Feminismo em Moçambique: pela terra, liberdade, sororidade e uma vida livre de violência

30/03/2021 |

Por Nzira Deus

Nzira Deus denuncia a usurpação de terras e a violência em Moçambique e compartilha estratégias feministas para a organização e transformação.

Em Moçambique, não é possível falar sobre as condições de vida em que se encontram as mulheres sem falar sobre a usurpação da terra. Grandes companhias de investidores vêm para cá e o nosso governo continua cedendo terra. A terra em Moçambique, como em todo mundo, é o principal meio de sustento para as mulheres. Mais de 80% das mulheres vivem e sobrevivem da terra. Esses investimentos externos geram em nós muita incerteza, insegurança e medo, porque não participamos efetivamente dos processos de tomada de decisão.

Se olharmos para o contexto da covid-19, percebemos que houve um uso desse momento para avançar ainda mais na busca por ocupação de terra e retirada dos camponeses e dos produtores das suas terras de origem. É um capitalismo que chega com agressividade e cria muito pavor. É difícil manter-se alerta porque muitos acordos são feitos de maneira secreta. Na província de Cabo Delgado, por exemplo, é sabido que o governo de Moçambique selou contratos de exploração e cessão de terras para transnacionais. Por isso, boa parte da população saiu das suas terras fugindo das balas, apartada assim de seu local de pertença. As pessoas perdem a conexão com seu lugar, sua comunidade e consigo mesmas, porque a nossa identidade é construída também através desses elementos. 

O discurso que está por trás da concessão de longas extensões de terras às corporações é o de que há muita terra disponível. Essa é uma falácia, pois não há terra sem dono! Em qualquer lugar, ainda que só se vejam árvores ou mata “descuidada”, alguma comunidade do entorno faz uso desse território. São locais que conservam tradição ou espaços de prática de cultos. As matas são usadas para extrair ervas medicinais para cura de doenças ou outras crenças locais. 

As orações e as práticas das mulheres fazem com que muitos as chamem de feiticeiras. São práticas tradicionais que as mulheres passam de geração em geração. O conhecimento é a sua força. Os detentores de capital e poder machista sabem disso e se sentem ameaçados por esse poder, que é invisível, mas muito forte. Para a vida das mulheres, especificamente, o risco é muito alto. São assassinadas, violadas e raptadas. As mulheres, com seus conhecimentos, tradições, rezas e poderes, são vistas como uma ameaça dentro dos territórios que estão sendo usurpados.

Os acordos de concessão de largas extensões de terras destroem toda uma riqueza de conhecimento tradicional e  de  diversidade das matas, deixando as comunidades sem nada. Que desenvolvimento é esse? E para que ele serve, se não respeita a vontade dos povos?

As mulheres têm sido usadas como instrumento de guerra no conflito que o país enfrenta, especialmente, na zona centro e norte. Recentemente, em setembro de 2020, uma mulher foi barbaramente assassinada pelas forças armadas de Moçambique a tiros na província de Cabo Delgado. O governo afirmou que ela tinha sido morta pelos terroristas, mas a comunidade diz que a responsabilidade é, isso sim, da força armada. Ela foi acusada de ser uma feiticeira a serviço dos terroristas, mas sequer houve investigação sobre a sua proveniência.

O corpo das mulheres sofre muito durante o conflito, pois é sistematicamente usado, maltratado e violentado de várias formas. São mulheres mães, esposas, irmãs e filhas que, de tanta dor e humilhação, perdem até forças para lutar e resistir contra o inimigo. Violenta-se o corpo da mulher como estratégia para convencer aqueles homens que se recusam a  vender suas machambas (terras) ou defendem as terras comunitárias. Os povos se sentem impotentes ao se depararem com brutalidades como essa. A violência está diretamente ligada ao conflito em relação à exploração dos recursos naturais e da natureza. 

As mulheres são barbaramente violentadas não só naquele contexto de conflito armado, mas também nas regiões e zonas onde elas têm sido reassentadas. Não há observância dos Direitos Humanos e tampouco o enfoque nas necessidades específicas das mulheres. Estão sendo apontados muitos casos de violência sexual contra meninas e mulheres nos acampamentos. O que preocupa mais são as situações que nós ainda não sabemos. Muito não é dito porque elas têm medo de falar, há muita desconfiança e receio. Só falam quando encontram uma pessoa em quem confiam ou sentem-se seguras. O silêncio que elas carregam consigo diz muita coisa.

Força e esperança para concretizar alternativas

Celebramos a existência de uma lei de prevenção, mas a violência continua. As mulheres não têm atendimento adequado. As mulheres não confiam na Esquadra, a polícia de atendimento à violência contra as mulheres. As mulheres ainda são questionadas sobre o que fizeram para sofrerem violência, e há casos em que os agressores corrompem a polícia para que o processo não avance, o que desencoraja as mulheres de denunciar.  

Conseguimos também que o aborto fosse descriminalizado. Fizemos uma forte campanha e agora temos uma lei, mas ainda temos muito pelo que lutar, pois vivemos em um país onde o documento não reflete a realidade. Continuamos a monitorar os serviços para que eles respondam às necessidades das mulheres, mas é um esforço muito grande o que precisamos fazer para sermos ouvidas. Ou seja, para que o que está no papel se torne prática concreta.

Temos uma Lei de Terras, que se considera das mais progressistas de África, pois defende os direitos dos indivíduos e das comunidades.  A lei permite que o registro da terra esteja no nome do homem e da mulher, mas o patriarcado é forte: os documentos sempre ficam no nome do homem e não há assistência legal. Muitas mulheres não sabem como acessar as leis e garantir os seus direitos. Quando chega um grande investimento, o governo retira a terra da cidadã e das comunidades, deixando-os sem nada. A implementação cotidiana da lei é bastante deficitária. Neste momento, essa mesma lei se encontra em revisão, sem garantir que as mulheres rurais produtoras tenham clareza dos aspectos que estão sendo alterados. 

É importante mencionar que neste país se falam muitas línguas. São 17 línguas diferentes e nenhuma se comunica com a outra. Ao redor de Moçambique, todos os países falam inglês. A língua é um desafio para a disseminação de informações. Para lutar contra o patriarcado, precisamos lidar também com o que limita a participação das mulheres, a sua voz e a capacidade delas serem sujeitas dos seus direitos. O silêncio das mulheres é um resultado do patriarcado e do colonialismo. 

Nos espaços comunitários para decidir, por exemplo, se uma empresa de fora pode fazer investimentos locais, só se fala português. Muitas mulheres das comunidades não entendem o que está sendo falado; ou, quando entendem, não falam, pois se sentem retraídas de usar a sua própria língua. Se as sessões fossem nas suas línguas, elas teriam muito a falar. Elas falariam sobre as suas preocupações: quase todas, como sabemos, ligadas à reprodução, à água, à terra, a todos os aparatos do lugar do cuidado com os quais ninguém se preocupa.

Ninguém fala que é preciso reduzir a distância para ir buscar água. Que maternidades e hospitais próximos são necessários. Precisamos buscar energia para construir um processo revolucionário de conscientização e de fala política.

Por isso, tentamos construir força e esperança, propor alternativas. Nos últimos tempos, se abateu sobre nós um certo desconsolo, porque estamos lutando e, mesmo assim, não conseguimos sair desse cenário. Na medida em que as companheiras sofrem mais, cresce um sentimento de impotência. Como conseguimos superar esses problemas? 

Nesse momento de pandemia, é ainda mais difícil apresentar nossas perspectivas e demandas, porque o lugar onde melhor éramos ouvidas era nas ruas. Além disso, há a repressão crescente e a proibição das nossas atividades políticas públicas. Estamos procurando cooperação entre nós para fortalecer a luta e consciência política. 

Resistência, movimento e experiências feministas

Como acertar o passo das que já vêm na caminhada e das que estão chegando? Se não fazemos esse diálogo, ficamos em silêncio, retraídas, e isso fragmenta o movimento, torna a luta individual.

Como mantemos o nosso movimento feminista forte e vibrante? Como construir novas formas de articulação? As jovens que estão no movimento querem fazer algo novo, fazer diferente. Querem refletir, propor e agir, mas têm enfrentado desafios econômicos e sociais. Cada uma tem o seu tempo. Como acertar o passo das que já vêm na caminhada e das que estão chegando? Se não fazemos esse diálogo, ficamos em silêncio, retraídas, e isso fragmenta o movimento, torna a luta individual. Como juntar todo mundo, ainda que sejamos diferentes? O que é fazer diferente? Como exercitamos a escuta? 

A experiência do feminismo em Moçambique vem através de movimentos e associações de mulheres, relacionando o local, regional e internacional. A Marcha Mundial das Mulheres dá um sentido mais profundo à luta, denuncia o sistema, desmantela o que está posto, nos coloca a unidade. É um espaço para quem quer lutar pelos seus direitos e não quer fazer isso apenas na teoria, nos escritórios, na internet. É a possibilidade de você ter um espaço de solidariedade, de encontro e de partilha. 

Construindo o feminismo em Moçambique, criamos novas formas de ação política. Em junho de 2015, diante da notícia de um caso de estupro, protestamos deitando no chão de uma avenida muito movimentada. Esse protesto não estava autorizado, o que podia nos levar à cadeia. Nós estávamos com muita coragem e conseguimos manter a ação por quarenta minutos, trazendo visibilidade para o caso.

Outras experiências lindas são as caravanas nacionais e regionais, os acampamentos de solidariedade com as mulheres em contexto de conflito militar e as fogueiras feministas. Nas caravanas, chegamos a viajar sete mil quilômetros. Apesar de serem viagens longas e cansativas, poder ver as mulheres das comunidades por onde passávamos se aproximando para nos conhecer, ouvir, compartilhar suas vidas, tudo isso fazia valer a pena.

A fogueira feminista é uma roda de conversa que nós, mulheres jovens feministas, criamos para partilhar nossos desafios cotidianos, expor nossas indignações, fortalecer nossa militância na defesa dos nossos direitos. As tradições aqui são muito fortes, então mantivemos e transformamos esse aspecto cultural nosso, a fogueira que organizamos ao fim do dia. É um momento de passagem de testemunho dos mais velhos para os mais jovens, compartilhando histórias, ensinamentos e conselhos para vida. Usamos dessa prática para estar próximas umas das outras.

Há muita responsabilidade nos ombros das mulheres. A fogueira nos aquece, nos conforta e nos faz sentir que não estamos sozinhas. Nos dá coragem para enfrentar o machismo do dia a dia. A fogueira carrega um símbolo muito forte para nós e tem fortalecido o movimento feminista em Moçambique, porque é um espaço libertador para as mulheres.  O que se fala nesse espaço não sai dele. Ao fim, queimamos o patriarcado na fogueira e nos revigoramos.

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Nzira Deus é feminista, militante da Marcha Mundial das Mulheres em Moçambique, diretora executiva do Fórum Mulher, ativista pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBT na África. 

Revisado por Helena Zelic e Aline Scátola.

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