A feminização da pobreza, uma pandemia que percorre o continente americano

18/10/2021 |

Por Marilys Zayas Shuman

Marilys Zayas analisa como as mulheres da América Latina e do Caribe vivenciam a pobreza.

Getty Images, 2020

A persistência das desigualdades sociais está diretamente relacionada com o enraizamento, há centenas de anos, de uma cultura patriarcal e com políticas pouco efetivas para visibilizá-las e solucioná-las.

A pobreza é um problema antigo, complexo e multidimensional que se projeta em diversos aspectos da sociedade, como o econômico, demográfico, político, social, ideológico e cultural. Internacionalmente, existe um amplo debate sobre a conceitualização da pobreza, acerca de sua definição, de como mensurá-la e como enfrentá-la. As diversas formulações sobre o que é entendido como “custo de vida”, “indigência”, “necessidades básicas não atendidas”, “qualidade de vida”, entre outros, são algumas das variáveis levadas em conta para analisá-la e defini-la.

A pobreza é compreendida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) como a privação das condições necessárias, em uma sociedade específica, para que seus integrantes possam gerar recursos, se desenvolver plenamente, aproveitar as oportunidades humanas e alcançar objetivos sociais. O termo “pobreza humana” é apresentado como a antítese do desenvolvimento humano, por ser a negação de opções e oportunidades para ter uma vida longa e saudável, com acesso a conhecimentos e participação social.

A pobreza se manifesta nas desigualdades de gênero nos diferentes âmbitos da sociedade, particularmente, em termos de oportunidades e acesso à saúde, à educação, ao emprego e seguridade social e à remuneração ou renda. Várias organizações e instituições de diferentes níveis abordam a questão da pobreza das mulheres como uma expressão das desigualdades de gênero. É a partir dessa abordagem que surge a perspectiva de gênero e, com isso, a análise do que se conhece como feminização da pobreza, condicionada por fatores como a violência.

A feminização da pobreza e a violência estrutural afetam particularmente as mulheres da América Latina e do Caribe. Ambos os fenômenos estão associados a fatores históricos. Um exemplo disso é o fato de que pessoas negras, povos indígenas e mulheres em situação de pobreza frequentemente encontram mais barreiras no acesso à justiça e aos direitos humanos. Muitas dessas barreiras decorrem das desigualdades de gênero e do modo como elas são reproduzidas nas políticas institucionais e governamentais.

A violência estrutural de gênero foi nomeada devido à necessidade de explicar as interações de práticas violentas em várias esferas sociais. Ela não se refere apenas à repressão política, mas também à alienação e a falta de acesso a bens e oportunidades.

A persistência das desigualdades sociais está diretamente relacionada com o enraizamento, há centenas de anos, de uma cultura patriarcal e com políticas pouco efetivas para visibilizá-las e solucioná-las.

Um passo para evidenciar a realidade

Desde a década de 1980, o fenômeno da pobreza passou a ser analisado a partir de uma perspectiva de gênero com mais intensidade. Um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), publicado em 2004, demonstrou que “o número de mulheres pobres era maior que o de homens, que a pobreza feminina era mais acentuada, e que havia uma tendência para um aumento mais evidente da pobreza feminina, relacionada particularmente com o aumento das famílias chefiadas por mulheres”.[1] 

Falar da feminização da pobreza é uma forma de evidenciar que homens e mulheres vivem realidades diferentes em relação à economia e à vida social. O gênero é um marcador de pobreza tanto quanto a raça e etnia, a localização geográfica e até mesmo a idade.

Como aponta a pesquisadora feminista indiana Gita Sen, “a probabilidade de ser pobre não está distribuída aleatoriamente na população”.[2] A divisão sexual do trabalho impõe às mulheres o espaço doméstico e o trabalho menos valorizado e, assim, determina a “desigualdade nas oportunidades que elas têm, devido a seu gênero, para acessar recursos materiais e sociais (propriedade de capital produtivo, trabalho remunerado, educação e capacitação), bem como para participar das principais decisões políticas, econômicas e sociais”, como afirma a pesquisadora Rosa Bravo[3].

Ela também aponta que, além dos bens materiais das mulheres serem mais escassos, os bens sociais (educação, cultura, o que é acessado através de vínculos socioculturais) também o são devido às suas condições de trabalho, cujos espaços são limitados pela divisão sexual do trabalho, com suas hierarquias e separações. As mulheres sofrem privações no mercado de trabalho, no sistema de proteção social e dentro de casa. Hoje, vemos que tal realidade aumentou na região devido ao isolamento social em tempos de pandemia.

De acordo com o documento da CEPAL mencionado anteriormente, , as taxas de analfabetismo expressam as limitações vivenciadas pelas mulheres no mundo do trabalho. Em 1970, na América Latina e no Caribe, 30,3% das mulheres eram analfabetas, em comparação com 22,3% dos homens, considerando a população acima de 15 anos de idade. A diferença foi reduzida, mas persistiu: em 2000, a taxa de mulheres analfabetas era de 12,1%, a dos homens, 10,1%. Uma das razões para a interrupção dos estudos na adolescência é justamente a necessidade de assumir a responsabilidade pelo trabalho doméstico.

O documento também indica que houve um aumento significativo na participação econômica das mulheres na década de 1990 (passando de 37,9% no começo da década para 42% em 1999), mas que, ao mesmo tempo, o desemprego é uma condição mais presente na vida das mulheres. Ao longo dos anos, a diferença entre o desemprego masculino e feminino tem aumentado, em vez de diminuir.

Da realidade ao fundamento da luta                   

A feminização da pobreza não deve ser analisada apenas em termos da precariedade dos lares chefiados por mulheres. Isso significa que ela não pode ser pensada como algo isolado, como um fato sem implicações dentro das famílias, comunidades, países e regiões.

De fato, a migração global tem sido uma das principais causas da feminização da pobreza. Hoje, quase metade da população migrante mundial é composta por mulheres. Vários fatores influenciam a migração das mulheres, incluindo a globalização, o desejo de buscar novas oportunidades, a pobreza, a vulnerabilidade de certas práticas culturais, a violência de gênero nos países de origem, desastres naturais, guerras e conflitos armados internos. Entre esses fatores, está também a exacerbação da divisão sexual do trabalho na indústria e serviços nos países de destino, bem como uma cultura de entretenimento centrada nos homens, o que gera uma demanda para as mulheres como provedoras desse entretenimento.

Quanto o isolamento devido à pandemia de covid-19 contribuiu para essa realidade? Como esse fenômeno foi tratado pelos governos do continente? Como as políticas públicas tiveram um impacto na mudança dessa realidade? Quanto as lutas dos movimentos feministas da região contribuíram? Essas são as questões que ficam dessa primeira abordagem da questão.


[1] Entender a pobreza em uma perspectiva de gênero [Entender la pobreza desde la perspectiva de género], publicado em espanhol pela Unidade Mulher e Desenvolvimento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), página 13.

[2] “El empoderamiento como un enfoque a la pobreza” [O empoderamento em uma abordagem da pobreza], publicado em espanhol no livro Género e pobreza: nuevas dimensiones (1998), pela editora Ediciones de las Mujeres (Chile).

[3] “Pobreza por razones de género. Precisando conceptos” [Pobreza com base no gênero. Esclarecendo conceitos], publicado em espanhol no livro Género e pobreza: nuevas dimensiones (1998), pela editora Ediciones de las Mujeres (Chile).

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Marilys Zayas é integrante da Federação de Mulheres Cubanas e da Marcha Mundial das Mulheres.

Edição por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Luiza Mançano

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