Mulheres resistem à apropriação de terras e à zona franca em região do Haiti

26/03/2021 |

Por Capire

Escola de formação feminista em agricultura está ameaçada pelo monocultivo para a Coca-Cola.

No Haiti, as mulheres trabalhadoras e camponesas em busca dos seus direitos criaram em 1986 a rede Solidariedade de Mulheres Haitianas [Solidarite Fanm Ayisyèn – SOFA] que desde então tem reunido e organizado a luta feminista no país. As mulheres agricultoras associadas à SOFA têm 13 hectares de terras destinadas à agricultura orgânica cedidas em 2017 pelo governo haitiano. Nesse espaço, localizado na comuna de Saint-Michel de L’Attalaye, acontece a Escola Agrícola de Agricultura Orgânica Délicia Jean.

Em maio de 2020, o território foi reivindicado por Andy Apaid Jr., um magnata haitiano conhecido por liderar o Grupo de 184, a coalizão que, em 2004, retirou do poder Jean-Bertrand Aristide (primeiro presidente haitiano democraticamente eleito) através de um golpe de estado em colaboração com os Estados Unidos. A ação de ocupação do território organizada por Apaid foi brutal com as militantes da SOFA e destruíram as cercas erguidas pelas participantes do projeto, que demarcavam um território de igualdade e de produção sem veneno e exploração. O objetivo da apropriação dessas terras é produzir estévia para fazer adoçantes para uso da Coca-Cola.

Durante o período de existência da Escola Agrícola, mais de 240 mulheres tiveram formação sobre técnicas de agricultura orgânica, o que as permitia uma produção maior e mais diversa, fortalecendo a soberania alimentar na região de Artibonite. O trabalho da SOFA no local também possibilitou a colheita e distribuição de sementes de diversos alimentos. As mulheres agricultoras são guardiãs de sementes em muitos territórios, e cumprem um papel fundamental para a diversidade da natureza, a ancestralidade e a alimentação das comunidades. 

Diante dessa agressão, a SOFA pressionou o Ministro da Agricultura Pierre Patrix Sévère, mas ele apenas indicou à organização que tentasse negociar diretamente com Apaid os direitos sobre a terra. A organização se recusou a seguir esse caminho, por entender que a desigualdade de poderes e interesses nesse tipo de negociação não poderia trazer vitórias populares. O ministro, então, notificou a SOFA com uma proposta de acordo com o usurpador. A proposta referendada pelo governo vai contra as leis haitianas sobre conflitos de terra.

Ao impedir que essas mulheres possam trabalhar em suas plantações, o governo regido pelos interesses do capital coloca em risco a segurança alimentar de diversas famílias. As ações violentas que expulsam as mulheres de seus espaços de luta e transformação são uma ferramenta sistemática para a ganância. Os industriais haitianos operam como intermediários de grandes empresas transnacionais de vários setores, como é o caso da Coca-Cola, em uma dinâmica imperialista.

O território

A Savane Diane cobre um território que atravessa três dos maiores departamentos agrícolas do país: o Norte, o Centro e o Artibonite. Devido à importância agrícola da região, a Savane Diane foi classificada pelo Ministério da Agricultura em 2018 como uma das cinco áreas prioritárias para garantir a autossuficiência alimentar do país. O bioma cobre cerca de 200 mil hectares e nele são produzidos todos os tipos de alimentos: ervilhas, quiabo, arroz, amendoim, cana-de-açúcar, painço, moringa, diversas variedades de frutas, além de plantas medicinais cuja produção foi de imensa importância na batalha contra a covid-19.

Porém, em 8 de fevereiro de 2021, o presidente Jovenel Moïse e o ministro da Agricultura tornaram a área uma zona franca para cultura de exportação, medida que dificulta a possibilidade futura do país de fornecer alimentos à sua própria população. Moïse, que se mantém no poder através de um golpe de estado, venceu as eleições em 2016 com o discurso de que iria alimentar toda a população.

Zonas francas, zonas de exploração

Em nota, Sabine Lamour, coordenadora geral da SOFA, ironiza a decisão de Moïse: “Em 8 de fevereiro de 2021, 24 horas após o término do mandato do Sr. Jovenel Moïse, foi publicado um decreto no jornal oficial Le Moniteur que traz a assinatura de um ministro que já não faz parte do governo de fato. O que demonstra que estas pessoas estão tão ansiosas para executar seus esquemas que, até mesmo o errado, eles o fazem da maneira errada”. As zonas francas são territórios destinados exclusivamente para produzir para o exterior. Esse tipo de concessão libera as empresas de pagarem impostos alfandegários ou à Direção Geral de Impostos [Direction Générale des Impôts – DGI] por 15 anos, em uma lógica tributária injusta,  alimenta, por um lado, o lucro das transnacionais e, por outro, o déficit e as dívidas em um país já empobrecido.

Declarar Savane Diane uma zona franca é permitir a destruição da natureza e da agricultura familiar. Nesse processo, as e os agricultores se veem obrigados a trabalhar nas fábricas, em particular na fábrica de fornecimento de estévia para a Coca-Cola. Suas vidas se tornam mais precárias, seu trabalho penoso é mal remunerado, e não há qualquer tipo de compensação social, pois não há justiça nesse processo. A população do Planalto Central, do Norte e de Artibonite se vê forçada a deixar o país para trabalhar nos canaviais da República Dominicana ou a fugir de barco e expor a própria vida aos riscos associados às más condições das viagens marítimas, sem qualquer garantia de que poderão entrar no país onde buscam se refugiar (essas pessoas ficaram conhecidas como “boat people”). Em outras palavras, a concessão reforça a insegurança alimentar  e o empobrecimento do país, incluindo a feminização da pobreza. 

O enfraquecimento da organização popular haitiana pelo Estado e pelo poder das grandes corporações está cada vez mais latente, ainda que invisível, como apontado por Islanda Micherline em vídeo enviado ao Capire. A situação política do Haiti é um assunto pouco falado nas mídias tradicionais internacionais, ação motivada pela lógica que vê com normalidade a violência e a usurpação de terras no sul global. Em março de 2020, uma média de 4,1 milhões de pessoas no Haiti não tinham o suficiente para comer¹. Agora, as atuais autoridades estatais do país, acompanhadas de industriais, querem levar uma parcela ainda maior da população à fome e à miséria. 

Quando a produção dos departamentos do Norte, Artibonite e Centro desaparecer e for substituída pela estévia, muito mais haitianas e haitianos sofrerão as dores da pobreza induzida. Por isso, a resistência permanente das companheiras agricultoras clama por solidariedade feminista internacional e exerce um papel fundamental: o de alterar essa rota da desigualdade, e retomar esse e todos os territórios do povo como  espaços de liberdade, dignidade e soberania.

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¹ Dado da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), utilizado na nota política da SOFA. 

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