A economia feminista é uma proposta e estratégia para a construção internacional do feminismo popular. Os princípios e conceitos-chave da economia feminista foram debatidos nos últimos dois encontros da Escola Internacional de Organização Feminista Berta Cáceres. A síntese desse acúmulo foi apresentada no vídeo abaixo, no último dia 21 de junho, como forma de inspirar as participantes a seguir o debate.
Os grupos de trabalho foram convidados a fazer um desenho coletivo da organização dos territórios para a sustentabilidade da vida. Desenhar junto é uma atividade muito utilizada em metodologias de educação popular feminista para expressar sínteses e exercitar outras formas de expressão. A proposta na modalidade online foi um desafio que os grupos responderam com criatividade e imaginação. “Queremos desenhar uma teia ou um espiral para representar os processos que sustentam a vida?” Logo chega-se ao entendimento de que a rede pode ser uma teia em espiral.
Os desenhos e apresentações dos grupos indicam que, quando organizamos os territórios colocando a vida no centro, nossa imaginação política se expande, assim como nossos horizontes emancipatórios.
“A vida no centro” não é algo abstrato. São vidas enraizadas em territórios e comunidades. São os seres humanos e a natureza. Foram destacadas as diversidades das formas econômicas e dos modos de vida que queremos sustentar. Os saberes, cosmovisões e ancestralidades são reconhecidos e transmitidos entre as gerações, como parte da organização comunitária, da educação e do pensamento coletivo em constante movimento.
Um território para a sustentabilidade da vida redistribui o cuidado, reconhece a interdependência, com respeito e liberdade, tornando-o coletivo, apoiado por recursos públicos e realizado em espaços comuns. O princípio da ecodependência, a natureza e seus elementos – fogo, ar, terra e água – compõem os desenhos. São territórios e espaços sem fronteiras, onde o rural e o urbano estão mais próximos e em conexão. Neles, a autogestão produz alimentos, roupas e insumos, os mercados se constroem com base na reciprocidade, solidariedade e complementariedade, e o trabalho não é alienado.
São territórios com outra forma de fazer política, com poder popular, consciência feminista, democracia direta e assembleias para definir o que é importante para sustentar a vida. Outras formas de justiça restaurativa e responsabilização são criadas e colocadas em prática. Nossos corpos e sexualidades dissidentes são visíveis. Os grupos indicaram a centralidade do respeito, da igualdade, do amor e do desejo como princípios e também práticas para uma vida digna e livre de violência. O tempo para o lazer, para o convívio, para a música, a roda, a fogueira e a festa compõem os territórios organizados para a sustentabilidade da vida.
Esse exercício de síntese chamou a atenção para nossos pontos de partida: nosso cotidiano e nossos conhecimentos. Como mulheres e pessoas não binárias em movimento, sabemos que compor esse horizonte emancipatório nos organiza para a luta nas condições concretas em que estamos, com todos os desafios envolvidos. A retomada de territórios corpo-terra, da propriedade coletiva, a regeneração de espaços vitais contaminados, acaparados e desertificados, o desmantelamento do poder corporativo e a paz são condições de possibilidade para essa transformação.
Falamos em transição e revolução. Na necessidade de construção de sujeitos coletivos, plurais e fortalecidos, para fazer essa disputa rompendo amarras e nós do poder capital. Situamos essa elaboração na construção de contra-hegemonia, e reconhecemos que os caminhos e contextos são diversos. Não encontramos receitas prontas na economia feminista, mas princípios a serem movimentados por sujeitos coletivos.
Compreendemos os grandes desafios para construir as mudanças que almejamos, e conhecemos a força desse sistema de dominação. Mas, quando olhamos para o que construímos em termos de propostas, experiências e organização, de valores e ideias, encontramos a certeza da nossa força que só a luta coletiva nos dá.
Nossas lutas locais, as resistências nos territórios e as experiências concretas estão interrelacionadas com nossas grandes mobilizações, das lutas contra as transnacionais, contra o livre comercio, contra a guerra. O que conecta as diferentes lutas é o sentido do que queremos: desmantelar esse sistema e sua lógica de acumulação e dominação, e colocar a sustentabilidade da vida no centro da organização da sociedade, com solidariedade e reciprocidade. Não deve haver contradição entre nossa visão de ruptura para outro modelo (sociedade) e as propostas de transição. Nossas experiencias concretas construídas com base na sustentabilidade da vida nos dão os elementos e os princípios de por onde orientar as propostas de transição. Fortalece nossa aposta pela desmercantilização da vida e construção dos comuns. Isso exige outras forma de nos organizar em nossas comunidades, mas também nos Estados, nas regiões, relacionadas com o poder popular e a busca de emancipação. Por isso, quando olhamos para nossos desenhos coletivos, vemos a rede que sustenta a vida tecida como uma teia em espiral, porque pensamos na horizontalidade e não em hierarquias. Essa construção nos permite colocar outros horizontes do que é liberdade e prazer.
“Temos uma proposta, precisamos de movimento”
No dia 22 de junho, a Escola iniciou o último bloco de formação, focado na construção de movimento. Essa discussão começou com uma retomada dos elementos e desafios levantados ao longo dos últimos três meses em que nos reunimos nessa formação feminista internacional. As companheiras de Cuba Marilys Zaya e Yohanka León del Río apresentaram uma síntese desses acúmulos.
Elas destacaram que a tarefa de construir o movimento feminista popular encara desafios internos relacionados com a dinâmica e funcionamento dos nossos movimentos. Nossa diversidade e pluralidade é uma fortaleza, e se potencializa quando enfrentamos as relações de desigualdade, hierarquias, invisibilidades e violências nos processos políticos. A partir das nossas organizações, apresentamos à sociedade visões e disputas para uma transformação sistêmica que coloque a vida no centro.
Nossos movimentos apostam na construção de lutas em aliança, nas quais a solidariedade é um princípio e uma prática. A formação, na perspectiva da educação popular feminista, articula desafios intergeracionais e se potencializa com as alianças entre pessoas e movimentos trans, cis e dissidentes de gênero. Nos fortalecemos quando nossa formação tem sentido emancipatório, revitaliza idiomas e cosmovisões indígenas. A comunicação feminista e popular é estratégica nas conexões entre nossa organização e a disputa de projetos de sociedade. As formas de comunicar têm o desafio de praticar a crítica e construir soberania tecnológica.
Carmen Diaz, da Marcha Mundial das Mulheres no México e uma das facilitadoras da sessão, colocou ênfase em todo o trabalho militante necessário para construir o feminismo popular, destacando os aprendizados da Escola. Aprendemos a construir sínteses pelo registro e escuta nos grupos de trabalho, nos dedicamos a facilitar as construções de conhecimento comum, nos familiarizamos com ferramentas tecnológicas antes desconhecidas para a maioria de nós, e compreendemos como a justiça linguística é estratégica para a construção de movimento global. Todo esse trabalho e energia coletiva sustenta nossos movimentos.
Carmen destacou que nossa história e nossa memória nos permitem resistir e nos cuidar coletivamente. O sentido da nossa construção é encadeado: fortalecer nossos movimentos para fortalecer nossas alternativas. Quando construímos nossas alternativas, também fortalecemos nossos movimentos. Partimos dos nossos conhecimentos e dos nossos cotidianos para levantar a organização popular, que é fundamental para a ruptura com o sistema de opressões.
Voltamos para os grupos com a tarefa de identificar desafios e propostas para a construção de movimento, a partir dos territórios e de uma visão global. O debate teve como referência o contexto pandêmico e pós-pandêmico; o ascenso da extrema direita e de grupos religiosos no poder; a fragmentação dos movimentos sociais; o desenvolvimento de uma perspectiva estratégica diante da cooptação pelos Estados, pelas agendas das Nações Unidas e da cooperação internacional; a criminalização e violência que enfraquece a defesa e retomada de territórios corpo-terra; a reprodução de opressões no interior dos movimentos.
Sandra Moran, da MMM Guatemala, coordenadora da Escola pelo GGJ e uma das facilitadoras dessa sessão,levantou elementos de síntese do debate. Ela destacou a importância de uma cultura política que nos reconheça em nossas diversidades, assim como nos diferentes contextos em que nos movemos, que situam nossas perspectivas e propostas.
Essa diversidade situada nos enriquece e nos fortalece como movimentos internacionais, e nos coloca o desafio de construir pontes e sínteses que sejam capaz de superar divergências e avançar em lutas comuns e compartilhadas. Também é preciso enfrentar hierarquias dentro dos movimentos, em uma cultura política de “desaprender o que nos divide”, reconhecendo as diferentes contribuições e tarefas, olhares e gerações que constroem nossos movimentos.
Outro desafio é desenvolver nossas espiritualidades, reconhecendo que as diferentes cosmogonias, cosmovisões e espiritualidades são uma força para seguir adiante, inclusive como parte de nosso enfrentamento aos fundamentalismos religiosos que nos afetam em todo o mundo.
Falamos sobre gerar processos de formação e, especialmente, sobre a centralidade da formação política que acontece nas mobilizações nas ruas e na construção de táticas e estratégias de nossos movimentos. Isso se relaciona com a construção de poder popular feminista que é capaz de ampliar a democracia nos países, nos territórios e também em nossos movimentos.
A força do feminismo popular vem desse aporte diário de tantas e todas as mulheres e pessoas não binárias que dedicam sua vida à transformação.