Mulheres construindo soberania alimentar na África

05/01/2021 |

Por Sefu Sanni

Sefu Sanni, da Marcha Mundial das Mulheres no Quênia, fala sobre o que é necessário para os países africanos alcançarem a soberania alimentar

Foto/Photo: Nyeleni, 2007

Você já se pegou em casa escolhendo o que vai comer no jantar? Você decide com base no que tem e quer, e aquilo que está com mais vontade de comer, não é? Nas regiões consideradas “celeiros” no Quênia, na Nigéria, nos Camarões, em Uganda e muitos outros países africanos, a colheita é abundante e a população pode escolher seus alimentos preferidos para produzir e comer, de acordo com sua cultura, natureza e organização.

Matoke (banana verde) em Uganda, fufu (inhame sovado na Nigéria), ugali (mingau de farinha de milho no Quênia), existem muitos itens na base alimentar de diferentes partes da África. Essa capacidade de uma região de não apenas plantar, mas produzir alimentos que tenham apelo para sua cultura, paladar e escolha é soberania alimentar. É um contraste imenso, ainda que haja relação direta, com a segurança alimentar, que significa basicamente ter uma refeição garantida, mesmo que não seja de sua escolha, para fugir da fome e da inanição, como acontece nos casos de doações para áreas suscetíveis a seca. A população afetada nesses casos não tem poder de decidir o tipo de refeição que terá ou gostaria de ter, mesmo que haja provisão para continuar seguindo. É o estado de garantia, de capacidade de se alimentar, mesmo que o alimento não seja de sua escolha nem tenha apelo para sua cultura, apenas pela sobrevivência humana básica.

No contexto africano, quando se fala de questões de alimentação e nutrição, as mulheres entram em cena.

Isso se dá porque, na maioria das sociedades africanas — se não em todas —, as mulheres têm a tarefa de cultivar a terra e fornecer alimento e nutrição para suas famílias e comunidades de modo mais amplo.

Nos últimos anos, alguns desses aspectos se transformaram com o aumento da consciência, da urbanização, dos níveis educacionais e até de interesses comerciais, ou seja, do surgimento da produção de alimentos como negócio. Isso representou o envolvimento de todos os gêneros e o uso de máquinas e produtos químicos na produção de alimentos, levando à redução do trabalho humano e pouco ou nenhuma autonomia econômica para a maioria das famílias. Mas nas regiões rurais da África, a maior parte do trabalho ainda é relegada às mulheres.

Em meio ao crescimento das cidades e da urbanização na África, as zonas rurais são responsáveis por produzir os alimentos consumidos nas áreas urbanas, por terem grandes extensões de terra disponíveis, em contraste com as cidades abarrotadas de prédios e casas. O solo no campo é fértil e generoso, ao contrário das cidades, onde a poluição e o lixo o contaminam.

Mas um grande problema enfrentado nas zonas rurais é a “fuga de cérebros”, a migração de grande parte da população — principalmente jovem, maior força de trabalho — para as cidades, em busca de “empregos de colarinho branco”. Nesse processo, ficam na zona rural apenas as pessoas mais velhas e mais debilitadas ou com deficiências, sem condições de trabalhar na produção de alimentos. Por esse motivo, muitos países africanos decidiram importar alimentos de outros países.

A convergência entre crise climática e o aumento das importações de alimentos na África cria a receita para a catástrofe. Se não forem tomadas ações para construir sistemas alimentares locais e reverter a crescente dependência da importação de cereais e outros alimentos básicos, crises alimentares como a de 2007–2008, que levaram a grandes protestos em todo o continente, se repetirão e se tornarão mais graves.

Com o aumento da fome na maior parte da África, é pertinente que a população local possa controlar a produção de seus alimentos para garantir sua autossuficiência. Com acesso a terra, água, sementes e meios de produção, e também com o controle justo dos mercados local e internacional, que produzem ganhos econômicos. Israelenses, árabes e a maioria da população nos países do Oriente Médio vivem em um deserto, mas conseguiram melhorar sua autossuficiência e produção de alimentos para atender suas próprias necessidades. Na região norte e do Vale do Rift no Quênia, por exemplo, as pessoas morrem de fome todos os anos, enquanto o Líbano, como outros países do Oriente Médio, importa solo para atividades agrícolas das mesmas áreas quenianas afligidas pela seca.

A previsão de oferta de alimentos para as próximas décadas na África é preocupante. O continente precisará aumentá-la para acompanhar o crescimento da população, tanto que os projetos das Nações Unidas devem aumentar de US$ 1,2 bilhão para US$ 1,7 bilhão nos próximos dez anos. Mas com o aumento da demanda, os efeitos cada vez maiores das mudanças climáticas dificultarão ainda mais a produção no continente. Estima-se que o aquecimento global pode provocar a redução da produção total de alimentos da África em 10% a 20%.

Em todos esses aspectos, observamos que o excesso de dependência da cidade em relação ao campo para a produção de alimentos, a migração da maior força de trabalho para áreas urbanas em busca de empregos de colarinho branco e a ideia de que a agricultura é uma atividade “atrasada”, “indigna” ou “retrógrada”, as mudanças climáticas e a ignorância dos métodos agrícolas modernos levam a uma imensa desigualdade nas áreas consideradas “celeiros” de muitos países africanos, e à incapacidade de muitas regiões do continente de alcançar a soberania alimentar.

Dito isso, vale destacar que, apesar de todos esses obstáculos e dificuldades, algumas regiões da África estão mais perto de alcançar a soberania alimentar e, como resultado disso, quase como um efeito dominó, também a segurança alimentar. Infelizmente, essas regiões não são maioria. Todo ano, o continente ganha US$ 3,2 bilhões em café e cacau. Todo ano, a Alemanha, sozinha, ganha US$ 4 bilhões re-exportando produtos de café e cacau importados da África. A África precisa de lideranças que não vendam simplesmente a produção de seus países, mas pensem em uma economia para a vida das pessoas.

Seja como for, a África tem grande potencial de alcançar a soberania alimentar em todas as suas regiões e, ao mesmo tempo, construir a organização feminista e o poder popular. Isso, obviamente, só será possível quando algumas medidas forem tomadas. Entre elas estão reformas agroecológicas para os sistemas alimentares, para garantir uma relação melhor entre trabalho e natureza, e melhoria na nutrição e na saúde das comunidades, principalmente das mais pobres. Isso também ajuda a prevenir e combater doenças como Covid-19 e câncer, entre outras. A soberania alimentar garante a diversificação dos meios de vida e a defesa da dignidade e do trabalho das mulheres do campo, maiores responsáveis por esse setor na África. A soberania alimentar faz parte de um processo radical de promoção e autonomia da população para reviver o solo e a terra, cultivar plantações fortes e diversificadas e construir ecossistemas e comunidades resistentes, sem exploração. Para isso, contamos com sistemas de produção inovadores baseados no conhecimento ancestral e no atendimento de necessidades nutricionais, culturais e espirituais do povo africano.

Assim, a África encontraria um bom caminho para a soberania alimentar, ainda não alcançada na maioria dos continentes do mundo.

Sefu Sanni é da Marcha Mundial das Mulheres no Quênia. Também é responsável por projetos especiais e correspondência da Nairobi Young Feminists (Jovens Feministas de Nairóbi).

Traduzido do inglês por Aline Scátola

Texto originalmente escrito em inglês

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