Traduzir e transformar: a tradução na construção do feminismo internacionalista

26/08/2022 |

Por Aline Scátola

A tradutora Aline Scátola compartilha reflexões sobre o papel político da tradução indireta para a articulação entre mulheres e seus conhecimentos

A tradução pode ser ferramenta tanto de opressão quanto de resistência. O colonialismo sempre explorou sujeitos marginalizados como tradutores e intérpretes para seus próprios fins. No território que se tornaria o Brasil, a partir do século 16, os europeus lançaram degredados (condenados por crimes) portugueses em meio a comunidades indígenas para aprender suas línguas e depois servir como intérpretes e mediadores a serviço dos interesses das autoridades invasoras. Também raptavam pessoas indígenas – muitas delas, mulheres – e as levavam para países europeus para aprender as línguas e os costumes dos invasores para ajudá-los em suas ofensivas colonizadoras. Em outra forma de dominação política, jesuítas portugueses aprendiam a língua tupi para traduzir textos religiosos e catequizar os não cristãos.[1] Essas estratégias foram utilizadas não só aqui, como em muitos outros territórios colonizados.

Esse movimento de traduzir majoritariamente a partir das línguas do colonizador para as línguas das populações violentadas e usurpadas tem como efeito fortalecer a hierarquia entre o que merece ser conhecido e o que deve ser esquecido, entre visões de mundo que devem ser difundidas e aquelas que deveriam ser ignoradas – e, consequentemente, entre quais corpos e pessoas são legitimados e quais podem ser subjugados. Até hoje essa dinâmica atravessa as produções culturais e ideológicas, retroalimentando cânones formados, em sua esmagadora maioria, por homens brancos das elites intelectuais e econômicas do Norte global. Historicamente e até hoje, o que vale ser lido, relido, traduzido e sedimentado como cânone fica limitado ao que os donos do poder e os detentores dos meios de produção culturais (editoras, produtoras e distribuidoras) decidem que é importante.

Por outro lado, a tradução é também uma ferramenta que atravessa inevitavelmente a articulação de sujeitos políticos entre territórios linguísticos diferentes nos processos de resistência. Seja em encontros internacionais, nos meios de comunicação contra-hegemônicos, na difusão de textos e materiais políticos ou em mobilizações, é com o apoio da tradução (e da interpretação – ou seja, da “tradução oral”) que atores organizados em torno de pautas comuns conseguem dar visibilidade internacional a suas lutas, possibilitar o diálogo e a formulação de uma gramática política compartilhada, promover esforços de solidariedade, compartilhar informações, elaborações e experiências de luta, confrontar a narrativa hegemônica, fazer denúncias e fortalecer a incidência política no nível internacional.

No século 20, a tradução de textos estrangeiros contribuiu para o nacionalismo militante de movimentos anticoloniais – entre 1955 e 1980, o autor traduzido com mais frequência no mundo foi Lênin.[2] Nas últimas décadas, movimentos como a Marcha Mundial das Mulheres e a Via Campesina são exemplos de organizações que se fortalecem entre muitas vozes e muitas línguas, construindo estratégias políticas entre povos e movimentos ao redor do mundo para enfrentar lutas comuns contra o capitalismo, o patriarcado e o racismo em suas diferentes manifestações.

Para que cumpra esse papel, a tradução não pode ser compreendida apenas como a transposição de um discurso de uma língua para outra, ignorando as complexas relações que se estabelecem, não só entre línguas, como dentro de um mesmo sistema político-linguístico-cultural. Toda produção de discurso é carregada ideologicamente. Relações de poder, assimetrias, repertórios e acúmulos atravessam a linguagem mesmo entre pessoas que falam um mesmo idioma.[3] Esse tensionamento ganha outras dimensões complexas quando a interação se dá entre línguas, e mais ainda entre línguas hegemônicas e não hegemônicas, sujeitos em posição de poder e sujeitos marginalizados. Por isso a importância da consciência sobre o processo tradutório, desde os textos escolhidos para serem traduzidos, a partir de onde, para quais fins, até os efeitos de diferentes escolhas discursivas. É preciso entender a tradução como prática – ética e política – que recontextualiza o discurso, consciente dessas tensões, mas também de suas potencialidades.

Tradução indireta

Um aspecto torna o desafio da tradução ainda mais sensível: quando não se tem acesso ao texto ou discurso na língua em que foi escrito ou proferido, mas apenas por meio de um material já traduzido – por exemplo, um texto traduzido do árabe para o português a partir de sua versão em inglês. A isso chamamos de tradução indireta.

Há uma visão comum de que a tradução indireta é menor, mais imprecisa e insuficiente e deve ser, portanto, evitada a todo custo. No entanto, essa visão ignora que a tradução indireta pode ser muitas vezes uma estratégia para confrontar o vazio de acesso a vozes e elaborações não hegemônicas. Ao possibilitar o intercâmbio entre povos e culturas na direção Sul-Sul global, por exemplo, a tradução indireta pode contribuir para inverter a lógica da mão única da tradução colonialista, interessada em levar visões de mundo de uma cultura hegemônica para uma cultura subalternizada. É com o apoio da tradução, muitas vezes indireta, que se pode acessar e construir outros diálogos dentro e fora das rotas históricas do escravismo e do colonialismo.

Capire

Como tradutora do portal Capire, passo agora a uma breve reflexão sobre uma experiência de feminismo internacionalista pela perspectiva da prática tradutória. O projeto nasce com a necessidade intrínseca da tradução indireta, uma vez que sua equipe tem como língua base de comunicação e trabalho hoje o português brasileiro. Os conteúdos, vindos de mulheres que vivem e atuam politicamente em todas as partes do mundo, são publicados ao mesmo tempo em pelo menos quatro línguas.

Com recursos e tempo limitados, não seria possível ter à disposição uma equipe que contemplasse todas as direções e pares linguísticos para todas as línguas dos territórios com que Capire dialoga. Por exemplo, em uma entrevista conduzida em inglês, seriam necessárias ao menos três tradutoras que trabalhassem dessa língua para o espanhol, o francês e o português. Para um conteúdo em turco, mais quatro. Para outro em coreano ou em árabe, ainda mais quatro tradutoras para cada idioma. Nos projetos que apelidamos carinhosamente de “Torre de Babel”, em que os materiais chegam a ter trechos originalmente nas quatro línguas de trabalho de Capire (ou mais), quantas tradutoras feministas seriam necessárias para viabilizar a publicação sem passar pela tradução indireta?

Foi apenas com o apoio da tradução indireta, por exemplo, que tivemos a oportunidade de conhecer a atuação das mulheres camponesas da Coreia do Sul. A entrevista, conduzida pela equipe brasileira, contou com a interpretação de uma militante da Via Campesina, entre coreano e espanhol. Sem o recurso da tradução indireta, não teríamos acesso à produção poética de Al Khadra, que criava oralmente em hassani poemas em defesa da autodeterminação do povo saaraui. Parte de sua produção foi transcrita em árabe e chegou às línguas ocidentais via tradução para o inglês, idioma que serviu de base para nossas traduções em Capire. Quantas pessoas estariam capacitadas a traduzir diretamente do hassani para o português, por exemplo?

É também a partir da triangulação entre línguas que se fortalecem as trocas de experiências de luta com as mulheres árabes. A publicação de textos produzidos originalmente em árabe ou traduzidos para o árabe só é possível graças à relação entre autoras, tradutoras e editoras, pautada pela preocupação com a língua em si, mas também com o vocabulário político feminista.

Entender essa prática de forma coletiva nos ajuda a enfrentar os desafios da tradução indireta, atentas a compreender o contexto do texto “original” mesmo quando não é nossa língua de trabalho e, ao mesmo tempo, refletir sobre as implicações de recontextualizá-lo em outra língua.

A tradução indireta pode e deve ser ética, responsável, cuidadosa e ciente das consequências que pode produzir, mas jamais se transformar em um impeditivo para a produção de novos caminhos de compartilhamento de saberes, cosmovisões, experiências, vozes, projetos de mundo, estratégias políticas, laços afetivos e imaginários.

Se a tradução indireta sofre com uma limitação pela falta de acesso ao “original”, o dito original, quando não é produzido nos lugares e pelos sujeitos hegemônicos, também enfrenta uma limitação intransponível se for a única fonte possível para a sua própria propagação.

Mesmo o que é original e o que é derivado está aberto à reflexão. Os estudos feministas da tradução já questionam há décadas a dicotomia da autoria do original, entendido como masculino, ativo, positivo, puro e fiel, em contraposição à tradução, tratada como feminina, passiva, negativa, impura e infiel. Há metáforas heteropatriarcais que produzem e reproduzem esse imaginário em expressões como “belas infiéis” e “tradução, traição”, uma retórica que sexualiza e feminiliza a tradução, em uma oposição que ecoa aquela entre trabalho produtivo (o texto original) e reprodutivo (o texto traduzido).[4]

Outras metáforas compreendem a tradução como construção de pontes, o lugar entre culturas, a mediação, a ferramenta possível para a comunicação interlinguística e intercultural. Mas é possível ainda posicionar a tradutora em um sistema mais amplo que abarca as duas (ou mais) línguas e culturas, e não um lugar “entre elas”.[5] A tradutora não é uma agente externa, descolada, apenas a serviço da fidelidade ou da intermediação. Nem é um receptáculo de transposição de discursos. No ato de traduzir, faz-se ao mesmo tempo leitora do original, produtora da tradução e articuladora do processo pelo qual torna isso possível.

A tradução indireta proporciona a continuidade desse caminho tortuoso quando as vias diretas são obstruídas pelos obstáculos da marginalização de línguas. Produzida coletivamente, amplia esse sistema, triangula entre línguas, salta barreiras e fura bloqueios. Mesmo que no processo saia com o pé quebrado, sai viva e produzindo um outro tempo num espaço antes inabitado.

As línguas de origem europeia, quando ressignificadas por seus falantes nos territórios colonizados ao longo dos séculos, deixam de ser exclusividade do colonizador, reapropriadas e transformadas com diferentes formas, ritmos, tradições e referências.[6] O espanhol falado pelas mulheres de Cuba, o português falado em Moçambique e o francês da Costa do Marfim não são os mesmos daqueles falados nos países que colonizaram esses territórios. Ainda assim, há tensões nessas relações linguísticas: a militante feminista moçambicana Nzira Deus, por exemplo, aponta neste artigo o problema de se utilizar apenas o português em espaços de decisão pública em comunidades de Moçambique onde boa parte das mulheres não fala a língua do colonizador. Isso nos leva a refletir sobre como esses espaços oficiais as excluem por não ter ferramentas de tradução, interpretação e vínculo com as pessoas dos territórios. Também demonstra a importância de se ter pessoas-chave nos territórios, militantes populares que não deixam ninguém para trás e ajudam na compreensão mesmo de quem não fala a língua oficial do país.

Um projeto tradutório como parte de um projeto político feminista anticapitalista e antirracista não pode se limitar por visões colonizadas sobre o que é um ideal sobre um texto ou uma língua. Nem deve se basear em uma hierarquia monolítica de qualidade do texto em que a primeira escrita é o “original puro”, a tradução para uma segunda língua é “infiel” e as traduções indiretas são subprodutos ainda mais precários. Decidir o que e quem traduzir, para quais línguas, com quais escolhas discursivas, sob quais condições, para quais fins e a partir de quais princípios – tudo isso faz parte de políticas tradutórias que podem servir como ferramenta de enfrentamento ao capitalismo neoliberal global, ao imperialismo e ao heteropatriarcado racista e classista. É nessa perspectiva que desenvolvemos a prática tradutória em Capire.


[1] Os pesquisadores Dennys Silva-Reis e Marcos Bagno discorrem sobre essa história em Os intérpretes e a formação do Brasil: Os quatro primeiros séculos de uma história esquecida.

[2] Estatísticas da Unesco, segundo indicado pelo teórico da tradução Lawrence Venuti em Escândalos da Tradução.

[3] Lawrence Venuti discute essa questão em A invisibilidade do tradutor.

[4] A pesquisadora Lori Chamberlain discute o tema no artigo Gênero e a metafórica da tradução.

[5] Essa elaboração é defendida pela acadêmica Maria Tymoczko em Ideologia e a posição do tradutor: em que sentido o tradutor se situa no “entre”(lugar)?.

[6] A tradutora e teórica Denise Carrascosa desenvolve essa reflexão em Traduzindo no Atlântico Negro – por uma práxis teórico-política de tradução entre literaturas afrodiaspóricas.

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Aline Scátola tem formação em jornalismo e letras e é tradutora há mais de dez anos no Brasil. Nos últimos anos, tem atuado como tradutora junto a organizações e movimentos populares e contribui com Capire desde a criação do portal, em 2021.

Edição de Helena Zelic

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