Dignidade primordial: a luta contra as transnacionais em Uganda

29/01/2021 |

Por Jean Ngobi

 

 

Jean Ngobi, da Marcha Mundial das Mulheres em Uganda, fala sobre o impacto de grandes empresas internacionais na vida das mulheres na África

Foto/Photo: World March of Women/ Marcha Mundial de las Mujeres/ Marche mondiale des Femmes/ Marcha Mundial das Mulheres

Quando falamos de corporações transnacionais, estamos falando destas empresas internacionais, multinacionais e de investimentos que ingressam no continente africano e em outros países do Sul Global. São elas o principal motivo pelo qual a África está sangrando, pela forma como a África está lidando com suas perdas e, especificamente, pelo impacto negativo sobre a vida das mulheres.

No continente africano de modo geral, as mulheres representam mais da metade da população. São maioria, mas, ainda assim, estão sendo mais exploradas por essas empresas internacionais, nos relacionamentos e em casa, o que faz com que a própria sociedade acabe sofrendo os efeitos diretos dessa exploração.

Quem se beneficia quando permitimos que The Nature Conservancy (TNC), uma organização não governamental (ONG) ambiental transnacional, atue na África? Quem senta na mesa de negociação mesmo quando as coisas estão erradas?

Acredito que essas entidades são extremamente egoístas com a população, com a maioria da população que nós representamos. Elas não dialogam com as pessoas para entender como a atuação delas afeta vidas e não estão dispostas a dividir os benefícios desse trabalho, mas ainda assim utilizam os recursos que nós temos. Isso me preocupa, pois as grandes empresas são as únicas que se beneficiam disso. Vemos doenças e disparates, e mesmo assim a África continua cooperando.

Os líderes africanos devem responder por que as pessoas — principalmente as mulheres — estão sofrendo tanto com os impactos das grandes corporações no continente e em cada país. Nossos líderes continuam investindo e até financiando esse tipo de atividade econômica. Sim, a TNC melhorou os índices de emprego, como disse que faria. As empresas transnacionais receberam o crédito por oferecer soluções para o dilema do emprego em Uganda, mas a dignidade de seus trabalhadores não é levada em conta. Elas recrutam mais gente, mas, para mim, a dignidade é mais importante.

Aqui na África, empresas como a TNC empregam mais mulheres e também as exploram mais. As mulheres não alcançam nível de escolaridade suficiente para conseguir melhores empregos, então essas entidades criam uma “oportunidade única” para oferecer vagas às mulheres, tendo em troca sua exploração. A dignidade da nação está em risco. É absurdo que líderes tragam essas empresas para cá, porque o que elas oferecem é apenas trabalho barato, sem entender que a dignidade é primordial.

Criar oportunidades de trabalho para as pessoas é muito importante. Mas essa ideia precisa ser vista com uma perspectiva que se atente ao que cada proposta significa, em termos de soberania popular, preservação e respeito às formas de vida existentes, e sustentabilidade da vida e da natureza. Quando os líderes colocam nossa terra nas mãos de corporações internacionais como a TNC, entregam essas regiões essenciais onde as pessoas não têm condições de subsistência adequadas.

Ao longo dos anos, grandes corporações ambientais se transformaram em uma indústria transnacional que administra e exerce controle sobre diversas regiões, incluindo as áreas de natureza que alegam proteger. A TNC e outras organizações de conservação impõem restrições sobre a ocupação de pessoas e atividades e removem comunidades de seus territórios com a justificativa de que essas populações provocam destruição florestal. Esses organismos proíbem e restringem a ocupação, por pessoas da comunidade, de terras que são delas por lei, além de provocar mudanças substanciais na rotina e na vida cotidiana de famílias nos lugares onde se estabelecem.

As mulheres representam cerca de 52% da população de Uganda. No entanto, apesar do dividendo demográfico, a maioria está às margens do desenvolvimento do país e não integra o governo. Grande parte da economia de Uganda é controlada por investimentos multinacionais, enquanto a maioria das mulheres (cerca de 81%) ganha a vida na agricultura, mas não detém a propriedade da própria terra.

As mulheres e suas famílias estão sendo expulsas de suas casas para dar lugar à construção de estruturas corporativas, e os despejos levaram a uma série de violações. Há casos de estupros e prisões. As pessoas estão sofrendo muito e ninguém está falando por elas, simplesmente porque os poderosos já garantiram seus espólios, já garantiram sua barganha, então o sofrimento fica para a população local. 

Grande parte das decisões políticas e econômicas para a gestão e o controle de multinacionais é tomada por homens. A violência lamentável e evidente contra as mulheres nessas empresas não é coincidência. Por exemplo, na indústria e também no setor de petróleo e gás, o assédio contra mulheres acontece em todos os níveis das transnacionais. A exploração e a violência contra as mulheres acontece na forma de assédio sexual, na exploração econômica e na falta de condições mínimas de trabalho. Segurança e proteção são coisas importantíssimas para nós e nossas vidas, e isso não nos é oferecido livremente.

Essa deve ser uma responsabilidade dos Estados, e o país deve melhorar a forma como aborda os direitos humanos, para atender às necessidades da população, dar o devido valor às pessoas e garantir os direitos da classe trabalhadora diante dessas grandes corporações.

As eleições presidenciais que aconteceram em Uganda no dia 14 de janeiro foram uma oportunidade para as mulheres erguerem suas vozes contra a natureza dessa opressão. Depois de um processo rigoroso de consultas com sobreviventes, as mulheres dos movimentos sociais de Uganda elaboraram um documento com uma série de demandas, que ficou conhecido como Manifesto das Mulheres de Uganda para 2021-2026. Trata-se de um documento político desenvolvido pelas mulheres para exigir que atores fundamentais, como governo, partidos políticos e candidatos, não apenas compreendam como também se responsabilizem pela situação das mulheres do país, que veem sua dignidade relegada dos processos de desenvolvimento, inclusive pelos males dos investimentos multinacionais. Entre essas demandas fundamentais estão: governança de recursos, desenvolvimento econômico e de subsistência, direitos sobre a terra e a propriedade, saúde das mulheres, direitos de gênero e participação política, paz para as mulheres e questões de segurança, entre outros.

Apesar dos desafios, trata-se, de modo geral, de uma série de demandas para nossas lideranças refletirem e se responsabilizarem enquanto o país navega pela era das multinacionais, no sentido de proteger os direitos das mulheres.

Do mesmo modo, muitas candidatas disputaram cargos públicos e é esperado que as vozes das mulheres possam transformar cada vez mais e tornar realidade a elaboração de leis, políticas e práticas para confrontar e regulamentar os empreendimentos multinacionais. Também esperamos que após assumirem seus cargos, as lideranças reflitam sobre essas preocupações e, quem sabe, deem destaque aos desafios colocados por setores populares para responder às desigualdades estruturais e sistêmicas situadas nas transnacionais.

Traduzido do inglês por Aline Scátola

Texto originalmente escrito em inglês

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