Os feminismos populares e as lutas transnacionais da Marcha Mundial das Mulheres

27/10/2021 |

Por Carmen Díaz

O repertório de ação e reflexão da Marcha Mundial das Mulheres para construir um feminismo popular, antirracista e antissistêmico.

A história do feminismo é escrita com muitas vozes e a partir de diferentes estratégias políticas, já que nós, mulheres, vivemos múltiplas opressões: patriarcado, capitalismo, racismo, colonialismo e heterossexismo. Embora essas problemáticas sejam diversas, nós, feministas, temos uma luta comum pela igualdade, liberdade e autonomia.

Nos referimos ao feminismo popular como a luta para transformar as relações de opressão entre homens e mulheres. “Popular” implica a ideia de que a mudança social é realizada junto com o povo, não só por e para as mulheres, isso é, não se trata apenas do pertencimento a um grupo de base, mas de uma aspiração política de transformação à esquerda.                                                              

Na América Latina, o feminismo popular está articulado com lutas políticas mais amplas. Mulheres dos setores populares foram se identificando com o feminismo sem renunciar a seus objetivos sociais, políticos e de classe. Autoras como Georgina Méndez, Lorena Cabnal e Aura Cumes também enfatizaram a descolonização do feminismo latino-americano. O patriarcado é vivenciado de forma diferente em um contexto de colonização e escravidão: “seria muito lamentável esconder essas assimetrias sob o argumento falacioso da universalidade de uma forma de ser mulher”.[1]

A articulação de organizações e movimentos na Marcha Mundial das Mulheres é um exemplo de transnacionalização das lutas pela base. Embora a Marcha tenha uma visão internacionalista, ela está profundamente ancorada em grupos locais. A plataforma e o marco discursivo desse movimento global estão intimamente vinculados às questões locais. A construção de plataformas comuns de ação requer um processo contínuo de representação e deliberação através de diversos espaços e escalas. Isso contribui para a construção da identidade do movimento, pois “à medida que a Marcha foi buscando progressivamente se ancorar nas lutas cotidianas das mulheres ao redor do mundo, ela se tornou sensível à diversidade que emana dos espaços e práticas políticas dos locais geográficos”.[2]

A Marcha reconhece a diversidade das mulheres, apontando as imbricações entre sistemas de opressão: patriarcado, capitalismo, racismo e colonialismo. As mulheres integrantes do movimento são os sujeitos políticos da transformação da vida no cotidiano. Através da educação popular, propõem alternativas para mudar essas realidades.

Seu repertório de ação vai mudando de acordo com a cultura política de cada região, mas a ênfase continua sendo no poder de mobilização, nas ações feministas de rua, transgressoras e criativas, vinculadas à formação baseada em metodologias da educação popular, a partir da consciência de uma solidariedade internacional ancorada em processos locais.

Mulheres, sujeitos de emancipação em aliança com movimentos antissistêmicos

A Marcha enfatiza que as mulheres são as protagonistas de suas transformações. As militantes vêm de grupos de base de mulheres, de setores populares cuja militância está enraizada no âmbito local comunitário. Muitas vezes, elas estão vinculadas a organizações mistas, priorizando as alianças com organizações camponesas e sindicais.

As mulheres não precisam se assumir feministas como condição prévia para serem parte da Marcha. Como escreveram as militantes Miriam Nobre e Wilhelmina Trout, “o que queremos é que todas as militantes se identifiquem com o feminismo durante o processo”[3]. A militante Sandra Morán se refere ao feminismo da Marcha como “a expressão das mulheres de diferentes setores populares, que acolhem o feminismo como uma aposta e uma proposta que ajuda a mudar suas vidas e a atuar, inclusive, organizadas em outros movimentos”.

Por esse motivo, a Marcha acompanha processos participativos para que as mulheres possam construir condições para a organização coletiva e enriquecer o processo de conscientização sobre as causas de suas opressões. Durante sua intervenção no 9º Encontro Internacional em São Paulo, em 2013, Miriam Nobre, da MMM do Brasil, explicou a importância dos espaços de diálogo e intercâmbio para a construção do movimento:  

Retomamos a discussão diversas vezes nos espaços de intercâmbio até que a questão amadureça e possamos ter um posicionamento, mas isso leva tempo. As zapatistas dizem que seu movimento caminha no ritmo da mais lenta, para que ninguém fique perdida. Temos o compromisso político de respeitar o tempo de todas, para que se sintam parte do nosso movimento. Nossa solidariedade não é externa, é de empatia, de se colocar nesse lugar e sentir um pouquinho a dor das outras, de compartilhar a energia e se olhar de outra forma. Essa empatia nos faz construir um sentimento forte e ampliar nossa agenda.

Outra característica da Marcha que reverbera o feminismo popular são as alianças com outros movimentos sociais populares para resistir e construir alternativas ao capitalismo e ao patriarcado. Essas alianças não significam apenas a “soma” de demandas, mas o compartilhamento de formas de ver as questões integralmente. No boletim interno daquele 9º Encontro, o movimento abordou esse tema: 

 Nossa luta feminista é por outro modelo que possa garantir o direito das mulheres a uma vida livre e sem violência, com igualdade entre homens e mulheres, com justiça social, que incentive a solidariedade entre as pessoas e seja sustentável. Por isso entendemos que as alianças das mulheres com outros movimentos sociais são essenciais para fortalecer nossa resistência e avançar rumo à superação do patriarcado e do capitalismo de uma só vez.

A educação e a comunicação popular são ferramentas de transformação

A Marcha utiliza as metodologias de educação popular, seguindo a tradição de Paulo Freire, como ferramenta para a formação política do movimento. Em uma entrevista concedida em junho de 2015, em Montreal, Sandra Morán, da Guatemala, disse que “precisamos de processos formativos que nos permitam descobrir a nós mesmas. Não é um exercício de aprendizagem de categorias e conceitos. É um exercício de descoberta, de formação e de reconhecimento próprio”.

Antes dos debates e das decisões, são realizadas análises de conjuntura em que os acúmulos do feminismo são recuperados para construir uma base comum. Essa formação é fundamental para formular as críticas aos sistemas de opressão e para produzir alternativas a partir das experiências das próprias mulheres. Como Sandra Morán salientou, trata-se de construir um sujeito político desenvolvendo três elementos: uma compreensão comum da realidade; um projeto político transformador; e o acúmulo de forças a partir da experiência e prática das mulheres, reconhecendo sua capacidade epistêmica.

A formação feminista popular não é um ato teórico, “ela passa pelo corpo, precisa do simbólico, das emoções, das experiências. É um processo que vai sendo trilhado, não começamos do zero”, disse Sandra, durante uma intervenção em um encontro regional das Américas realizado em Cajamarca, no Peru, em outubro de 2015.

Os processos de formação ajudam a construir a solidariedade internacional entre as mulheres e os povos. Na entrevista, Sandra levantou questões fundamentais: “como fazemos uma luta antissistêmica que nos permita ver todas as opressões e as consequências delas na vida concreta das mulheres? (…) Temos uma vida cheia de preconceitos, cheia de fobias, cheia de medos. E muitos deles são obstáculos que não nos permitem ser solidárias. São coisas sobre as quais precisamos falar, refletir, tomar consciência. Isso se faz com processos de formação e espaços de reflexão”.

Junto a isso, a comunicação popular aproveita as novas tecnologias e a arte como elementos estratégicos para o movimento. A comunicação a serviço dos movimentos é uma ferramenta contra-hegemônica fundamental para a memória coletiva das lutas e das vozes das mulheres. A aposta em processos de formação e educação popular permitiu encarar questões mesmo que não houvesse consensos sobre elas. Um exemplo é a compreensão da heteronormatividade e dos direitos das lésbicas, como explicou a militante Celia Alldridge, da MMM do Brasil, em setembro de 2013:

Não nos esquivamos de questões ou assuntos que não são fáceis, para os quais não temos necessariamente uma única posição internacional, mas que são fundamentais na vida de muitas mulheres. Este ano, foi a situação específica das lésbicas e de como entendemos sua opressão. Mas em outros foi a prostituição, o aborto (…). Temos visto mudanças, mas não falsas mudanças, há realmente um aprofundamento de certos debates que nem sempre são confortáveis.

Reflexões finais

A Marcha contribuiu para o posicionamento do feminismo popular em âmbito transnacional, apostando em um feminismo ancorado nas diversas realidades socioeconômicas, culturais e geracionais das mulheres que o constituem. Suas estratégias se caracterizam por privilegiar ações feministas de rua ligadas a processos de educação e comunicação popular, reivindicando, na tradição da esquerda popular latino-americana, a articulação de lutas anticapitalistas, antipatriarcais e anticoloniais.

Através da educação popular, a Marcha construiu processos de reflexão e de construção de agendas comuns, alianças e solidariedades transnacionais, onde não há uma rota ou estratégia única. Alianças com movimentos como a Via Campesina e Amigos da Terra fortalecem as lutas pela despatriarcalização, desmercantilização e descolonização, com enraizamento local e aspirações internacionalistas, em marcha, até que todas sejamos livres.


[1] A citação é do artigo de Aura Cumes “Multiculturalismo, género y feminismos: mujeres diversas, luchas complejas” (2009, p. 34), in Participación y políticas de mujeres indígenas en contextos latinoamericanos recientes.

[2]  A citação está na página 221 do artigo de Janet Conway (2008) “Geographies of Transnational Feminisms: The Politics of Place and Scale in the World March of Women”. Social Politics: International Studies in Gender, State & Society, Summer, Vol. 15, 2: 207-231.

[3] Miriam Nobre e Wilhelmina Trout. “Feminismo en la construcción colectiva de alternativas. La Marcha Mundial de las Mujeres en el FSM”. Contexto Latinoamericano, 7, 2008.

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Carmen Díaz é militante da Marcha Mundial das Mulheres no México e professora-pesquisadora. Em 2021, publicou o capítulo “Transnational Shifts: The  World March of Women in Mexico” [Mudanças transnacionais: a Marcha Mundial das Mulheres no México],  no livro Transnational Feminist  Itineraries: Situating Theory and Activist Practice [Trajetórias feministas internacionais: contextualizando a teoria e a prática ativista]. Este texto é uma síntese de um artigo mais extenso que foi publicado em Latin American Perspectives, baseado no trabalho de campo realizado com ativistas da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil, Peru, Guatemala e México, para sua tese de doutorado, entre setembro de 2012 e novembro de 2015.

Edição e revisão da tradução por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Luiza Mançano
Marcha Mundial de las Mujeres

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