A luta pela soberania alimentar é a luta pela vida

09/06/2021 |

Por Perla Álvarez

Perla Álvarez, da CLOC-Via Campesina, escreve sobre a soberania alimentar como resistência e prática dos movimentos camponeses e indígenas

CLOC-Via Campesina Paraguai

Quando ouvimos falar sobre agronegócio entre os setores populares organizados e não organizados do Paraguai, pensamos imediatamente em “sojeiro”, “brasileiro”, “menonita”¹. Por quê? Desde quando essas palavras aparecem no nosso entorno? Do que realmente estamos falando quando as usamos? Vamos analisar a palavra “agronegócio”: negócio do agro, negócio da terra… aqui está o segredo. Essa palavra comporta um conceito de terra diferente daquele que temos nós, camponesas, camponeses e povos indígenas.

Geralmente, a terra é tratada como uma mercadoria, um produto que se compra e se vende e, além disso, gera lucro. A terra (o agro) é explorada comercialmente. Já não é vista como  “tekoá”, já não é o “lugar de onde somos”, “o lugar onde vivemos, produzimos e nos reproduzimos”, “o lugar onde desenvolvemos nosso ser”, “o lugar de onde somos e temos nossa cultura”.

Para o agronegócio, a terra é negociável, medida em uniformidade, não em diversidade. Em toneladas de grãos e não em sementes. Em produtividade e não em inocuidade. Em dólares e não em vida. Em curvas de nível e não em espécies de árvores e pássaros que desaparecem.

Via Campesina

O agronegócio é a exploração capitalista da terra, colocando nela tudo que pode gerar  lucro e acumular riquezas em tempo recorde. Para isso, a terra é submetida a um tratamento “inumano”. Inumano? A terra não é humana. Diga você se há humanidade na fertilização artificial, na lavragem constante do solo com maquinário pesado, nas constantes fumigações com venenos, na falta de descanso e na mesma rotina o tempo todo.

É assim que tratamos nossos corpos? É assim que alimentamos nossos corpos? Alimentos? Quem disse alimentos? O agronegócio não fala de alimentos, fala de “commodities”. A terra, para o agronegócio, não tem vida, é tratada como uma máquina. É assim desde que o capitalismo se meteu de fato no campo.

Sim, é claro que ele já estava ali antes, mas bem timidamente: na etapa final da produção, quando não não pagava o preço justo ou quando começou a vender sementes ou oferecer venenos como aliado “do camponês”. Com o agronegócio, o capitalismo invadiu o campo de uma forma insuspeita e mudou tudo, até mesmo o pensamento.

Como ele mudou o pensamento? O que isso significa? Geralmente, quando falamos de agronegócio, estamos nos referindo a grandes extensões de plantações empresariais e comerciais. Vemos o agronegócio em caminhonetes luxuosas, passeando pelos povoados, vemos grandes tratores de formas diversas, quase fantasmagóricas, robôs que circulam nas ruas levantando poeira tóxica. Vemos “o sucesso”.

Mas também pensamos: “em tão pouco tempo ficou cheio de grana”, claro, “não precisa trabalhar muito para acumular, o veneno e as máquinas fazem o trabalho”, “ganha sem nenhum esforço”. E pensamos: “se eu fizer o mesmo, posso ser igual”. E tentamos, mas não funciona para nós da mesma forma ou, ainda, nos afastamos da comunidade, deixamos de ser parte dela e passamos a ser “donos de” algo.

Começamos a usar herbicida “mata mato” (glifosato) para não ter que carpir, compramos sementes transgênicas, fizemos dívidas para comprar veneno, mandamos passar o trator para não usar o arado, alugamos os tratores porque não dá para comprar e sequer conseguimos crédito porque não temos a propriedade “legal” da terra para oferecer como garantia. Atuamos como o agronegócio. O agronegócio é como esse “sujeito” bem-sucedido, esse modelo que copiamos sem querer querendo.

O agronegócio entrou no campo, mas também nas nossas mentes. Plantou sementes transgênicas na terra  e um novo pensamento no nosso cérebro.

Como processo complexo de acumulação capitalista no campo, que adota um pacote tecnológico caro (maquinários, sementes híbridas ou transgênicas, agrotóxicos/venenos, tratores, etc.), o agronegócio se mostra amigável, acessível e tentador. Assim, ele foi entrando nas mentes. No campo, entrou despejando comunidades; nas mentes, despejando saberes. O que nós sabíamos se tornou velho, desajustado, fora do tempo, romântico. Mas, como consequência para as comunidades camponesas e indígenas, o campo foi desabitado, o bosque desapareceu, as sementes variadas se perderam, a alimentação mudou, as cabeças ficaram frustradas, não nos tornamos novos ricos.

Ficamos mais pobres, perdemos a terra, fomos privados dos nossos saberes. Os velhos ricos continuaram enriquecendo, com alguns poucos que ficaram com as “migalhas”. Isso porque o agronegócio está ligado ao capital internacional e, assim, engrossa o caldo dos bancos internacionais, aumentando  o capital das empresas multinacionais.

Conference La Via Campesina – 8 june – Youth assembly

Soberania alimentar, direito dos povos

Diante disso, na resistência camponesa e indígena, nós desenvolvemos um novo conceito para superar esse pesadelo. Há 25 anos falamos de soberania alimentar, um conceito que parte da prática de resistência e, hoje, também da resiliência em épocas de crise. Definimos a soberania alimentar como o direito coletivo dos povos de definir nossos próprios sistemas alimentares: como produzir, o que produzir, com quem produzir. E é também o direito de quem consome: saber o que consome, de onde vem, como foi produzido e em quais condições.

 É o direito de comercializar de forma justa, em um intercâmbio baseado no trabalho empregado. Também é o direito da natureza e da terra de serem respeitadas como doadoras de vida e de cuidado com o meio ambiente.

A soberania alimentar é a reivindicação dos povos do campo que, ao mesmo tempo, envolve a cidade. É um conceito de grande complexidade, mas simples de entender. Ele se relaciona a outras reivindicações históricas do movimento camponês e incorpora as aprendizagens dos povos indígenas.

Para começar, devemos partir da base material, a terra. A terra é um bem comum, não uma mercadoria. A terra que ocupamos para viver, produzir e nos reproduzir é o território. O território é o tekoá. O lugar de onde somos. O território inclui a terra produtiva, o chão que habitamos, o meio ambiente natural e cultural, as pessoas, os saberes, as memórias, os sonhos. O território é o lugar onde produzimos alimentos para o corpo e para a alma.

A partir disso, a soberania alimentar inclui a reforma agrária – uma nova reforma agrária que não se limite à distribuição de terra, mas que se estenda à restituição territorial, à reconstrução do território, à restauração do meio ambiente, à recuperação das sementes, à produção de alimentos saudáveis e nutritivos, à recuperação das terras improdutivas, ao cuidado com a natureza, à construção da comunidade, à recuperação da autonomia e ao poder sobre o território, poder para cuidar dele, poder para nos cuidarmos entre nós.

Por isso é importante nos organizarmos no campo e na cidade para voltar ao campo, para semear dignidade e colher esperanças e solidariedades. Vemos isso agora, mesmo durante esta pandemia: mesmo com muito pouco, quanta comida Ñande Yvy – nossa terra – nos dá e quanto mais nos dará se cuidarmos dela! Só com soberania alimentar vamos poder nos cuidar de forma mútua: a terra cuida de nós, nós cuidamos dela.

Assim, a soberania alimentar inclui a agroecologia como um modelo de produção oposto ao agronegócio. O agronegócio se baseia na monocultura extensiva e intensiva de sementes transgênicas, com uso de produtos químicos industrializados, tecnologia pesada e alto consumo de combustíveis fósseis e outros insumos. Por outro lado, a agroecologia se propõe a recuperar os saberes ancestrais, incorporando novos conhecimentos que sejam compatíveis com a proteção do meio ambiente, da natureza e das pessoas.

A agroecologia não é só um modelo ou um modo de produção, é uma forma de vida. Incorpora os conhecimentos sobre permacultura ao bem-estar geral das pessoas e da natureza em todos os contextos. Dessa forma, a soberania alimentar inclui o feminismo com identidade camponesa, indígena e popular.

A soberania alimentar não só reconhece o papel fundamental das mulheres no exercício do direito a uma vida saudável e digna. Ela também considera que as mulheres são  os principais sujeitos de mudança, enfocando a luta contra a violência a partir do trabalho coletivo, aprendendo com a natureza e retribuindo a ela o favor do cuidado.

Dessa forma, a soberania alimentar contempla os direitos camponeses, dos povos indígenas e do meio ambiente. Em um contexto globalizado, ela inclui e determina um novo olhar para a integração regional e internacional. Isso é, a soberania alimentar não significa fechar-se no próprio país, recusar o comércio internacional, recusar o intercâmbio necessário. Significa justamente permitir que povos, nações e países tenham o direito de se desenvolver de forma autônoma e cooperativa.

A soberania alimentar é uma contribuição das e dos camponeses de todo o mundo diante das  limitações da segurança alimentar proposta pela FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]. Para garantir nossa alimentação, como um ato político e cultural, precisamos de soberania e autonomia. Esses aspectos da alimentação exigem que os Estados e os governos garantam, protejam e promovam a soberania alimentar.

Por tudo isso,  é necessário que haja uma organização fortalecida, tanto comunitária quanto nacional, para promover ações para alcançar a soberania alimentar como parte dos direitos camponeses. Esses direitos foram aprovados recentemente na Assembleia Geral da ONU [Organização das Nações Unidas], mas nosso país, o Paraguai, ainda não ratificou o texto. Essa deeação se torna uma ferramenta de luta para promover nosso direito à soberania alimentar e nosso direito à alimentação. A soberania alimentar permitirá que nos alimentemos de acordo com a nossa agenda, recuperando os saberes e sabores de nossas avós.

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Perla Álvarez, da Coordenação Nacional de Organização de Mulheres Trabalhadoras, Rurais e Indígenas (CONAMURI), integra o Coletivo de Direitos Humanos da Coordenadoria de Organizações do Campo-Via Campesina (CLOC-Via Campesina) América do Sul e o Coletivo Internacional sobre Direitos Camponeses da Via Campesina. Este texto foi publicado originalmente no livro Con la soya al cuello [Com soja até o pescoço] e no site da Via Campesina.


¹ Os menonitas são um grupo de denominações cristãs originado no norte da Alemanha e nos Países Baixos durante a Reforma Protestante do século 16. No Paraguai, são responsáveis por parte significativa da produção agrícola do país, principalmente com o monocultivo da soja e do milho. São denunciados por desmatamentos, alteração do equilíbrio do meio ambiente e contaminação das águas com agrotóxicos.

Edição por Bianca Pessoa e Helena Zelic

Traduzido do espanhol por Luiza Mançano

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