitoral no Chile, a reivindicação por plurinacionalidade na Guatemala, as paralisações nacionais na Colômbia e as grandes greves camponesas na Índia, entre outros processos. Também articulamos as perspectivas críticas aos avanços do autoritarismo na Turquia, nas Filipinas e no Brasil.

O autoritarismo avança articulado à militarização, aos fundamentalismos e às guerras. A partir do feminismo internacionalista, estamos atentas e denunciamos a apropriação do discurso feminista de combate ao fundamentalismo por agentes da militarização, das guerras e das ocupações. A situação do Afeganistão e dos países fronteiriços a ele é exemplar.  “Depois que o assunto sair das manchetes, é aí que o trabalho árduo vai começar. É aí que nossas mulheres vão precisar de suas companheiras internacionais para erguer sua voz”, disse uma companheira Afegã durante entrevista ao Capire.

Na Palestina, a luta é permanente contra a ocupação imperialista de Israel, contra pobreza e a exploração. O povo palestino resiste diariamente à criminalização. Defendemos a liberdade de Khitam Saafin e o fim da perseguição às seis organizações defensoras de direitos humanos que foram inseridas na lista de organizações terroristas pelo Estado de Israel.

 Essas organizações estão comprometidas com a proteção e defesa da segurança, da liberdade e do direito de nossos povos de viver em uma sociedade justa em nossa própria terra

União de Comitês de Mulheres Palestinas [Union of Palestinian Women’s Committees

Alimentar o mundo

2021 também marcou os 25 anos desde que a Via Campesina propôs a soberania alimentar como princípio político não só das e dos camponeses, mas assumido pelos movimentos anticapitalistas que lutam por uma sociedade de igualdade. Capire publicou textos sobre a luta por soberania alimentar em todas as datas de ação comum dessa agenda. Para Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres, o princípio proposto pela Via Campesina em 1996, nos mostra como “romper a alienação sobre o que comemos implica pensar como o trabalho doméstico e de cuidados se organiza”. Também em preparação para o Dia Internacional de Luta Camponesa, Capire publicou uma entrevista com Pancha Rodríguez, da CLOC-Via Campesina, que contou sobre a história da construção do feminismo camponês e popular nas Américas.

A economia feminista é uma estratégia de construção de movimento. Na Ásia, é uma ferramenta das mulheres para garantir a soberania alimentar e a autonomia. Em 10 de setembro, dia de luta da Via Campesina contra o livre-comércio, convidamos Geum-Soon Yoon, da Associação de Mulheres Camponesas da Coreia, a compartilhar sua visão sobre os tratados de livre comércio que estão em disputa, hoje, no continente asiático.

Os movimentos populares colocaram com força a crítica à agenda corporativa imposta para o clima, a natureza e os povos que vivem nela. Enquanto acontecia a Conferência dos Sistemas Alimentares, denunciamos a economia verde, as falsas soluções baseadas na natureza e “o discurso que incorpora as mulheres e a agroecologia ao capital”. Afirmamos que “os negócios climáticos não são resposta para a crise climática”, colocando uma visão crítica sobre a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (COP26). Denunciamos a violação sistemática aos direitos humanos decorrente dos tratados de livre comércio e, especificamente, as ameaças da proposta de acordo entre União Europeia e Mercosul.

Contra as falsas soluções, propusemos que “a luta feminista por outra organização do trabalho e por uma relação harmoniosa com a natureza exige, também, uma transição justa do modelo energético“. Para Karin Nansen, da Amigos da Terra Internacional, “abandonar os combustíveis fósseis e as megarrepresas é uma necessidade urgente, mas precisamos também colocar, no centro da transição, os direitos de povos indígenas, trabalhadores e trabalhadoras, mulheres e comunidades. Uma transição justa precisa se basear em direitos. Precisamos garantir que a energia seja um direito, não uma mercadoria”. 

Elaine Campos, 2013

Por um mundo livre de racismo e LGBTfobia

Em junho, mês do orgulho LGBT, publicamos uma série de conteúdos sobre a presença das dissidências sexuais e de gênero nas organizações populares e sobre o enfrentamento feminista à heterossexualidade obrigatória. Para Paula Gioia, da Via Campesina, “os problemas que enfrentamos têm base no patriarcado e nas relações de poder, não naquilo que a natureza oferece”. No filme Rafiki, vimos a violência e o conservadorismo que as mulheres lésbicas precisam enfrentar para poderem viver e se relacionar como quiserem.

Em seguida, em julho, produzimos um conjunto de textos sobre as lutas das mulheres negras do passado e do presente, em África e nas Américas. M. Adams, dos Estados Unidos, publicou um texto sobre as conexões entre a transfobia, o capitalismo e o racismo, e propôs confrontar “violências e limites experienciados por pessoas dissidentes de gênero” e “mudar o que foi historicamente imposto a nós pelo sistema racista e patriarcal de opressão”. 

No Quênia, mulheres compartilharam suas experiências como guardiãs de sementes e da biodiversidade. No continente americano, um debate da Marcha Mundial das Mulheres reuniu militantes negras de dez países, e trechos de suas falas foram reunidos e traduzidos no Capire. Ao longo do mês, publicamos perfis sobre a trajetória de Argelia Laya (Venezuela), Marie Koré (Costa do Marfim), Mekatilili wa Menza (Quênia), Carlota (Cuba) e Tereza de Benguela (Brasil).

No Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, aprendemos com as companheiras da República Dominicana, país onde a data surgiu, sobre como semear agroecologia faz parte da defesa de uma vida sem racismo. O mês se encerrou com a publicação de um vídeo de saudação de Graça Samo, de Moçambique, no Dia da Mulher Africana.

O assunto seguiu em agosto, com uma entrevista (dividida em duas partes) com a professora ecofeminista Patricia McFadden. Para ela, “o feminismo deve se fundamentar no entendimento de que nós, mulheres africanas, lutamos por nossa liberdade ao longo dos últimos 500 anos de racismo e colonialismo”. O racismo e a LGBTfobia são parte estruturante do sistema econômico que rege nossas vidas. Lutar contra eles é, então, estruturante da luta feminista, todos os dias e todos meses do ano.

Por uma vida livre de violência

“A desigualdade é consequência do sistema econômico, social e político que predomina. A fome tem o selo do capitalismo”, disse a sindicalista galega Sonia Vidal durante nosso último webinário, em preparação ao Dia Internacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

Em África, mulheres enfrentam uma realidade que conecta violência patriarcal, usurpação de terras e criminalização. Desnaturalizam o casamento forçado e a gravidez indesejada. Resistem bravamente à violência, ao agronegócio e aos impactos da produção transnacional e do modelo do monocultivo. As mulheres filipinas compartilharam sua experiência de organização e apoio às sobreviventes da prostituição. “Nenhuma sonhava em entrar na prostituição, mas muitas coisas aconteceram conosco até  chegarmos a esse lugar”. Por todo o mundo, mulheres enfrentaram os desafios da pandemia de covid-19, que aumentou a violência doméstica e sexual e aprofundou desigualdades.

Trinidad Quintana Perlingieri, Argentina

A violência contra as mulheres tem múltiplas expressões e todas elas formam engrenagens do sistema capitalista, que é um sistema de guerra e de dominação. Quando enfrentamos a violência, afirmamos que queremos ser mulheres livres e povos soberanos! Pela desmilitarização de seus territórios, mulheres curdas, saarauís e palestinas permanecem na linha de frente, sustentando a vida e exigindo liberdade. Para as mulheres da Aliança Popular por Justiça Global [Grassroots Global Justice Alliance], a única solução para o militarismo e as ocupações norte-americanas é que deixem de existir.

Um outro mundo é possível

“A arte parte da nossa capacidade de imaginar e projetar situações diferentes daquelas que vivemos imediatamente”, nos disse Ana Chã. Em nossa seção de cultura, publicamos 12 conteúdos diferentes, a maioria com traduções inéditas, porque acreditamos que a arte e a cultura são, também, formas de transformação. “Poesia é uma libertação da alma”, nos ensinou a poeta sarauí Al Khadra. É como escreveu a escritora egípcia Nawal Saadawi: “a palavra não deve buscar agradar, não deve esconder as feridas dos nossos corpos, os momentos escabrosos de nossas vidas. Às vezes, a palavra nos choca e dói em nós, mas pode nos provocar a nos encararmos, a questionar o que aceitamos durante milhares de anos”.

Redação por Bianca Pessoa e Helena Zelic
Edição por Tica Moreno

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