Nas últimas décadas, assistimos a uma forte aceleração do processo de globalização capitalista que resultou em uma reconfiguração da produção a nível global e na crescente sofisticação das estruturas de poder e exploração que acontecem em torno e dentro dos processos produtivos. A este processo, somamos hoje as reconfigurações que ocorrem a partir da pandemia de coronavírus, que acelerou de forma dramática algumas tendências emergentes nos últimos anos.
Podemos caracterizar esta globalização capitalista em sua fase neoliberal pela eliminação das fronteiras nacionais para circulação e consumo de bens, serviços e fluxos de capital. E pela marcada e constante pressão pelo desmonte e desaparição do Estado como garantidor do bem público, e pela privatização e mercantilização das relações sociais e bens comuns.
As empresas transnacionais são o principal agente de expressão do sistema capitalista: organizam o mundo em função de seus interesses e em favor de seus lucros, arrogam para si o poder de reproduzir a acumulação capitalista fase após fase e extrair de cada uma a síntese que continua a colocá-las no topo desta acumulação e, estrategicamente, distante de qualquer custo e prestação de contas. Elas ocupam um lugar de crescente concentração de poder e privilégios e de uma contínua expansão e controle dos territórios, determinando novas formas de ocupação. Controlam a produção à escala global e determinam os trajetos/itinerários de exploração e espólio da natureza e da classe trabalhadora. Compreender o papel que as empresas transnacionais cumprem é central para apontar o lugar e a influência que as agendas de livre comércio exercem.
As transnacionais pressionam para que as mudanças que ocorrem na organização da produção global sejam cristalizadas em regras que aprofundam a liberalização do comércio e dos investimentos e a expansão do capital sobre o público. As formas como as transnacionais constroem o poder e a dominação estão ligadas ao seu poder crescente na definição e/ou questionamento das regras que os Estados estabelecem, impulsionando a eliminação das normas que contribuem para a defesa dos bens naturais e dos direitos fundamentais que se baseiam nestes bens, tais como o direito à água, à terra, às sementes, etc. Por um lado, existe um processo de desregulamentação em que são eliminados os regulamentos concebidos para o bem comum e, por outro lado, são impostas novas regras para abrir caminho à privatização da natureza e dos serviços públicos, ou para investimentos que destroem os sistemas ecológicos que tornam a vida possível, entre outros.
As agendas de liberalização do comércio e dos investimentos, que se traduzem em acordos comerciais neoliberais, têm uma história relativamente recente, mas têm um amplo impacto. Sua evolução ao longo dos anos reflete os modos como o capital transnacional se ofereceu para superar as crises sistêmicas que ele próprio provoca e até mesmo lucrar com elas e se modificar para aumentar suas taxas de lucro e expandir suas possibilidades de acumulação, avançando sobre novas esferas de vida na sociedade e na natureza.
Hoje encontramos em praticamente todos os acordos comerciais que estão em processo de negociação, renegociação ou que foram recentemente assinados, o mesmo tipo de cláusulas e compromissos.
As agendas do livre comércio evoluíram com o tempo, acompanhando as mudanças na organização da produção em nível global. Isso não é neutro e tem impacto na vida em sociedade, nas políticas públicas, na estratégia de desenvolvimento e nos direitos humanos.
Essas agendas transferem o paradigma empresarial para a regulamentação das empresas públicas e evadem a função social dos serviços públicos. Ao impor perspectivas comerciais orientadas para o lucro aos serviços e empresas estatais, os direitos são violados, especialmente sua facilidade de acesso e custos. Ao ignorar a função social, o importante papel que os serviços públicos desempenham na garantia dos direitos humanos se perde.
As formas pelas quais a transição para o paradigma empresarial dos serviços públicos e das empresas públicas pode afetar as mulheres são múltiplas. E para compreender esses impactos, devemos considerar que a desigualdade de gênero é um aspecto estrutural do sistema capitalista no qual as mulheres ocupam papéis subordinados na divisão sexual do trabalho: elas estão nos empregos com as remunerações mais baixas, com as piores condições de saúde e segurança, e recaem sobre elas, em maior medida, as tarefas de cuidado. Essas tarefas também estão intimamente relacionadas a certos serviços públicos, como saúde, educação e alimentação. Para garantir a sustentabilidade da vida, é necessário contar com um papel ativo e eficaz do Estado com serviços e políticas públicas integrais, universais, acessíveis, inclusivas e públicas. Isso é colocado em risco pelas agendas do livre comércio. Os sistemas de proteção social são peças importantes para a reprodução da vida porque visam reduzir ou eliminar as desigualdades, gerar oportunidades para populações vulneráveis e atender às necessidades e direitos fundamentais.
Em países onde o acesso aos serviços públicos de água e saneamento não está garantido, é atribuída às mulheres a responsabilidade pelo fornecimento de água, transportando água em longas distâncias para higiene e alimentos. A água e o saneamento também introduzem a dimensão ambiental, pois os territórios afetados pela poluição e pela instalação de empreendimentos produtivos em larga escala poluem o ar, o solo, deterioram a qualidade e a quantidade da água disponível e a biodiversidade.
As agendas comerciais estão começando a introduzir marcos regulatórios para “novas” atividades comerciais. A economia digital, incluindo as regras do comércio eletrônico, é um dos aspectos mais marcantes da evolução atual dessas agendas. Esses conteúdos cristalizam novas regras de acordo com as mudanças que vêm ocorrendo na organização da produção em nível global. O conteúdo desta agenda tem como objetivo eliminar os regulamentos existentes ou, fundamentalmente, impedir a implantação de regulamentos e controladorias.
O trabalho por aplicativos, típico da economia digital, tem fortes implicações em termos de precarização do trabalho e retirada de direitos. As mulheres são mais afetadas por esta realidade porque trabalham em piores condições de trabalho e têm menos oportunidades de conseguir um trabalho decente.
O paradigma do empreendedorismo aplica uma falsa ideia de independência da chamada “rigidez” dos empregos subordinados e mais tradicionais. Entretanto, a ideia de definir o próprio horário, de trabalhar no conforto da própria casa ou de ganhar “o quanto quiser” é extremamente enganosa e perigosa porque deixa de responsabilizar as empresas no cumprimento dos direitos trabalhistas. Este paradigma é vendido especialmente às mulheres como uma alternativa de inserção no mercado de trabalho, argumentando que elas podem trabalhar de casa e cuidar do trabalho doméstico e de cuidados ao mesmo tempo. Assumir o “trabalho em casa” como um “problema das mulheres” só reforça a tradicional divisão sexual do trabalho. Ao mesmo tempo, isso sublinha a desvalorização das tarefas reprodutivas, afirmando que basta “estar em casa” para fazê-las. Entender a tecnologia como solução para este “problema das mulheres” não enfatiza a desigualdade de gênero, mas a aprofunda ao naturalizá-la.
As iniciativas que buscam “empoderar” as mulheres para serem protagonistas no uso da tecnologia ou no desenvolvimento de seus próprios negócios, se esquivam de abordar diretamente as desigualdades que as mulheres enfrentam no dia a dia. Eles assumem uma falsa equidade e, portanto, exportam falsas soluções.
Um dos aspectos preocupantes que deve ser considerado em relação à propriedade intelectual é o direito à saúde devido ao uso diferenciado que as mulheres fazem dos serviços de saúde. Tendo em vista o que foi analisado para os serviços públicos e empresas, o controle do mercado sobre medicamentos, sua fabricação, desenvolvimento e inovação impõe riscos em termos de acesso e garantia do direito à saúde e poderia até mesmo violar a garantia de certos direitos sancionados e regulamentados por lei, que buscam garantir a autonomia das mulheres nas decisões sobre seus próprios corpos. No contexto de uma emergência sanitária como a que estamos vivendo atualmente, é fundamental considerar o papel da propriedade intelectual e as tensões geradas pela apropriação e controle do conhecimento exercido pelas corporações transnacionais e pelo Norte global.
As agendas de livre comércio também têm incorporado a agenda de gênero. Entretanto, ao invés de incorporá-la realmente, o que fazem é maquiar de rosa os acordos comerciais que têm grandes implicações para a vida das mulheres. Esta forma de maquiagem procura apresentar os benefícios do livre comércio para as mulheres, uma espécie de narrativa de falsas soluções para elas.
Os capítulos de Gênero e Comércio fazem parte dos compromissos políticos “brandos” que os acordos comerciais incorporam. Junto com os capítulos sobre “Desenvolvimento Sustentável e Comércio” ou os capítulos sobre temas de emprego (“Capítulo Trabalhista”), eles tentam vender um rosto mais humano para esses instrumentos através da inclusão de agendas que fazem parte de debates efervescentes em nossas sociedades. Ao mesmo tempo, elas são a expressão de uma narrativa que privilegia soluções de mercado em detrimento de soluções cooperativas e comunitárias.
O impulso que a agenda feminista ganhou em nossos países é inquestionável. A terrível realidade da violência sistemática vivida pelas mulheres – uma consequência direta e indireta da desigualdade que sustenta o sistema – é completamente invisível nos capítulos sobre Gênero e Comércio. Mesmo nos casos em que são mencionadas essas desigualdades e a violência, não se explicitam as causas, nem se consideram os mecanismos vinculantes que tratam das formas pelas quais os instrumentos contribuirão (ou não) para mudar a realidade das mulheres. Portanto, são agendas acessórias, atraentes do ponto de vista discursivo, mas completamente inócuas em seu impacto.
As agendas comerciais ignoram seus impactos em áreas muito distantes dos indicadores clássicos da micro e da macroeconomia. As medidas e estimativas dos benefícios dessas agendas comerciais nunca consideraram os impactos sociais no sentido abrangente e integral do termo: a forma como essas agendas mudarão a vida das pessoas além das estatísticas em termos de emprego ou aumento do produto interno bruto não é quantificada. Isso invisibiliza os impactos negativos que estão fortemente associados às populações mais vulneráveis, como os mais pobres, a população rural, as mulheres, os povos indígenas, as crianças, entre outros.
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Este artigo se baseia em trechos de três publicações recentes (disponíveis em espanhol) que abordam estas questões: “As receitas das novas agendas comerciais e seus impactos: não há lugar para a justiça ambiental na agenda do capital transnacional“, “As agendas do livre comércio e o impacto para mulheres: notas para pensar a construção de um feminismo popular” e “O poder sistêmico exercido pelas corporações transnacionais e as agendas do livre comércio: notas para construir mobilização e resistência“.
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Natalia Carrau, integrante da REDES – Amigos da Terra Uruguai. Formada em Ciências Políticas, especialista em agendas comerciais, empresas transnacionais e investimentos.