Golpe no Sudão: as mulheres lutam por liberdade, paz e justiça

16/12/2021 |

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Entenda o violento regime militar que tomou o poder no Sudão e as lutas travadas para combatê-lo

Antecedentes políticos

A eleição de representantes passou a ser uma possibilidade no Sudão desde a independência do país, em 1954. A Frente Nacional Islâmica (FNI), liderada pelo regime da Irmandade Islâmica, foi criada no início dos anos 1960, mas nunca conseguiu eleger representantes para o parlamento. Já em 1989, a FNI deu um golpe militar e tomou o poder, derrubando o governo eleito democraticamente. Mais tarde, em 1999, a FNI criou o Partido do Congresso Nacional (PCN) para dar legalidade ao grupo e tentar convencer a população sudanesa e a comunidade internacional de que seria um governo democrático. A frente organizou eleições que descumpriram todos os padrões internacionais e alçaram à presidência o General Omar Al-Bashir, líder do golpe militar.

O governo do PCN se apoiava no que chamou de Projeto Civilizatório, baseado na sharia, a lei islâmica, e usou a religião para convencer a população a segui-lo. Era uma ditadura autoritária, um regime unipartidáriocaracterizado por práticas duras e repressivas. Foram implantadas muitas leis e regras que restringiram a liberdade de expressão e de reunião, além do direito de ir e vir das pessoas. Outros partidos políticos também foram proibidos de exercer suas atividades livremente. Houve prisão, tortura e assassinato de pessoas da oposição e defensoras de direitos humano.

Enquanto o PCN praticou a repressão, agressão e violência contra todo o tipo de oposição, seus membros praticavam todo tipo de corrupção, conduta imprópria e má gestão dos recursos nacionais. Com isso, membros do partido enriqueceram e tomaram o controle de recursos, enquanto a população sudanesa sofria com a pobreza e a falta de atendimento a suas necessidades básicas. Durante esse governo, a situação econômica se deteriorou em todos os setores, por causa de sanções financeiras impostas ao país pelos EUA, por instituições internacionais e outros países. O Sudão foi classificado como Estado Patrocinador do Terrorismo, o que aumentou seu isolamento no cenário internacional.

O sistema de ensino gratuito foi cortado pelo regime, então muitos estudantes tiveram que deixar de frequentar a escola cedo porque suas famílias não tinham condições de arcar com os custos da educação. O sistema de saúde foi completamente destruído. Para ter acesso a qualquer tipo de medicação, as pessoas precisavam pagar valores altíssimos. A infraestrutura do país foi afetada. Estradas, linhas aéreas e obras ficaram negligenciadas. As pessoas não conseguiam arcar com o padrão de vida, efeito sentido sobretudo pelas mulheres. As mulheres não conseguiam estudar nem trabalhar. Tudo que o regime fazia era tentar tirar os direitos e a dignidade delas. As mulheres sofreram 30 anos de governo islâmico e travaram uma luta contra esse regime desde então.

Em 2003, irrompeu o conflito em Darfur, estado da região oeste do país. Mais de 300 mil pessoas foram mortas por milícias do governo e cerca de um milhão de pessoas se refugiaram em países vizinhos, provocando um deslocamento em massa. O conflito de motivações étnicas criou fraturas imensas e destruiu o tecido social entre a população do país, que vivia e convivia em paz há séculos. As milícias governistas praticaram violência sistemática contra mulheres e meninas de povos não árabes por meio de estupros, assassinatos e abuso sexual.

A Revolução Sudanesa

Em dezembro de 2018, uma revolução popular irrompeu em todos os estados do país, exigindo justiça e direitos, por melhores condições de vida, com a bandeira “Liberdade, Paz e Justiça”. As mulheres e a juventude tiveram um papel essencial no sucesso da revolução e na derrubada do regime que dominou o país durante 30 anos. As forças armadas declararam apoio à revolução, retiraram Omar Al-Bashir do poder e instauraram o General Abdel Fattah Al-Burhan como novo líder do exército.

As Forças de Liberdade e Transformação (FLT) são o órgão formado durante a revolução, que reúne partidos políticos, organizações da sociedade civil, movimentos armados de oposição ao governo do PCN e sindicatos. A maioria dos grupos na luta contra o regime nasceu durante o governo do PCN e atua desde então, com estratégias muito criativas. Eles organizaram as lutas mesmo sem sistemas de comunicação e conseguiram levá-las adiante em todo o Sudão. As lideranças das organizações já eram alvo dos militares antes do golpe, mas não têm medo.

A FLT e as forças armadas começaram a negociação para governar o país após o sucesso da revolução. Houve acordo a respeito de uma transição que se estenderia por três anos. Ao final desse período, uma eleição deveria ser realizada para substituir o governo de transição. Foi desenvolvida a Declaração Constitucional para reger esse período. Foi criado um Conselho Soberano com dez membros civis e cinco militares, assumindo o papel de chefe de Estado.

Al-Burhan, presidente do Conselho Soberano, deveria entregar a presidência a representantes civis no dia 17 de novembro de 2021, conforme estabelecido no acordo de divisão de poder e no Documento Constitucional de 2019. Os civis elegeram um de seus membros como presidente do conselho, mas, no dia 25 de outubro de 2021, antes da data prevista para a passagem da presidência do órgão ao novo membro escolhido, Al-Burhan liderou um golpe militar e declarou estado de emergência. Ele dissolveu o governo, deteve todos os ministros, colocou o primeiro-ministro em prisão domiciliar e interrompeu os serviços de comunicação e internet.

Logo em seguida, o golpe foi anunciado e, apesar das restrições nos canais de comunicação, as pessoas foram às ruas para protestar pacificamente, denunciar as ações ilegais do exército e exigir a restituição do governo e a transição para o controle civil. As manifestações aconteceram em todo o país, recusando os procedimentos tomados pelo líder do exército e exigindo o retorno da transição democrática e do compromisso com o Documento Constitucional.

A situação atual

Os protestos contínuos e a pressão da comunidade internacional resultaram na libertação do primeiro-ministro e da assinatura de uma declaração política entre ele e os militares, com um acordo para soltarem todas as pessoas detidas. O primeiro-ministro se incumbiu de formar o governo civil até o fim do período de transição. No entanto, os incidentes resultaram em violações graves de direitos humanos de civis, que não cessaram entre o golpe de 25 de outubro de 2021 e 23 de novembro de 2021. A conexão com a internet só foi restabelecida após semanas de interrupção.

Apesar da libertação de algumas pessoas presas, temos uma preocupação profunda com a continuidade das prisões de manifestantes pacíficos. A articulação entre as Forças Armadas do Sudão (FAS), as Forças de Apoio Rápido (FAR), a Inteligência Militar e a polícia continuaram a perseguir indivíduos com prisões e detenções com base na participação ou na suspeita de envolvimento nos protestos. Manifestantes pacíficos foram detidos com base no decreto do estado de emergência. Três manifestantes estão presas sem nenhuma acusação formal na Prisão Feminina de Ondurmã. Em Cartum, jornalistas tiveram os olhos vendados e foram transportados para um local desconhecido, onde receberam ameaças por participar de eventos contra o golpe.

Foram utilizdas táticas semelhantes àquelas registradas na repressão à revolução de 2018-2019. O uso muito bem documentado de tortura e outros maus tratos por agências de segurança contra pessoas detidas, sobretudo em locais não identificados, desperta preocupações relacionadas à segurança. As autoridades sudanesas continuaram a adotar o uso excessivo da força, incluindo o disparo de armas de fogo contra a parte superior do corpo de manifestantes para dispersar protestos pacíficos no Sudão, o que resultou em casos de morte e ferimentos entre cidadãos sudaneses. Uma mulher foi espancada por um militar em uma manifestação na Universidade de Cartum no dia 26 de outubro de 2021.

Há casos documentados de tortura e maus tratos por agências de segurança, em que pessoas detidas apanharam com mangueiras, barras de ferro e pedaços de pau, levaram socos, sofreram empurrões e foram obrigadas a rapar o cabelo. Cortar o cabelo de pessoas detidas com a mesma lâmina sem esterilização levanta preocupações sanitárias sérias, pois aumenta o risco de transmissão de doenças pela corrente sanguínea. Em Kotsi, no estado do Nilo Branco, as pessoas são detidas em instalações precárias, sem comida e com acesso a água permitido apenas após 13 horas de prisão.

As autoridades estão restringindo a liberdade de expressão. O Serviço de Segurança e Inteligência Nacional continua a intimar jornalistas para interrogatórios. Diversos jornalistas foram presos por cobrir os protestos contra o golpe. Assim como na era Al-Bashir, as autoridades fecharam estações de rádio e proibiram outras duas de transmitir notícias em Cartum, sem nenhum motivo.

Em dois dias de manifestação, em 17 e 30 de outubro, as forças policiais mataram 42 manifestantes, a maioria jovens e crianças. Há registros de morte incluindo o de uma menina de 13 anos em Jabara, região sul de Cartum, e de outras entre 14 e 17 anos. Duas mulheres foram detidas no estado de Darfur Central, retiradas de suas casas, demitidas do trabalho e proibidas de receber visitas de familiares. Por causa das condições desumanas dos centros de detenção, uma mulher sofreu um aborto espontâneo.

Mesmo diante da violência, os militares estão enfrentando a pressão das ruas e da comunidade internacional. Eles devem entregar o poder aos civis, porque esse foi o acordo. A população e as organizações estão adotando estratégias de desobediência civil para lutar contra as imposições do governo. Continuaremos fortes e lutaremos até recuperarmos nossa democracia. Não deixaremos os militares nos governarem. 

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Por questões de segurança, a identidade da militante autora deste artigo será preservada.

Editado por Bianca Pessoa
Traduzido do inglês por Aline Scátola

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