Solidariedade, uma prática internacionalista

02/02/2021 |

Por Capire

A experiência solidária dos movimentos populares para enfrentar a violência e o autoritarismo ao redor do mundo.

Encerramento da 3ª Ação Internacional da MMM em Bukavu, na República Democrática do Congo (Arquivo MMM) // Closing ceremony of the 3rd International Action of the WMW in Bukavu, Democratic Republic of Congo (WMW Archives) // Clôture de la 3ème Action Internationale de la MMF à Bukavu, à la République Démocratique du Congo (Archives de la MMF) // Cierre de la 3a Acción Internacional de la MMM en Bukavu, RDC (Archivo MMM)

A solidariedade internacionalista é parte do compromisso político de apoiar as lutas contra a opressão em qualquer parte do mundo, sentindo-as como nossas. São lutas que fortalecem a autodeterminação dos povos, protagonistas de sua própria história, e envolvem sujeitos políticos coletivos que apostam na organização para a transformação sistêmica de nossas sociedades. Na experiência da Via Campesina, da Marcha Mundial das Mulheres e dos Amigos da Terra Internacional, a solidariedade internacionalista é uma prática política fundamental.

Praticar a solidariedade a partir dos movimentos sociais significa atuar de forma coordenada para exigir justiça e defender a soberania dos povos e seus projetos políticos populares de emancipação e autodeterminação. Significa nos organizar para levantar nossas vozes, denunciar o imperialismo, o autoritarismo e a violência e apoiar de maneira concreta aquelas e aqueles que têm suas vidas e comunidades ameaçadas e perseguidas, seus direitos violados e suas lutas criminalizadas. Se há uma injustiça contra um povo em qualquer lugar do mundo, há então uma luta a ser travada por todos os povos do mundo.

Ao redor do planeta, a história dos povos é a história da luta contra a dominação. Nas comunidades, as mulheres são protagonistas na defesa da terra, da água, do trabalho digno e da organização coletiva. Isso afronta grandes poderes: as corporações transnacionais e seus projetos de apropriação da natureza; os muros e fronteiras que segregam povos e militarizam territórios; os governos reacionários interessados em desmontar as democracias. Em tempos de avanço de um capitalismo ainda mais autoritário, defender quem defende a vida é crucial para o processo de resistência popular e de transformação social.

Os processos de solidariedade dos movimentos sociais surgem da necessidade de uma resposta internacional aos ataques à soberania e violações sistemáticas dos direitos de comunidades e lutadores sociais. Divulgando as lutas, tornando-as conhecidas, articulando a resistência junto com organizações aliadas, organizando brigadas e vigílias, essas organizações fazem da solidariedade uma prática política: uma solidariedade horizontal e de classe.

Para a redação desse relato, conversamos com Nalu Faria e Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres, Karin Nansen, da Amigos da Terra Internacional, e Tchenna Maso, da Via Campesina. São muitas as experiências de solidariedade acumuladas por estes movimentos sociais ao longo do tempo. Através delas, forma-se uma rede capaz de proteger pessoas e, ao mesmo tempo, dar visibilidade aos conflitos. No ano de 2020, mais de 300 lideranças sociais e ex-combatentes das Farc foram assassinados na Colômbia, uma realidade que expõe a necessidade dos mecanismos de proteção da vida.

A solidariedade é um princípio na construção da Marcha Mundial das Mulheres. Uma das estratégias do movimento é identificar reivindicações parecidas entre diferentes países, marcados pela repressão policial, fortalecendo a pressão internacional e a integração entre as lutas. Resultado disso foi que, em 2005, a 2ª Ação Internacional da MMM bordou uma Colcha da Solidariedade que viajou o mundo. A colcha, um objeto simbólico, era também uma demonstração do encontro entre as mulheres do mundo. 

A Ação se encerrou em Burkina Faso, um país cujo processo de independência e greve de trabalhadoras teve grande visibilidade através das ações de solidariedade internacionalista. Além disso, todos os anos desde 2013, o dia 24 de abril tornou-se um dia internacional de solidariedade feminista contra as empresas transnacionais, em memória às mais de mil mulheres trabalhadoras que morreram com o desabamento do prédio Rana Plaza, em Bangladesh. A solidariedade se une à denúncia das condições de trabalho precárias das grandes empresas transnacionais.

Desde a crise de 2008, o mundo tem testemunhado o fortalecimento de ideologias conservadoras, que assumem um caráter neofascista e autoritário particular. À medida que essas forças de direita chegam ao poder, fomentam a instabilidade política e ativamente desmantelam ou corroem as democracias. Ao mesmo tempo, o contínuo desenvolvimento e expansão do sistema econômico neoliberal intensificou a privatização, a mercantilização e a financeirização dos bens públicos comuns em todo o mundo. E, ainda, o imperialismo renova sua ofensiva contra a soberania popular em países como Cuba e Venezuela.

É para enfrentar esses ataques direcionados aos povos e lideranças que a Via Campesina participa de uma articulação nomeada “Solidariedade, Resistência, Esperança”, mecanismo com participação, até agora, de 16 organizações e movimentos sociais, dentre eles MMM e ATI. Até o momento, a aliança organizou o Festival Te Escribo Colombia [Te Escrevo, Colombia], articulou denúncias de violências contra os povos do campo, das águas e florestas, e está articulando uma organização de juristas comprometidos com as lutas sociais. Organizam-se, assim, formas de garantir a segurança e soberania dos povos e lideranças constantemente ameaçadas.

Primeira sessão do Tratado das Nações Unidas sobre transnacionais e Direitos Humanos, realizada em Genebra, em julho de 2015 (Victor Barro/Friends of the Earth International)

O Sistema de Solidariedade Internacionalista dos Amigos da Terra funciona por meio de uma equipe descentralizada que atua em níveis local/nacional, regional e internacional. A partir de pontos focais regionais (em quatro regiões: América Latina, Europa, África e Ásia-Pacífico) e do secretariado internacional da Federação, se organiza a formação política e a documentação e análises de ameaças. Praticar a solidariedade é concretizar, no mundo presente em que vivemos, caminhos para o mundo que queremos construir. Por isso, os mecanismos de atuação rápida não são dissociados da mobilização e organização política, pelo contrário: eles se fortalecem um ao outro.

Assim, campanhas pelo direito de lutar são também construtoras das próprias lutas, e vice-versa. E, a partir dos chamados das organizações, se constroem e fortalecem alianças estratégicas, como entre estes três movimentos.

Entre as experiências de solidariedade mais duras e necessárias estão aquelas que reivindicam a liberdade de militantes encarceradas/os por razões políticas. As ações se dão primeiramente a partir da divulgação de informações sobre os casos e, a partir disso, da mobilização de acompanhamento jurídico e das garantias básicas de segurança das companheiras na prisão, como foi o caso na República Democrática do Congo, nos dias que antecederam o encerramento da 3ª Ação Internacional da MMM em 2010. São prisões arbitrárias, como são todas as prisões políticas. E essa é uma realidade crescente em todas as regiões, especialmente em territórios em conflito. Cada caso de perseguição e criminalização exige um tipo de resposta e uma estratégia de exposição diferente, dependendo do contexto político, social e jurídico, da forma como os acirramentos se concretizam no cotidiano das comunidades.

O acompanhamento constante de casos de militantes presos políticos requer uma série de medidas de monitoramento dos níveis de risco de prisão, perseguição ou mesmo assassinato que um militante ou grupo de militantes corre em seus territórios. Organizar esse monitoramento é uma tarefa difícil, que se complexifica ainda mais com a crescente vigilância e o controle de dados digitais pelas grandes empresas de tecnologia.

Assembleia Continental da CLOC-Via Campesina na Nicarágua, em outubro de 2012 (Arquivo CLOC-Via Campesina)

Diante das ofensivas autoritárias e da captura corporativa da democracia, que sufocam processos de resistência popular, a formação política e o internacionalismo popular convergem como estratégia permanente das três organizações. Assim, ampliam a consciência política e de classe, apostando em compreender e enfrentar as causas estruturais das violações. A convergência de comunicação dos movimentos sociais, que se contrapõe ao apagamento da resistência pela grande mídia corporativa, e as Escolas de Formação (como a Escola Feminista, a Escola Nacional Florestan Fernandes, e as Escolas de Sustentabilidade) também são estratégias fundamentais para a solidariedade internacionalista. 

As articulações por solidariedade buscam garantir a sobrevivência, a liberdade, a proteção de direitos, mas não só isso. Elas ampliam a capacidade dos movimentos populares de construir alternativas e novas realidades políticas emancipatórias. Solidariedade significa levantar-se e mobilizar-se, organizadas, contra todas as formas de opressão, como o patriarcado, o racismo, o colonialismo, e contra a violência exercida contra nossos povos para tirar nossa capacidade de organização e luta. 

Nossos movimentos têm uma longa trajetória, com práticas, metodologias e acúmulos políticos na construção da solidariedade internacionalista. Mas tudo isso, ainda, não é suficiente, já que a política de criminalização e morte está distribuída e avança em todos os lugares onde os povos ousam organizar seus modos de vida de forma soberana, e se levantam para dizer não à ofensiva do capital. Este texto é um convite e uma convocatória para a solidariedade concreta, internacionalista, feminista e popular. 

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