Patricia McFadden: “Em 500 anos de colonialismo, mulheres africanas sempre lutaram por liberdade”

06/08/2021 |

Por Capire

Leia e ouça a entrevista com a ativista e pesquisadora feminista Patricia McFadden sobre nacionalismo de gênero e o poder do feminismo para a libertação das mulheres.

Capire conversou com a pesquisadora feminista Patricia McFadden sobre nacionalismo de gênero e o poder do feminismo para a libertação das mulheres em África. A entrevista está disponível em texto e, abaixo, em áudio (apenas em inglês).

Depois de décadas de experiência como pesquisadora e militante feminista, passando pela extradição em países que viveu e trabalhou, como Zimbábue e África do Sul, hoje Patricia vive e trabalha em Esuatíni, antiga Suazilândia. Essuatíni, hoje uma monarquia autoritária, foi colônia britânica até 1968. Vegana e ecofeminista radical, ela cultiva os alimentos que consome e, a partir dessa realidade, tem construído práticas de solidariedade e propostas de análise feminista, como a noção de contemporaridade (contemporarity). Conhecer essa trajetória evidencia como suas análises mesclam o pessoal e o político na crítica ao nacionalismo de gênero e nas propostas para construir e compreender o feminismo radical em África.

O feminismo é poderoso porque não é um evento que surgiu agora. Ele está incrustado nas memórias mais antigas da consciência humana sobre liberdade.

Antes de mais nada, você poderia nos contar sobre sua trajetória feminista? Como ela começou?

Eu costumava ir com meu pai da montanha até uma cidade grande chamada Manzini. Lá meu pai comprava suprimentos e eu comprava livros de segunda mão de uma britânica colonialista que vendia para arrecadar fundos para caridade. O humanitarismo está inserido no projeto colonial: eles tiraram todos os nossos recursos e depois levantam fundos para nos salvar pela filantropia. Comprei O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e uma obra sobre existencialismo de Jean-Paul Sartre. Não entendi nada do que Sartre estava dizendo, mas sei que Simone teve um impacto em minha consciência.

Minha mãe me obrigou a casar porque engravidei. Eu me divorciei depois de três meses e prometi a mim mesma que nunca mais voltaria a casar, e cumpri minha promessa. O catolicismo é muito forte aqui. Antes de entrar na universidade, participei de um programa de um ano nos Estados Unidos e conheci Angela Davis por meio de seus livros. Também conheci o trabalho de Frantz Fanon, particularmente Pele negra, máscaras brancas e, claro, Os condenados da terra, que revolucionou totalmente minha experiência com o pensamento radical e anticolonial negro. Até hoje, recorro aos trabalhos de Fanon, Cabral, Sankara e muitos intelectuais radicais negros cujas críticas ao colonialismo e ao capitalismo formaram as bases essenciais do meu pensamento – principalmente sobre o neocolonialismo e a persistência do neoimperialismo (a chamada globalização).

Então, lá pelos meus vinte anos, ingressei na luta pela libertação e abracei o nacionalismo como ideologia coletiva. Por muito tempo, fui uma feminista nacionalista, uma nacionalista que pensava as questões de gênero. Estou falando do nacionalismo enquanto resistência anticolonial, não a expressão europeia de nacionalismo que deu origem ao fascismo. Mas todas as formas de nacionalismo são expressões de uma ideologia que une um grande número de pessoas contra sistemas opressivos, dominantes, invasores. Fiz parte desse movimento por muito tempo, mas não me sentia à vontade. Estava tentando encontrar uma forma de fazer um trabalho crítico e costumava ficar à margem da comunidade de nacionalistas.

Quais são as origens do nacionalismo de gênero e quais são suas expressões hoje?

No Congresso Nacional Africano [African National Congress– ANC], principal movimento de libertação sul-africano, havia a esquerda radical ligada ao Partido Comunista e aos sindicatos. Eu estava situada no movimento sindical, que é um aliado do Congresso Nacional Africano. O ANC abarcava sindicatos, movimentos de juventude, grupos de mulheres e os comunistas.

Em meados dos anos 1970, fiz mestrado na Tanzânia, na Universidade de Dar es Salaam, e lá eles tinham todos os livros publicados pela Progress Publishers. Eu mal dormia. Só devorava aqueles livros. Ainda não tinha lido O Capital de Marx porque a obra era proibida na Suazilândia. Só muito tempo depois comecei a ler obras de mulheres negras como bell hooks, e graças a essas autoras meu feminismo ultrapassou as fronteiras das conceptualizações feministas europeias. Ainda adoto todas as formas radicais de feminismo, em parte porque comecei a me sentir incomodada pela restrição que o nacionalismo impunha, limitando-me às lutas do homem negro por liberdade e contra o colonialismo.

Neste continente, a persistência do feudalismo é devastadora para as mulheres negras. Como eu não era casada, não precisei fazer negociações com a heteronormatividade na esfera íntima e com o feudalismo enquanto instituição dentro da qual a maioria das mulheres africanas está situada. Por me situar fora dessa lógica, ainda hoje costumo ser tratada como aberração. Mas, quando olhava ao redor, podia ver que todas as mulheres que conhecia estavam profundamente infelizes e aterrorizadas, enquanto todos diziam que casamento era assim mesmo, que aquilo era o amor.

Quanto mais ativamente eu me envolvia no movimento das mulheres, mais minha consciência se expandia. Também tive grande influência de Audre Lorde e do feminismo negro lésbico. Eu insistia dentro do movimento de mulheres que tínhamos que aprender com as mulheres lésbicas e particularmente com as feministas negras lésbicas. A homofobia está em toda parte no mundo, e lidar com esse desafio se tornou insustentável no movimento de mulheres. Eu também questionava o papel da ONU [Organização das Nações Unidas] e como o nacionalismo estava moldando e definindo o feminismo. Não digo mais que sou uma feminista africana. Digo que sou uma ecofeminista negra que vive em África. Não quero associar meu feminismo ao nacionalismo.

Quando você fala sobre o Estado, aONU e o movimento de mulheres, isso pode estar relacionado ao cenário de hoje em que as Nações Unidas, em conjunto com as corporações transnacionais, estão impulsionando a máquina da exploração com um discurso de empoderamento feminino, certo?

Eu fazia parte do grupo de mulheres africanas que, nos anos 1980 e 1990, foram selecionadas para promover o diálogo sobre “mulheres e desenvolvimento”. Essa estratégia em particular foi conduzida pelos países escandinavos, e é interessante que a maioria de nós não se deu conta disso. Os escandinavos atuam de forma muito discreta no universo do capitalismo corporativo. Eles têm um rosto sorridente e sorriem até mesmo quando falam do capitalismo. 

Os escandinavos ficaram nos bastidores da indústria escravista por 200 ou 300 anos, já que construíam os navios que levavam os africanos ao chamado “Novo Mundo”. Eles investiram e criaram sem alarde empresas que saquearam a África, praticando a colonialidade de forma sutil, sob o radar. Foram eles que conduziram esse projeto de apropriação do gênero e de diluição do significado inicial de gênero, subtraindo todo o conteúdo político e a intensidade da questão.

As feministas sempre criam novas linguagens. A linguagem normativa não é adequada para expressarmos o que queremos expressar e fazermos o que queremos fazer. Se vocês forem às origens da noção de gênero, verão que ela vem das lutas das mulheres europeias em busca de palavras que correspondessem à nossa experiência com a hierarquização, a exploração e a subordinação. Virginia Woolf trata dessa necessidade de um léxico feminista em Um quarto só seu.O desafio era criar uma ferramenta que nos permitisse dissecar a realidade do patriarcado e explicar as relações de poder de novas formas que a linguagem normativa masculina não nos permitia. Falávamos sobre sexo, mas não tínhamos um termo que articulasse as relações de poder baseadas em gênero.

Logo a noção de gênero foi apropriada e a paixão, a energia e a ideologia feminista foram sistematicamente eliminadas. Passou a fazer parte do vocabulário das Nações Unidas e do Estado. Na África, a transversalização de gênero foi institucionalizada em projetos como Mulheres em Desenvolvimento [Women in Development], Mulheres e Gênero [Women and Gender] e Gênero e Desenvolvimento [Gender and Development].

Isso desvinculou da epistemologia feminista o gênero como ferramenta heurística de pensamento e o incorporou aos paradigmas liberais e neoliberais, tornando-o tecnocrático e inofensivo, sem qualquer impacto real na vida das mulheres. Essa liberalização do gênero também ocorreu na academia, onde você encontra “estudos sobre mulheres e gênero” e não “estudos sobre mulheres e feminismo”. Pessoalmente, nem falo mais sobre gênero. Quando falo sobre gênero, falo como uma ferramenta de pensamento, da forma como era inicialmente articulada pelas feministas. Eu o posiciono dentro da epistemologia feminista e então ele passa a ser uma ferramenta de pensamento radical.

Isso também foi feito com o conceito de classe. Se você considerar a história das classes como um conceito vindo da epistemologia de Marx, os europeus e os estadunidenses removeram o conceito de classe do marxismo e dos discursos da esquerda e o redefiniram como uma noção estruturalista. C. Wright Mills, um sociólogo estadunidense muito famoso, construiu sua carreira inteira sabotando o significado do termo “classe”, americanizando-o e despolitizando-o. É isso o que a direita faz. Agora estão se apropriando até mesmo do termo “ecologia, falando sobre ecossistemas corporativos, ecologia de empresas e descrevendo o empreendedorismo como um ecossistema.

Você também vê esse movimento de despolitização de conceitos com relação a raça?

Sim. Temos um exemplo perfeito disso na África do Sul. Sabemos que, por 400 anos, a raça foi utilizada de forma deliberada como mecanismo de violência e exclusão. Em 1994, os nacionalistas negociaram um acordo com os racistas e, de repente, raça perde as características históricas de ser utilizada como meio para excluir, vilipendiar, demonizar, escravizar e aterrorizar as pessoas negras. De repente, se você disser que um espaço é negro e se destina somente a pessoas negras, eles dizem que você é racista. Eles desconstruíram a noção e a história do racismo. Na África do Sul, a história da exploração foi completamente deslocada, e História deixou de ser matéria obrigatória nas escolas. Isso é assustador. 

Os brancos que continuam a se beneficiar do racismo como privilégio institucionalizado não se referem a si mesmos como africanos brancos, mas nos chamam de africanos negros. As formas como o neoliberalismo despolitiza e apaga nossas histórias de resistência são assustadoras. Ele nos dissocia dos legados que deveríamos proteger e mobilizar para dar continuidade à luta.

Para terminar, gostaríamos de te escutar mais sobre a participação das mulheres nas lutas anticoloniais e perguntar se falar dessas lutas é recuperar o passado feminista das mulheres africanas.

Contemporaridade [contemporarity] também envolve o resgate das jornadas que percorremos como mulheres africanas independentemente de onde estivermos. Essa conversa tem despontado aqui e ali nesta região. Participei de um diálogo com um grupo de mulheres na Universidade Nelson Mandela em que falamos sobre a recuperação da memória de lutas de resistência e o resgate da imaginação e da coragem das mulheres que resistiram. Em uma videoconferência recente na Universidade Estadual da Pensilvânia, falamos sobre o que chamamos de feminismo hoje, e como ele é uma expressão de todas as lutas em que mulheres do mundo todo se engajaram.

Somos nós que impulsionamos a energia da resistência e a luta por liberdade e justiça, porque somos as primeiras escravizadas na unidade familiar heteronormativa e porque lutamos contra o patriarcado desde o começo. Quando nos deparamos com o colonialismo, conhecíamos o monstro porque já o combatíamos há muito tempo.

É por isso que o feminismo é tão poderoso: porque não se trata de um evento que está surgindo agora. Ele está incrustado nas memórias mais antigas da consciência humana sobre liberdade. O instinto da liberdade já nasce conosco, e é esse instinto que alimenta a luta da resistência contra as tentativas de apropriação da nossa liberdade, que vivenciamos nas marcas e na mercantilização de nossos corpos. O feminismo deve se fundamentar no entendimento de que nós, mulheres africanas, lutamos por nossa liberdade ao longo dos últimos 500 anos de racismo e colonialismo.

Nós podemos gerar vida, podemos trabalhar, somos criativas, somos as primeiras matemáticas, as primeiras cientistas, as primeiras agricultoras, somos um verdadeiro tesouro. Assim que os homens se deram conta de como as mulheres são incríveis e cruciais para a geração de excedente e a recriação da produtividade humana, surgiu a noção de poder, exercida por meio da posse sobre os corpos das mulheres.

A unidade familiar heterossexual é o espaço de posse, vigilância, disciplina e encarceramento da mulher, ao mesmo tempo em que se apropria de nossas ideias e as recicla, usando-as para nos manter excluídas da via principal da trajetória humana. A resistência contra o patriarcado é a pedra fundamental do feminismo, e resgatar essas narrativas é crucial para sustentar o feminismo como um mantra político e pessoal e uma realidade vivida.

O movimento de libertação foi, para nós, uma oportunidade de romper uma longa história de lutas que travávamos sozinhas porque não podíamos acessar os espaços públicos dominados pelos homens. E então, finalmente, conseguimos trazer nossos legados de resistência à luta pública anticolonial. Agora precisamos consolidar nosso feminismo como o ápice das lutas para reconquistar nossa liberdade como seres humanos completos e autônomos.

Entrevista conduzida por Tica Moreno e Bianca Pessoa
Edição por Helena ZelicTradução do inglês por Rosana Felício dos Santos
Revisão da tradução por Aline Scátola e Helena Zelic

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