“Síntese II (poemas de Bukavu)”, de Judite Canha Fernandes

05/01/2021 |

Por Capire

"Síntese II (poemas de Bukavu)" presta homenagem às mulheres que lutam pela terra no continente africano e em outras partes do mundo.

“Síntese II (poemas de Bukavu)” é um poema que integra o livro o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas, de Judite Canha Fernandes. Judite nasceu no Funchal em 1971 e, em 1980, foi viver em Ponta Delgada, onde cresceu. É escritora, dramaturga, pesquisadora e militante feminista. Foi representante da Europa no Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres entre 2011 e 2016. O livro de poesia o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas foi semifinalista do Prêmio Oceanos (2018). Seu romance de estreia Um passo para sul recebeu o Prêmio Agustina Bessa Luís (2018), foi nomeado como melhor livro de ficção narrativa pela Sociedade Portuguesa de Autores (2019) e semifinalista do Prêmio Oceanos (2020). Judite publicou livros de poesia, ficção e teatro em Portugal, Brasil e Itália. Mais informações podem ser encontradas em seu site ou nas redes sociais.

“Síntese II (poemas de Bukavu)” presta homenagem às mulheres que lutam pela terra no continente africano e em outras partes do mundo. O poema menciona Berta Cáceres, grande liderança feminista e ambientalista hondurenha, líder do povo Lenca e participante do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH). Berta foi assassinada em 3 de março de 2016 por enfrentar os poderosos do país e a construção de uma hidrelétrica em território Lenca. Os assassinos foram condenados, mas, até agora, a justiça não se propôs a julgar os mandantes desse crime político.

Este poema evoca um encontro que tive com uma mulher, em Bukavu, na República Democrática do Congo, quando lá estive em 2010, no encerramento da Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. Ela procurou-me para tentar compreender porque a terra onde cultivava tinha deixado inexplicavelmente de produzir. Tinha vindo, para fazer essa pergunta, com um grupo de mulheres da aldeia onde vivia. Para chegar ali, tinham partido de madrugada e caminhado por mais de cinco horas.

Síntese II (poemas de Bukavu)

a terra minguara, não se via grelo nem almofada de semente,
tudo secou.
não dava milho
não dava batata
não dava nada.

cinco quilos de farinha da onu
cheia de percevejos e ilusões
para nós sete.

não se entendia.

queria adiar futuro nos filhos,
nas filhas depositar secreta esperança
cinco quilos cinco
e terra morta.

nem adiar um sonho se podia fazer.

cinco horas a pé
pés na terra imaculada
batendo, batendo
pisando minhoca, graveto espalhado

berta flor a caminho
entra na sala e pergunta:

a terra não dá nada. por quê?

entra vestida de furacão
inteligência funda, antiga, nos olhos.

(conheci-a assim, entre as bombas,
numa universidade pintada de fresco,
a tinta vermelha ainda hoje no meu vestido branco)

há diamante perto?
há.

(havia joia, não havia milho)

há buraco? há.
a água vai na companhia? vai.

(a água corre como é seu hábito)

então fez ponte.
o ar juntou água juntou enxofre
murchou tudo.

berta flor foi e comunicou aos líderes.

a minha terra morreu de tanto lhe remexerem os bolsos
disse a palestrantes do vácuo ceos e outras
araras.
calem as explosões. calem-se.
quero dormir.

e o diamante? diz um, brilho de cobiça nas mãos.
berta disparou-lhe cinco quilos de farinha da onu nos olhos
e espetou-lhe na boca os percevejos.

estão a ver como o pessoal é político?

por causa da indústria automóvel
o filho de berta ainda não anda.
por causa de um offshore no panamá a batata foi exterminada.
por causa dos estaleiros de viana o joaquim não dorme.
por causa de uma hidroelétrica
ou de uma construtora tínhamos sede,
e berta cáceres foi assassinada na sua casa,
ainda março mal começava.

Texto originalmente escrito em português

Artigos Relacionados