Colômbia, uma faísca do rechaço ao modelo neoliberal na América Latina e Caribe

13/08/2021 |

Por Laura Capote

Mobilizações, transformações e unidade são tarefas fundamentais para os movimentos sociais e para as forças políticas da região.

Marca, 2021

A afirmação de que estamos vivendo uma disputa na América Latina e no Caribe nunca pareceu tão atual. Neste 2021, vivemos uma série de mudanças e transformações que, agora, enchem de esperanças o futuro emancipatório do nosso continente. Esse processo mostra a validade do combate ao modelo neoliberal como condição de defesa da humanidade e do planeta, especialmente levando em conta a crise, agravada pela pandemia de coronavírus, da pandemia da desigualdade que nossos países já sofrem há mais de 30 anos.

Nossa história

Durante o final do século 20 e início do 21, vivemos, na América Latina e no Caribe, o avanço neoliberal de um lado, mas também o abalo sísmico de nossos futuros possíveis. A partir do surgimento de um movimento continental de soberania e independência liderado pelo Comandante Hugo Chávez sob o exemplo permanente da Revolução Cubana liderada por Fidel Castro, chegamos à criação da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) como uma articulação bolivariana dos Estados e, posteriormente, dos movimentos. Esse projeto de soberania nuestroamericana foi acompanhado pelo surgimento de governos alternativos que buscavam desenvolver projetos diferentes ao neoliberalismo e ao aprofundamento das desigualdades no âmbito do sistema capitalista.

A reativação das mobilizações antineoliberais é o coração dessa esperança. As diferentes medidas econômicas e sanitárias atingiram, sem dúvida, os setores mais pobres e negligenciados do continente. Os Estados foram esvaziados, sem capacidade para administrar uma emergência sanitária com as características atuais. O enriquecimento de um grupo cada vez mais seleto, que aumenta os seus cofres à custa da pobreza e da exclusão da maioria, põe em foco a insuficiência do modelo neoliberal. O neoliberalismo tem buscado tolamente oferecer falsas possibilidades de futuro por meio do consumo e do esforço individual, prescindindo do Estado e da organização social e coletiva.

Passamos pelo ressurgimento de lideranças de uma direita que, ao longo dos anos, se radicalizou em termos retóricos e políticos, forçando os limites da política ao absurdo de fazer discursos que acreditávamos derrotados e impossíveis de se repetir. Xenofobia, racismo, misoginia e homofobia estão na ordem do dia nessa nova cultura política neoconservadora. Eles implementam medidas imperialistas de velhos e novos tempos, como o lawfare[1], guerras híbridas e golpes de Estado, gerando até hoje fortes tensões a nível continental. É uma disputa pelo futuro continental que queremos para os povos e as grandes maiorias, frente aos interesses do imperialismo e seus satélites em nossa região.

O levante antineoliberal hoje

A partir de 2019, os povos da América Latina e do Caribe se levantaram de forma massiva para disputar esse cenário e apostar no futuro a ser construído. Assim, os países que não haviam participado desse primeiro movimento para cimentar uma nova era de unidade regional, dessa vez, tomaram a dianteira. Colômbia, Peru e Chile, que agora se levantam, foram os principais aliados históricos dos Estados Unidos na região, com modelos neoliberais de exportação invejados e defendidos pelas direitas do continente, que apontavam a necessidade de “ser parecido” com aquilo. Seus supostos sucessos econômicos nada mais eram do que uma bolha prestes a explodir, sustentada  nos ombros das classes populares cada vez mais precarizadas.

No caso da Colômbia, desde 2019 uma série de mobilizações massivas foram desencadeadas contra o governo uribista[2] de Iván Duque. Dando continuidade ao modelo neoliberal aliado à manutenção do conflito das características do colombiano, Duque aprofundou as condições de desigualdade e violência que o país já atravessava há décadas.

Destacamos que o governo Duque agiu com um aumento escandaloso da violência política contra milhares de líderes sociais do país. O envolvimento das forças paramilitares e sua conivência com as Forças Armadas do Estado desenvolveram uma política de extermínio contra qualquer pessoa que exerça algum tipo de representação política nos territórios e defenda o respeito pelos direitos das comunidades.

O Acordo de Paz de 2016 entre o Estado colombiano e as extintas FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo) contém inúmeras ferramentas para a democratização do país e para o acesso das comunidades camponesas aos direitos dos quais foram historicamente destituídas, e que o Estado se recusa a implementar. Desde a assinatura do Acordo, o aumento da violência política tem sido avassalador: de 2016 até hoje, são mais de 1.800 pessoas assassinadas por motivos políticos no país. O fato se agrava com a impunidade assegurada dos perpetradores armados e com a inação por parte de agentes do Estado que, em vez de investigar e condenar, fazem campanhas de difamação contra lideranças sociais, justificando seus assassinatos.

Somam-se a essa crise humanitária os números da violência policial que deixou centenas de  feridos e pessoas assassinadas. Em meio às inúmeras manifestações ocorridas desde 2019, as forças públicas reprimiram os manifestantes com armas e treinamento de guerra. Na última greve geral, que começou em 28 de abril de 2021, o Estado colombiano deixou o saldo de mais de 4.800 casos de violência policial, incluindo cerca de 70 pessoas assassinadas pela polícia no âmbito das mobilizações ou perseguições posteriores a elas.

Diversas expressões organizadas e autogestionadas do povo colombiano desenvolveram mobilizações exigindo modificações nas políticas econômicas e nos projetos tributários antecipados pelo governo Duque. Tais reivindicações se somavam ao esgotamento social devido ao nível de violência política no país onde o assassinato de líderes sociais e políticos passou a fazer parte da paisagem. Assim, uma greve geral se desenvolveu por mais de dois meses,  incluindo todos esses pontos de rejeição ao governo Duque e seus antecessores e exigindo profundas mudanças na estrutura política do país para priorizar a vida.

Marca, 2021

Inúmeras violações de direitos humanos foram cometidas, atos negados sistematicamente pelo Estado colombiano apesar de centenas de denúncias feitas por ONGs do país e missões de observação internacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos chegou, inclusive, a preparar um relatório denunciando esses eventos.

A resposta violenta do governo de Iván Duque traduz, de forma idêntica, o que tem sido a política do uribismo há mais de 20 anos consecutivos no país: negação, aniquilação e extermínio de qualquer setor, organização social ou liderança que se oponha ao modelo neoliberal aprofundado através da guerra.

O silêncio ensurdecedor das organizações internacionais chama a atenção, especialmente o da Organização dos Estados Americanos (OEA). Essas organizações não se posicionaram nem sobre o que aconteceu na Colômbia durante os meses da greve em particular, nem sobre a grave crise humanitária de perseguição política e violação dos direitos humanos.

Parece que, para os instrumentos do imperialismo na região, há uma seletividade em suas “preocupações humanitárias”. Só merecem suas declarações – infundadas – aquelas ocorridas em países que ameaçam a hegemonia dos Estados Unidos na região, como acontece com Cuba ou a Venezuela.

Contudo, apesar dessa situação crítica, o povo colombiano continua se mobilizando e construindo inúmeras alternativas para disputar o futuro do país, tanto nas ruas quanto nas urnas. Nesse momento, desenvolve-se a construção do Pacto Histórico, uma coalizão plural que busca construir, a partir da unidade de numerosas expressões políticas, uma possibilidade para a Colômbia fora do lastro do projeto político uribista e dos interesses dos Estados Unidos em nosso país. Fazer isso implica alianças tanto a nível social como político e eleitoral, face às eleições presidenciais e legislativas de 2022.

A América Latina e o Caribe vivem um momento de esperança e renovação de seu futuro emancipatório em nível regional. Não só pelas enormes mobilizações  registradas nesses anos, mas também por algumas mudanças no mapa político continental. Isso é demonstrado por: a posse do governo popular de Pedro Castillo e Perú Libre no Peru, o retorno da democracia na Bolívia após o golpe de Estado de 2019 orquestrado pela OEA e pelos Estados Unidos, a conquista da Assembleia Constituinte no Chile, a resistência da Venezuela e de Cuba apesar dos cercos permanentes do imperialismo, e da crescente mobilização contra governos neoliberais e neo-fascistas na região, como é o caso do Brasil.

No caminho para a consolidação desse projeto continental, é fundamental unir forças para redirecionar a estratégia de unidade e soberania regional contra os interesses do imperialismo estadunidense. Em sua disputa pela hegemonia diante da a emergência da China e a crise de seu papel global, os Estados Unidos buscam garantir que a América Latina e o Caribe continuem como seu “quintal”, como temos sido chamados ao longo da história. Diante disso, devemos priorizar a unidade de nossos povos por meio das ferramentas regionais que construímos, como a ALBA e a CELAC (Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe). Parafraseando o herói da independência cubana: a esse plano imperial, obedece nosso inimigo, mas ao da integração e da unidade dos povos, obedece Nossa América. Plano contra plano.


[1] Lawfare é um termo em inglês que designa a estratégia de conflito com base em manobras legais.

[2] “Uribista” e “uribismo” são termos relacionados ao alinhamento político com Álvaro Uribe, que foi presidente da Colômbia entre 2002 e 2010.


Laura Capote é militante da Marcha Patriótica da Colômbia e faz parte da Secretaria de Capacitação da ALBA Movimientos.

Edição e revisão da tradução por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Aline Lopes Murillo

 

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