Nosso foco no BreakThrough News tem sido tentar cobrir o contexto de como o mundo chegou a esse ponto. Isso envolve avaliar como os Estados Unidos e a OTAN vêm ajudando a montar o palco para uma guerra que até autoridades públicas dos EUA alertaram ao longo dos últimos 30 anos que poderia ocorrer caso a expansão da OTAN continuasse.
Entre essas autoridades está o diplomata George Kennan, que escreveu em 1997 que “expandir a OTAN seria o erro mais fatal da política estadunidense em toda a era pós-Guerra Fria”, pois essa expansão seria capaz de “inflamar as tendências nacionalistas, antiocidentais e militaristas da opinião russa”. Naquele mesmo ano, o presidente Joe Biden, na época senador, explicou que expandir a OTAN para os estados bálticos provocaria uma “reação vigorosa e hostil” da Rússia. Outro alerta veio em 2008 do então diretor da CIA, William Burns, que escreveu em um telegrama enviado de Moscou durante seu período como embaixador dos EUA: “a expansão da OTAN, particularmente para a Ucrânia, (…) teria o potencial de dividir o país em dois, levando-o à violência ou mesmo, como afirmam alguns, a uma guerra civil, o que forçaria a Rússia a decidir quanto a intervir ou não”.
Agora que os alertas se concretizaram, a mídia está cuidando de apagar o papel que a OTAN e os EUA tiveram na pressão sobre a Rússia.
A mídia hegemônica e a censura
A mídia capitalista no Ocidente vem investindo pesado para gerar concordância com um perigoso acirramento do conflito. Menos de duas semanas após a invasão, cerca de 3/4 dos estadunidenses diziam apoiar uma zona de exclusão aérea na Ucrânia, sem saberem, obviamente, que a consequência disso seria um apocalipse nuclear.
Enquanto isso, o Ocidente proibiu a veiculação do canal RT e outras mídias russas, em uma demonstração chocante de censura. O fato de eles terem conseguido implementar a proibição de forma tão rápida na internet mostra que a infraestrutura para barrar perspectivas opostas já existe — e, em algum ponto, será provavelmente utilizada contra pessoas como nós, que se opõem à guerra. Isso nos faz pensar se esse não seria um dos “valores ocidentais” que eles alegam defender ao colocar armas nas mãos dos ucranianos.
O que temos aqui é apenas um lado da história, que glorifica a narrativa ucraniana como pura e verdadeira ao mesmo tempo em que cala a perspectiva russa e qualquer ponto de vista discordante.
O papel do imperialismo
Esse ímpeto em direção à guerra com a Rússia criou uma atmosfera assustadora de racismo, censura e militarismo, muito semelhante ao que aconteceu depois de 11 de setembro de 2001: aqueles entre nós que questionam, que se opõem ao acirramento dos conflitos ou clamam pela dissolução da OTAN estão sendo tachados de “traidores” e “apologistas de Putin”, que precisariam ser evitados e censurados.
Nesse meio-tempo, o governo Biden está financiando uma insurgência. Eles discutiram, inclusive, como preparar o terreno para que Zelensky lidere um governo exilado na Polônia, de onde a insurgência ucraniana será organizada, armada e treinada. Hillary Clinton falou no canal MSNBC sobre como os Mujahidin no Afeganistão[1] servem de modelo para a Ucrânia.
O que os EUA fazem não é ajudar os ucranianos, mas exaurir os russos, lutar contra os russos usando até o último ucraniano. Financiar e armar uma insurgência é a garantia de um banho de sangue na Ucrânia por anos. E, assim como as “consequências inesperadas” da rebelião dos mujahidins — como foram chamadas por Hillary Clinton — formaram as bases para a Al Qaeda, o que mais tarde culminou no atentado de 11 de setembro, existe um perigo semelhante de consequências inesperadas na Ucrânia, um perigo que a mídia hegemônica já vem minimizando.
Esse é talvez o segundo aspecto mais alarmante dessa guerra, que dá mais poder à extrema direita mundial. Milhares de combatentes estrangeiros já se precipitaram para a Ucrânia com incentivo dos governos ocidentais e com o apoio da liderança de Zelensky na Ucrânia. Sabemos que os EUA fornecem armas a grupos neonazistas na Ucrânia desde 2014. Esses grupos são uma das forças mais poderosas e ideologicamente motivadas posicionadas lá. Sabemos também que as ideologias da extrema direita dos EUA e da Europa já se dedicaram a treinar essas pessoas na Ucrânia.
Só podemos imaginar quantos dos combatentes estrangeiros que estão viajando para lá são motivados por essa ideologia nacionalista e branca. E, embora a Rússia possa ter exagerado o poder dessas pessoas no governo ucraniano, os EUA e seus produtores de mídias estão agindo para minimizar e encobrir essa realidade.
A hipocrisia nisso tudo é impressionante
Os mesmos líderes que invadiram o Iraque e mataram milhões de pessoas, os mesmos líderes que estão matando de fome iemenitas e afegãos, os mesmos líderes que rotulam os palestinos de terroristas por atirarem pedras, os mesmos líderes que aproveitaram cada oportunidade para incentivar, ao invés de desencorajar, o conflito na Ucrânia desde 2014 de repente decidiram tirar da gaveta seus livros de direito internacional para embasarem seus ataques à Rússia e estão encorajando e armando a resistência da Ucrânia.
Não podemos deixá-los esquecer que estão matando de fome os iemenitas, ocupando a Síria e militarizando a África enquanto sancionam um terço do mundo. Lembrar as pessoas desse fato não é recorrer à falácia do argumento vazio que evoca uma situação oposta para justificar o injustificável; trata-se de um elemento essencial para entender o imperialismo e como esse apoio à continuidade da guerra na Ucrânia faz parte do imperialismo.
E por falar em sanções, o Ocidente está punindo coletivamente 144 milhões de russos pelas ações de seus líderes. Dá para imaginar o que aconteceria se os estadunidenses fossem submetidos a dificuldades econômicas sempre que o governo desse país invadisse outro país? O povo estaria morrendo de fome. No entanto, os líderes estadunidenses têm admitido abertamente que estão tentando destruir a economia russa para que o povo se rebele e tire Putin do poder, algo que nunca funcionou, mas que também é uma forma de punição coletiva. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, chegou a dizer que “essa não é uma guerra do povo russo”, mas “o povo russo sofrerá as consequências das escolhas de seus líderes”. Pessoas como o senador estadunidense Lindsey Graham exigiram abertamente o assassinato de Putin, o que pode soar bizarro, mas cuja intenção é deslocar, cada vez mais à direita, as regras quanto ao que é um discurso aceitável.
E, afinal, o que é a comunidade internacional? As autoridades ocidentais e suas mídias dizem que o mundo está unido ao apoiar a Ucrânia e condenar a Rússia. Falam da comunidade internacional como se fosse um único corpo a expulsar os “russos maus”. Mas o mundo não está unido e a “comunidade internacional” nada mais é, para eles, que a América do Norte, a Europa e o Japão, uma minoria do mundo que não inclui a América Latina, a África e a maior parte da Ásia. De fato, a grande maioria do mundo não tomou partido nessa guerra.
Estamos saturados de analistas ocidentais nos dizendo o que pensar. Mesmo as vozes críticas da esquerda têm sido amplamente ocidentais. No BreakThrough News, estamos desafiando esse paradigma ao trazer vozes do Sul Global, capazes de oferecer uma perspectiva diferente sobre essa guerra. Essa perspectiva se baseia num entendimento do imperialismo e na visão de uma realidade assustadora de como as sanções do Ocidente sobre a Rússia vão afetar os países em desenvolvimento que dependem da Rússia e da Ucrânia para obter commodities essenciais, como o trigo. Essa pode ser uma guerra europeia, mas suas consequências são mundiais.
Essa não é a única guerra
Embora as notícias estejam totalmente focadas na Ucrânia, os acontecimentos lá não são o único horror em andamento no mundo. Os afegãos estão sendo levados à morte por inanição por conta das políticas estadunidenses, enquanto o Iêmen continua sendo alvo de ataques de bombas e cercos. Síria, Cuba, Irã e Venezuela ainda estão sob sanções. As mudanças climáticas estão mais rápidas e perigosas que nunca. A covid-19 foi simplesmente esquecida. O sistema injusto e polarizado continua mantendo uma fração da humanidade rica e privilegiada enquanto a maioria luta para obter o sustento diário. Mas as vítimas dessas guerras não têm cabelos louros e olhos azuis, e, mais que isso, seu sofrimento é resultado do imperialismo, e por isso elas são ignoradas.
Cabe a nós resistirmos contra esse ímpeto insano em prol da guerra, principalmente porque uma mudança geopolítica importante está em curso. Os EUA estão enfraquecendo e o mundo unipolar em que vivemos ao longo dos últimos 30 anos vai chegando ao fim. É por isso que os EUA estão sendo tão incisivos: trata-se de uma tentativa de manter o controle sobre a Europa, especificamente, e sobre o mundo, de forma mais geral.
Mas a multipolaridade para a qual nos dirigimos é totalmente desprovida de gerenciamento, é caótica e não tem uma ideologia coerente. É por isso que cabe a pessoas como nós oferecer uma análise adequada e um entendimento socialista do que está acontecendo e do porquê, e também para onde vamos a partir daqui. Não vai ser fácil. Eles vão nos isolar e nos atacar, como já estão fazendo. Eles nos chamam de apologistas do Kremlim, propagandistas da Rússia, apoiadoras e apoiadores de crimes de guerra. Mas não podemos permitir que os falcões da guerra que, ao que parece, querem começar uma 3ª Guerra Mundial nos intimidem a ponto de nos silenciarem. Temos que continuar a informar as pessoas sobre como chegamos aqui, e como a OTAN e o Ocidente estão piorando a situação, e o porquê disso.
[1] Os mujahidins afegãos eram grupos islâmicos armados que se posicionaram contra a União Soviética e o governo do Afeganistão.
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Rania Khalek é jornalista correspondente no Oriente Médio do BreakThrough News. Este artigo é uma versão editada de sua fala no diálogo “Mulheres contra as guerras”, realizado pelo Capire em 28 de março de 2022.