Sarah Spatz, guerreira do Inferno

12/07/2023 |

Luciana Alfaro

Luciana Alfaro recorda a vida de luta de Sarah Spatz, migrante transgênero militante do movimento de moradia no Estado espanhol

Era setembro de 2020, eu estava ouvindo rádio enquanto fazia as tarefas de casa. Fazia sete meses que a pandemia tinha começado. Na rádio Hala Bedi Irratia era hora do programa “Suelta la Olla” (“Solte a panela”, em tradução literal). Anunciaram que você seria a entrevistada: agora no programa, Sarah Spatz fala sobre os acontecimentos no bairro Inferno, em Donostia, no País Basco.

Comecei a te escutar, fiquei maravilhada com a entrevista, maravilhada com seu relato, com a força que você transmitia e a clareza com a qual denunciava o racismo. Larguei tudo que estava fazendo só para ouvir você falar, Sarah.

Em meia hora, você recapitulou todo o racismo vivido neste país. Você denunciou a criminalização e a estigmatização da população que vive nas ocupações, o abuso policial, a estratégia de propaganda das autoridades para difamar a população que vivia no Inferno e fazer com que a sociedade não se solidarizasse com ela. Você criticou a falta de preocupação da prefeitura de Donostia em melhorar as condições da população e a prontidão para expulsar as pessoas e firmar contratos com o setor imobiliário. Você denunciou a “Lei da Mordaça” que proíbe filmar a má conduta policial, e disse que isso só demonstrava a falta de transparência das instituições. Você falou da divisão racial do trabalho, dos trabalhos que nós, pessoas migrantes, fazemos, e as pessoas brancas não.

É cotidiano o tratamento racista da polícia contra a população migrante, contra as pessoas negras e de origem árabe, que foram obrigadas pela polícia a deitar no chão da fábrica no Inferno. Enquanto isso, as pessoas que estavam presentes e falavam castelhano ou que estavam com os documentos regularizados — entre as quais estavam dois europeus — puderam ficar de pé, com os braços para trás, enquanto esperavam para serem liberadas. Já as pessoas racializadas foram tratadas como criminosas. Você disse: “por acaso os europeus e brancos não podem ser criminosos?”.

Gostei muito do seu apelo para que a sociedade também se envolvesse nisso, embora eu não saiba muito bem se esse é o caminho. Mas eu também acredito na solidariedade e na empatia com grupos que não compartilham os mesmos privilégios.

Lembro de suas palavras: “hoje eles vêm atrás de nós, amanhã de vocês, porque isso só vai crescer…”

Acabou a entrevista e fiquei apenas com as referências que você deu sobre quem era: brasileira, moradora da ocupação do bairro do Inferno, em Donostia-San Sebastián, que estava em situação regular como refugiada, que você teve que sair do Brasil porque, por ser uma mulher trans ativista, a direita tentou matá-la.

Quando o programa acabou, mandei uma mensagem para a Katia, minha amiga brasileira que vive em Donostia. Perguntei sobre você, mas ela não conseguiu nenhum contato seu. E acabei te esquecendo…

Quando o programa de rádio foi publicado no site da Hala Bedi, pensei que poderia aparecer alguma foto sua, mas não foi assim. Eu gostaria de tê-la conhecido, de ouvi-la de perto. Talvez seja pedir demais, mas eu gostaria de ter compartilhado a militância com você, porque também acredito que aquelas de nós que têm privilégios e condições, por menores que sejam, precisam usá-los para apoiar as pessoas que não têm. 

Três anos depois, agora em 2023, nós, da Rede de Mulheres Migrantes e Racializadas do País Basco, fomos convidadas a participar das atividades estaduais pelos 40 anos da ocupação. Nós não estivemos na linha de frente de ocupação desses espaços, chegamos a esses espaços depois, ao Kartzela Zaharra na cidade de Bergara, ao Txarraska, em Basauri… Não temos nosso próprio espaço. Como podemos estar em uma jornada de ocupação se não temos o privilégio de ocupar? Se continuam sendo espaços para pessoas brancas? 

Foi assim que você voltou à minha memória, porque você, sim, estava nas ocupações, era você quem tinha que estar naquela atividade. Liguei para a Kátia, pedi para ela procurar você, para não desistir. Depois de dois dias, ela me mandou uma mensagem: “Lu, a Sarah faleceu há um ano”. Eu fiquei gelada, triste. Mesmo sem ter conhecido você, senti um nó no peito.

Sabemos que essa é a realidade da vida, que todas nós teremos que partir, mas eu esperava conhecer você, e que você pudesse conhecer as minhas companheiras da Rede: Ceci, Fer, Karla, Leo, Vane, Flavia, Judith, Zarys, Mabel, Aura e Maria. Eu gostaria de saber seu corte de cabelo, como era sua boca, o formato do seu rosto… Será que você se parece com a Kátia ou com a Sônia, minhas duas amigas brasileiras?

Eu não consigo visualizar um corpo específico porque, com a diversidade de nossos territórios, é impossível imaginá-lo.

Mas, para terminar, quero lhe dizer que você tocou meu coração porque, como disse a poeta brasileira Cora Coralina:

Não sei… Se a vida é curta

Ou longa demais pra nós,

Mas sei que nada do que vivemos

Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Que você descanse em paz, Sarah. Onde quer que esteja, você segue viva em nós.

Sarah Spatz foi uma migrante trans brasileira. Ativista, viveu em Donostia, uma cidade do País Basco, e fez da ocupação do Inferno seu lar desde 2020. Ela morreu em novembro de 2021. Não houve autópsia porque seu exame de covid-19 deu positivo.

Luciana Alfaro é peruana e vive no País Basco. É integrante do Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, representando a Europa, e da Rede de Mulheres Migrantes e Racializadas do País Basco.

Revisão por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Luiza Mançano

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