Mulheres negras das Américas resistindo para viver, marchando para transformar

28/07/2021 |

Por Capire

As falas das mulheres negras de quatro países das Américas apontam caminhos para as lutas feministas e antirracistas nos territórios.

Agência Brasil

Os territórios que compõem o continente americano têm histórias diferentes. Todas elas, entretanto, são marcadas pelo capitalismo, pelo patriarcado e pelo racismo, sistemas de exploração e dominação que se imbricam profundamente e atentam com violência contra a vida das mulheres negras.

Por isso, resistir e transformar são dois verbos que fazem parte do repertório político do feminismo popular nas Américas e em todo o mundo. Parte fundamental dessas resistências tem sido protagonizada pelas mulheres negras, que são maioria nas ações concretas de combate às desigualdades, à opressão e à exploração.

Em julho, mês que marca o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, e em todos os meses, as feministas negras visibilizam o acúmulo de experiências coletivas e diversas em defesa da vida, dos corpos e dos territórios. Experiências que rejeitam as falsas soluções do mercado para as opressões estruturais e denunciam as violações cometidas pelos Estados autoritários, corporativos, imperialistas e militarizados. Ao mesmo tempo, promovem alternativas políticas, construídas a partir da organização coletiva, da valorização da diversidade e da solidariedade entre as mulheres, entre a classe trabalhadora e entre os povos.

São alternativas que privilegiam a vida ao invés do lucro. Colocar a vida no centro do debate político, econômico e social é o que o feminismo tem feito permanentemente. O sujeito político coletivo desse projeto deve ser visibilizado na mesma frequência. Militantes do continente tem afirmado: a luta nesse território tem o rosto de uma mulher negra!

“Resistimos para viver, marchamos para transformar” é um lema da Marcha Mundial das Mulheres que sintetiza o entrelaçamento entre as duas direções: sustentar a vida (e isso tem sido feito coletivamente, nas comunidades, a partir de iniciativas em que as mulheres, em especial as mulheres negras, são protagonistas) e  mudar o mundo e a vida das mulheres em um só movimento, até que todas sejam, de fato, livres do racismo.

Na última semana, mulheres de cerca de dez países das Américas nos reunimos em uma atividade virtual da Marcha Mundial das Mulheres para compartilhar nossas experiências e perspectivas de luta. A atividade, mediada por Mariana Lacerda, do Brasil, foi transmitida em português e espanhol e teve apresentações culturais de Luta Cruz, do Chile, e Gabi da Pele Preta, do Brasil. Para o Capire, organizamos trechos das falas das cinco participantes. Leia abaixo:

Em princípio, a Federação das Mulheres Cubanas foi criada para promover a igualdade das mulheres na ilha. Desde cedo, entendemos que a construção do exercício revolucionário não seria possível sem o socialismo. No caso do Caribe, para além de Cuba, apesar do fim da escravidão, ainda existiam processos de dominação ocidental. Para o Caribe, e especificamente para Cuba, a condição cimarrona[1] e libertária é um fator fundacional do povo. Vemos como isso se reflete no feminismo cubano, que deve assumir suas próprias particularidades. Um desafio é a solidariedade. As mulheres estão presentes em todos os campos da luta emancipatória. Nós, mulheres negras, não só desempenhamos papéis no trabalho doméstico e de cuidados, como também estivemos envolvidas profundamente com o jornalismo, com o trabalho acadêmico, em profissões que exercemos a partir da nossa subjetividade cotidiana.

É imprescindível romper com a visão institucional de que todas as mulheres são iguais. Sim, somos iguais perante a lei, mas não somos iguais na vida. As políticas públicas devem ser concebidas para regulamentar as condições de trabalho no setor informal e de serviços, em que as mulheres negras representam a maior taxa, sem direitos trabalhistas e previdência social. E realizar ações voltadas especialmente para as mulheres cuja desvantagem social é amplamente marcada, já que somos nós que encabeçamos a taxa de gravidez na adolescência, somos chefes de família, sofremos com o alto índice de pobreza.

Analoy Lafargue (Cuba)

foto: Giorgio Trucchi

O povo garífuna nasceu na ilha de São Vicente como uma mescla de africanos trazidos para as Américas por causa da escravidão e os índios araucanos e caribenhos que já estavam na ilha. Em Honduras, a rosto da luta é o rosto de uma mulher. Vemos como elas seguem em frente, cuidando da cultura e das tradições, de uma cosmovisão e convivência que têm muitos anos de história. Vivemos em um Estado que viola os direitos humanos das comunidades indígenas e negras. O povo garífuna está sofrendo com o desaparecimento de ativistas pelas mãos de oficiais militares. E por que estão fazendo isso? Porque o Estado hondurenho quer as terras do povo garífuna, que já são propriedade do povo e são um patrimônio cultural. O Estado, em seu afã de obter as terras do povo garífuna, que têm sido cuidadas por nossas mães e avós, criminaliza nossos líderes. Há alguns meses, eles mandaram prender duas líderes garífunas.

As mulheres sofrem com a pobreza extrema, com a criminalização, sofrem quando chegam os oficiais do Estado para tomar suas casas e assim que seus filhos e filhas veem os oficiais já ficam com medo de que suas mães apanhem. Vemos notícias de mulheres ativistas e defensoras dos direitos humanos assassinadas e a mídia diz que elas foram mortas por questões “passionais”. Por tudo isso, seguimos em luta, não nos rendemos, escrevemos histórias, levantamos nossas vozes.

Massay Crisanto (Honduras)

Marcha Mundial das Mulheres

O Brasil é um país que, por aproximadamente 350 ou 400 anos, escravizou negros e negras. No seu processo de abolição, nem construiu possibilidade de retorno dessa população para sua nação ancestral, nem construiu condições de cidadania plena, pelo contrário: esse processo passou pela criminalização de sua cultura e demonização de sua religião. A Lei da Vadiagem [de 1890] começou o encarceramento da população negra. A Lei de Terras [de 1850] impediu o acesso da população negra a terras, garantindo a marginalização que os levou a periferias e lugares de difícil acesso, construindo nossas favelas.

Esse sistema se retroalimenta: o capitalismo, que explora o povo e tem na sua raiz a manutenção das desigualdades encontra pessoas que ele consegue explorar e desvalorizar ainda mais. Hoje, somos nós que choramos quando as balas perdidas encontram sempre os mesmos corpos, os nossos e dos nossos filhos. Precisamos intervir na atividade cotidiana para garantir a sobrevivência e uma vida com dignidade e igualdade racial, alterando as condições que são sequelas de um processo histórico que nos colocou na subalternidade.

Juliana Mittelbach (Brasil)

Metro Times

Quero trazer Charity Maimouna Hicks para este espaço. Ela foi assassinada quando estava a caminho de uma reunião da Organização das Nações Unidas. Isso aconteceu em 2014. Ela também era uma guerreira que lutava pela água, por justiça alimentar. Quero trazer Mama Lila Cabbil, assistente de nossa querida Rosa Parks, do movimento pelos direitos civis. Ela era uma guerreira da água e travou uma luta árdua contra o racismo. Quero falar do trabalho das mulheres negras e mostrar imagens para vermos os rostos daquelas que, com muita frequência, não são reconhecidas e valorizadas.

Nós, em Detroit, enfrentamos desertos alimentares gravíssimos, e o trabalho realizado por Mamma Hanifa Adjuman, ensinando crianças sobre justiça alimentar e agricultura, é muito valioso. É significativo que Mama Rhonda Anderson, uma mulher negra, tenha lutado tantos anos pela nossa justiça ambiental. Mesmo sem apoio, ela luta por ar limpo. Detroit tem os CEPs mais poluídos de todo o estado. As pessoas morrem de câncer e de todas as doenças relacionadas à poluição que as empresas emitem. Além disso, a organização Nós, Povo de Detroit [We The People of Detroit] temos a missão de conseguir água. A cidade decidiu cortar o fornecimento de água de cidadãos e cidadãs que não pagarem a conta, mesmo que seja de 50 centavos. Mas muitas empresas, como a de eletricidade, não pagam suas contas no valor de centenas de milhares de dólares. O intuito é expulsar as pessoas de suas casas. Existe uma guerra contra as mulheres. (…) Por tudo isso, devolver as terras às pessoas negras e indígenas é muito importante.

Piper Carter (EUA)

Foto: Jornalistas Livres

A história das mulheres negras é parte fundamental da história da luta dos povos latino-americanos e caribenhos. Mais do que resistir, as mulheres que se organizam coletivamente para combater o capitalismo, o patriarcado e o racismo têm construído um repertório político que afirma que outro mundo é possível. Com as lutas entrelaçadas, com uma visão radical, seguimos para transformar todas as estruturas sociais, na luta em defesa de nossos territórios.

As estruturas da dominação atravessam nossas vidas. A violência é parte do processo de dominação e da organização do racismo e do colonialismo no mundo. Denunciamos o apagamento de nossas heroínas, mulheres que contribuíram para nossa libertação. Por isso, quero saudar a experiência do Capire, que tem costurado as experiências que constituem nossa resistência. Temos o desafio de contar as nossas histórias. As experiências de sociabilidade dos quilombos[2], por exemplo, nos ensinam muitas coisas sobre sobrevivência e outras forma de relação. É na realidade concreta, nas redes de solidariedade por exemplo, que percebemos a interseccionalidade e a imbricação entre gênero, raça e classe.

Mariana Lacerda (Brasil)


[1] Cimarrón é, em alguns países da América Hispânica, a designação para descendentes de africanos e africanas que resistiram ao domínio colonial espanhol e à escravidão, construindo assentamentos e comunidades independentes em regiões afastadas de onde eram escravizados. Hoje, a palavra segue sendo usada por ativistas negras/os que reivindicam essa história de resistência.

[2]  Os quilombos são comunidades de resistência e refúgio, originalmente criadas por pessoas negras escravizadas durante a época colonial no Brasil. Muitas comunidades seguem vivas e o termo ainda é usado para designar espaços de tradição negra, resistência e organização social.

Redação por Fabiana Oliveira
Edição de Helena Zelic e Bianca Pessoa
Traduções do inglês e espanhol por Aline Scátola e Luiza Mançano.

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