Mulheres defensoras da água nas montanhas da Argentina

03/02/2021 |

Por Natalia Salvático

Nas comunidades argentinas, as mulheres questionam: "como não iríamos lutar? Nós secamos junto com a terra?"

Foto/Photo: No a la mina.

A defesa das fontes de água nos Andes segue vigente desde os bloqueios de avenidas ao pé da montanha, há mais de uma década, até hoje, quando a mineração a céu aberto se apresenta como uma solução a essa nova crise que enfrentamos. Nessa luta contra as corporações, o trabalho das mulheres é indispensável e, muitas vezes, anônimo. Nos propusemos a fazer um percurso por três províncias para reverberar as vozes das guardiãs da água. 

A mineração é como uma moeda que reflete em uma das faces o extrativismo e, na outra, o capitalismo neoliberal. Com essas faces, financia um modelo de desenvolvimento insustentável, a que muitos chamam vulgarmente de “progresso”, marcado por um mercado onipresente que garante a impunidade e o benefício das corporações transnacionais e das elites econômicas enquanto ameaça os direitos dos povos e da natureza. Os governos submetem as políticas públicas a esse modelo, fragilizando o direito à água, que é um direito coletivo intimamente vinculado com os processos comunitários e a defesa dos territórios e bens comuns. 

Na província de San Juan, na Argentina, existe Jachal, um departamento situado ao norte da província, ao leste do empreendimento Veladero, uma mina a céu aberto que explora ouro e prata. Ali se organizava o grupo Madres Jachalleras [Mães de Jachal], um grupo de mulheres que começou a lutar em 2002, quando a mineração se colocou na comunidade com uma consulta de opinião sobre o cuidado do meio ambiente — mesmo que já estivesse instalada ali desde 1996, sem consulta prévia.   

“A promessa do progresso era o sonho de todos porque não tínhamos visto com nossos próprios olhos o impacto da mineração”, afirma María José, integrante do grupo. “Quando nós passávamos de casa em casa para coletar assinaturas, a mineradora ia atrás com televisões, DVDs, CDs. (…) Levam assistentes sociais, contratam psicólogos, visitam as pessoas em casa para convencê-las de que tudo está bem, (…) é uma campanha impressionante. Nós íamos de bicicleta e eles iam em uns carrões, isso gerava riso nas pessoas”.

Em uma zona semi desértica, o Rio Jachal era o único com o qual a população podia contar, e foi destruído pela mineradora. Primeiro, contaminaram a água, depois ela se tornou escassa, e por fim o lençol freático foi contaminado. A denúncia de María José data do ano de 2013, mas em 2015, 2016 e 2019 aconteceram vazamentos de milhares de litros de líquidos contaminantes na fonte, o que piora cada vez mais a situação. Mesmo assim, está garantida a impunidade da mineradora transnacional Barrick Gold, responsável pela exploração das jazidas. Desde janeiro deste ano, a Assembleia Jachal No Se Toca [Em Jachal Não Se Toca], herdeira da iniciativa das Madres Jachalleras, denuncia que o sistema de distribuição domiciliar que leva água do rio contém mercúrio e outros resíduos perigosos

Ao norte de Jachal está a província de La Rioja. Ali, em 2012, aconteceu um bloqueio nas estradas para impedir a passagem dos caminhões mineradores rumo à montanha Famatina. No acampamento situado nos arredores do Alto Carrizal, o povoado mais próximo do sopé da montanha, um robusto grupo de vizinhas/os e ativistas mantinham coletivamente o bloqueio. Quando chegamos, recebemos algumas tarefas, dentre elas fazer a guarda da meia-noite em uma casinha ao lado de onde estava a barreira, perto da qual sempre havia um grupo de pessoas em vigília. Nesse espaço, conhecemos María Luisa “Boneca”, Daniela, María Eugenia e muitas outras mulheres de todas as idades que, em defesa da água de seu povo, montavam guarda lado a lado com os homens. Entre risadas, mas com solenidade, elas compartilharam conosco histórias de luta e de orgulho por sua terra. “As montanhas são nossas, são do povo, e nós não queremos que as explorem. É nosso, é como se fosse nosso filho. Quando disseram que iam explorá-la, em 2006, eu fiquei louca. (…) Nem todos têm a possibilidade de ter uma beleza como essa que nós temos”.

Em La Rioja, a mineradora não entrou dessa vez, tampouco nos tempos que se seguiram. Até 2018, a comunidade no sopé da Famantina conseguiu rechaçar a instalação de cinco empresas mineradoras. Mas a disputa pelo território nunca termina, porque as comunidades vivem em montanhas que nutrem enormes riquezas, e por isso são assediadas pelo poder econômico. 

Após muitas tentativas (e não poucos fracassos), as corporações transnacionais empregam estratégias inéditas de legitimação. Uma delas é postular seu autodenominado papel fundamental na economia; mediante ele, poderiam verter riquezas para a recuperação de nosso país diante da crise de covid-19. Mas, enquanto dizem isso, as empresas mineradoras seguem funcionando em pleno período de isolamento social, como se fosse uma “atividade essencial”. Disseminam o vírus em povoados andinos, como aconteceu em Catamarca. Sobre isso, Silvina, da Assembleia El Algarrobo [A Alfarroba] de Catamarca, disse: “para nós, a atividade mineradora não é essencial. De fato, os primeiros casos de covid-19 em Catamarca foram de trabalhadores mineiros. Na Assembleia, consideramos que o essencial é a água, não a atividade mineira”.

Catamarca é uma província ao norte de La Rioja. Perto dali, encontramos Andalgalá, uma pequena cidade no sopé da montanha Aconquija, onde vivem vinte mil pessoas. Andalgalá padece há vinte anos pela exploração mineira e é uma das zonas mais empobrecidas do país. Em 1995, foi outorgada a concessão da empresa Yacimientos Mineros Aguas de Dionisio (YMAD) à mineradora Alumbrera. O projeto Bajo de La Alumbrera (Baixo da Alumbrera) é a maior mina em funcionamento na Argentina. Acumula denúncias e processos penais por  contaminação e violação de direitos em três províncias. Assim que se instalou essa exploração, outros projetos de maior envergadura se sucederam, todos localizados no Aconquija. 

Os povos que resistem sofrem perseguição ideológica e violência institucional, realizada pelo uso da força policial contra as comunidades. As mulheres denunciam que estão expostas não apenas ao risco decorrente de serem defensoras da água, como também ao escárnio público do patriarcado. Uma participante de um grupo feminista da província denunciou: “conversando com as mulheres, vemos que podemos conseguir algo, mas será um conflito tremendo, e significa expô-las ainda mais do que já estão”. 

Uma mulher agricultora de Andalgalá, cuja identidade preferiu preservar, nos disse: “quem garante a vida somos nós, os povos, com nosso corpo e com organização e com o trabalho diário pelo alimento, pela vida. Isso é cada vez mais difícil. Há cada vez mais povoados postos em xeque por esses interesses. O povo sai em caminhada todos os sábados há mais de onze anos contra a mineração a céu aberto e em defesa da água. O povo milita pela causa no cotidiano, todos os dias, e isso vai sendo calcado nas novas gerações de meninos que meninas, que incorporam essas ideias”. 

A disputa com a mineração não é só pela água. É sobre o modelo de desenvolvimento que encarna o inatingível “progresso”. Para propor indagações sobre esses imaginários, entrevistamos em 2020 pessoas que vivem nas minas da salina do Pipanaco, na província de Catamarca. Falamos sobre a água e sobre seus projetos de vida. As e os moradores nos falaram de resistências, da dignidade humilde, e se perguntaram: “como não iríamos lutar? Nós secamos junto com a terra?”

Ao ser perguntada sobre sua visão do que é desenvolvimento, uma mulher tecelã e produtora camponesa respondeu: “a moradia em primeiro lugar. Teria que haver muito mais desenvolvimento nas coisas mais importantes, mais necessárias”. Para as e os camponeses, o vínculo entre a agricultura e a água é essencial. “A consciência de que toda água está relacionada e conecta os povos, posso dizer que é assim, porque os produtores e a gente que habita os territórios enxerga assim”.

Para as agricultoras, “temos que pensar em um desenvolvimento inclusivo, em um desenvolvimento em relação, um desenvolvimento integral, um desenvolvimento a partir da visão das comunidades, que talvez seja o que já estamos fazendo… É o que se vê, é o que está acontecendo”. Nos Andes, fala-se sobre comunitarismo, e as comunidades se aglutinam em torno da água. 

“Não se pode possuir esse algo sem dono”, diz o poema de La Reynamora Azul lido por Rosa, integrante da Assembleia El Algarrobo, na 1ª Cúpula Latino-americana da Água para os Povos, realizada em Catamarca em 2018. Milhares de mulheres são guardiãs das águas, e elas não estão apenas nas montanhas: a “mãe de todas as batalhas” Nora Cortiñas, uma das Madres de la Plaza de Mayo [Mães da Praça de Maio, que reivindicam justiça para seus filhos desaparecidos e mortos na ditadura militar argentina], aos 87 anos viajou a Catamarca. Com as seguintes palavras, ela se dirigiu à multidão que participava do Encontro: “toda luta nossa tem compromisso total e, se não sai de dentro, não vale. (…) Hoje viemos defender a água. (…) As pessoas vieram primeiro por nossos filhos e filhas e, agora, vêm pela água”. “É preciso transformar o protesto em proposta. Que ninguém diga ‘estou cansado’!”, disse uma incansável militante. Com seu exemplo, ela contagia todas e todos os demais, porque a água não se vende, e sim se defende!

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Natalia Salvático é coordenadora da área de água e sustentabilidade da Amigos da Terra na Argentina. 

Traduzido do espanhol por Helena Zelic

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