Um ano da Escola Feminista: livro virtual reúne acúmulos teóricos e metodológicos

04/03/2022 |

Por Capire

Leia trecho de "O sistema de opressão sobre a vida das mulheres", parte do currículo da Escola Internacional de Organização Feminista Berta Cáceres

A Escola Internacional de Organização Feminista Berta Cáceres completa hoje, 04 de março, um ano desde seu lançamento. A primeira edição da Escola reuniu cerca de 200 mulheres de diversos países em nove encontros virtuais de reflexão e intercâmbio de experiências e resistências. De março a julho de 2021, participantes discutiram assuntos como os sistemas de opressão, sexualidades dissidentes, Estado e democracia, defesa da Mãe Terra e economia feminista. Homenageando Berta Cáceres, esse processo de construção se baseia em sua força e legado para fortalecer o feminismo popular e a proposta da economia feminista.

A Escola é realizada em aliança entre as organizações Grassroots Global Justice, Grassroots International, Indigenous Environmental Network e Marcha Mundial das Mulheres. Por ser um espaço de troca entre mulheres e pessoas dissidentes de gênero de diversas partes do mundo, a justiça linguística foi e é princípio em todo o seu processo de construção.

Ampliar a formação, fortalecer as lutas

Os eixos, debates e experiências da Escola foram sistematizados em um livro virtual, disponível para leitura nos idiomas oficiais: português, francês, inglês e espanhol. O livro contém os textos utilizados durante os encontros, reflexões sobre os eixos principais da Escola e as metodologias desenvolvidas. Assim, a equipe organizadora incentiva que a formação sejam replicada pelas participantes em seus territórios.

Formar formadoras, aprofundar os debates das lideranças feministas, impulsionar suas lutas locais. Esse é um dos objetivos principais da Escola. Por isso, o próximo passo é a Escola de Facilitadoras, que acontecerá a partir de março desse ano, com as mesmas participantes da primeira edição, para que elas sejam facilitadoras nos seus territórios. Também são incentivadas as iniciativas regionais. A Marcha Mundial das Mulheres da região das Américas, por exemplo, irá realizar uma formação própria, inspirada na Escola Internacional de Organização Feminista .

Leia

Incentivamos a leitura do livro na íntegra, mas também selecionamos o trecho abaixo para iniciar a leitura. Escrito por Georgina Alfonso González, uma das facilitadoras da Escola, o texto “O sistema de opressão sobre a vida as mulheres” expõe os mecanismos do sistema de opressão capitalista e patriarcal na vida das mulheres. Leia, abaixo, a segunda seção do texto, intitulada “As diferentes manifestações do capitalismo como sistema de opressão”:

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As diferentes manifestações do capitalismo como sistema de opressão

A compreensão do capitalismo como sistema de opressão explica o processo de reprodução social da vida e facilita a análise abrangente das práticas de dominação, o que permite debater os desafios da emancipação. Os eixos da dominação capitalista se expressam na opressão econômica, político-ideológica, sociocultural, ecológica, simbólico-midiática e de saberes.

1. Opressão econômica

A nova morfologia do trabalho provoca uma mudança importante nas formas de subjetivação que ocorrem no processo produtivo, o que incide diretamente nas formas de exploração que mais afetam as mulheres. É um fato que a cínica racionalidade econômica torna invisível o trabalho de cuidado onde as mulheres assumem a tarefa sem reconhecimento e/ou remuneração econômica. As sofisticadas formas de exploração do trabalho somam-se à “informalização” e à “flexibilização” do trabalho, que colocam as mulheres em situação ainda mais precária.

O capital organiza suas novas forças destruindo o sentido unitário do processo produtivo. Nestas condições, o trabalho torna-se “cotidiano”, é uma parte inseparável e essencial da vida de todos. Os laços sociais de hoje estão sob a influência dessa extrema exploração do trabalho (física, psíquica e até inconsciente) que polariza a totalidade social. As constantes tensões entre Estado, família, comunidade e mercado no mundo do trabalho tendem a ser resolvidas em detrimento do trabalho feminino e a favor do mercado, que cobre as necessidades de cuidado com as ofertas de trabalho, causando a imediata comercialização dessas tarefas de cuidado e da precariedade da vida.

Na economia global, essas mudanças se manifestam em uma “nova divisão internacional do trabalho”, onde o Terceiro Mundo participa da produção e exportação de produtos primários, enquanto é incorporado em diferentes segmentos da cadeia de valor da produção global. A combinação da competição no mercado e a implantação de novas tecnologias são uma parte inevitável do processo de acumulação de lucros. A contenção de salários, a flexibilidade e a exclusão laboral são consideradas propulsoras e dinamizadoras da economia global à medida que o trabalho se torna mais complexo devido às mudanças aceleradas pelo impacto das tecnologias da informação e da comunicação.

Em uma situação em que a economia mal cresce, a tendência de um desenvolvimento econômico mais agressivo significa a exclusão progressiva de mão de obra. Em tempos de forte expansão, a substituição do emprego por tecnologia reduz a obtenção de mais-valia, que é compensada pelo desenvolvimento de novas atividades econômicas, o que torna a competitividade e a exclusão mais agressivas.

A tecnologia é utilizada principalmente para desenvolver áreas e produtos já consolidados no mercado, ao invés de abrir novos espaços produtivos. Os benefícios gerados pelas novas tecnologias são absorvidos pelos próprios concorrentes, acentuando seu poder, domínio e controle não só sobre o que se vende, mas também das novas áreas e produtos que são criados. A tecnologia se torna o “santo remédio” para os males sociais dos países subdesenvolvidos. A tecnologia sob a psicose da competição desproporcional é um importante elemento de exclusão para as mulheres.

2. Opressão político-ideológica

Esta opressão funciona sob a premissa de conciliar as demandas da acumulação capitalista com a necessária legitimação dessa nova ordem neoliberal. Com um discurso tradicional de direitos humanos, justiça, liberdades públicas e exercício da cidadania, funda-se uma ética radical do indivíduo isolado e protagonista da democracia de normas e procedimentos. No entanto, a dominação político-ideológica se reafirma em sucessivas opressões de: classe, gênero, etnia, raça, orientação sexual e geração, entre outras.

Para o controle da soberania, autonomia e liberdade, desdobra-se a opressão política com poder material próprio, manifestado em armas, pelos exércitos, pelas estratégias e pelas alianças de tipo militar que se desenvolvem para fortalecer a capacidade de atuação do sistema de dominação, dividindo os setores progressista e popular e consolidando os interesses do bloco no poder nas políticas públicas.

O capitalismo replica suas próprias contradições em todos os eixos de dominação. Na crise atual, sob a pandemia da covid-19, se revelam as incongruências de interesses entre os imperativos de acumulação de capital e a manutenção dos poderes públicos, dos quais a acumulação também depende. O poder público legítimo e efetivo é uma condição de possibilidade para a acumulação permanente do capital, mas o impulso interno do sistema para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios poderes políticos dos quais depende. Essa contradição política explica as sucessivas crises da democracia e a natureza antidemocrática do sistema.

3. Opressão sociocultural

A usurpação da subjetividade fortalece a necessidade do capital de reproduzir valores e modos de vida em escala internacional para se erguer com poder absoluto. A expansão e desterritorialização das indústrias culturais, a concentração e privatização dos meios de comunicação, a expansão e homogeneização das redes de informação, o enfraquecimento do sentido do público e do privado são condições necessárias para garantir a eficiência da globalização capitalista e são também causa de ceticismo político, apatia social e descrédito dos valores que dignificam a mulher como sujeito político emancipatório.

A homogeneização cultural que se impõe como forma de enraizar a cultura do poder se esconde por trás de um discurso de verdade e tolerância, unidade e pluralidade, democracia e competitividade, liberdade e igualdade. A exuberância cultural, a multifacetada capacidade de expressão e a diversidade são contrárias à uniformidade que a dinâmica capitalista induz. No entanto, essa uniformidade está escondida por trás do mundo das mercadorias que excede em muito a capacidade de consumo das pessoas. A variedade é explorada apenas no mercado e quase sempre sem qualquer consideração estética ou ética, a fim de obter o lucro máximo. A homogeneização de produtos culturais e mercados de bens simbólicos cada vez mais fecha as possibilidades de criação livre, promovendo uma criatividade condicionada pelo grande capital. A pluralidade cultural enfatiza as desigualdades estruturais, culturais e históricas e revela a racionalidade cultural transnacional.

A dominação sociocultural também está associada aos fundamentalismos religiosos que se lançam contra os direitos das mulheres a uma vida digna, desencadeando uma guerra frontal com os movimentos emancipatórios das mulheres, pela diversidade sexual e pelo antirracismo.

4. Opressão ecológica

Está disfarçada na racionalidade do progresso e da prosperidade. É um sistema que leva ao limite a relação de vida ou morte e endossa a eficiência competitiva e modelos utilitários de intervenção na natureza. O cuidado e a reprodução da vida constituem um “gasto” desnecessário, pois não é recuperado como investimento em bens e serviços. A eficiência competitiva não se preocupa em cuidar para vencer, por isso destrói.

O capitalismo pressupõe estruturalmente uma divisão profunda entre a esfera natural, concebida como fonte de “matéria-prima”, e a esfera econômica, concebida como esfera de produção de valor. A privatização dos bens comuns e naturais, o roubo da biodiversidade, as práticas extrativistas e de miudezas em nome do desenvolvimento, são uma constante histórica da humanidade como resultado da irracionalidade humana.

O desenvolvimento do sistema capitalista destruiu a natureza e a vida humana. As armas e energia nuclear, resíduos químicos tóxicos, biotecnologias, o crescimento exponencial da combustão do carvão fóssil, entre outras tecnologias, ameaçam a vida em escala planetária. A robótica, os computadores, as máquinas de controle numérico, que reduzem o trabalho socialmente necessário, são uma ameaça permanente às condições de trabalho ao gerar desemprego, subemprego, aumentar a desigualdade, a pobreza e a miséria em grande parte do planeta.

Não se pode duvidar de que a natureza é o ponto de partida do capital, mas não necessariamente o seu ponto de chegada. Da natureza, o capital tira sua fonte de riqueza e a ela devolve seus resíduos.

5. Opressão simbólica-midiática

O novo grande motor de geração de riqueza se dá diante da opressão simbólica-midiática. A produção e apropriação da subjetividade e suas redes de distribuição transnacionais produziram modos de sujeição nunca antes vistos. Todas as formas diretas de interação social são substituídas por formas mediadas por um amplo sistema de comunicações, completamente alheio ou distante daquela realidade. Os mercados simbólicos e as culturas populares se organizam em relação à massificação do consumo e  à produção de bens culturais.

A opressão midiática-simbólica é sustentada pelas tecnologias de informação e de comunicação. Os mecanismos de opressão incorporam inteligência artificial aos instrumentos de dominação. A disputa é pelo controle de algoritmos, pela socialização e pela transparência no uso dessas ferramentas. A inteligência artificial  como mecanismo que produz verdades de “notícias falsas” (fake news), substitui a natureza espetacular da política.

A opressão é colocada de múltiplas e diversas formas incompreensíveis, causando prazer onde se semeia dúvida ou chantagem, instalando a inatividade como uma reação desmobilizadora perante ela. A opressão das mulheres torna-se sedutora, cativante e cria uma sensação de poder disciplinar. A violência é internalizada na subjetividade como um estabilizador invisível e inatacável.

6. Opressão de saberes

A opressão de saberes se baseia na colonialidade do saber. Faz-se uma leitura e interpretação abstrata da realidade a partir de métodos, categorias e conceitos colonizadores. São construídas teorias disciplinares que dividem ciência e saber, desvalorizando os saberes populares e tradicionais, assumindo uma posição elitista, racista e androcêntrica que reduz as culturas não ocidentais a objetos de estudo exóticos e marginais.

A despolitização do conhecimento e a ciência intocada, apartada da realidade, são argumentos que legitimam a racionalidade instrumental e valorizam a neutralidade. A partir do conhecimento, a rede do poder patriarcal e capitalista se sobrepõe aos sistemas de dominação para projetá-los no mundo acadêmico da “verdade”. O saber colonizado opera em todos os espaços da vida, é assumido acriticamente como um axioma inquestionável. A partir da linguagem e dos discursos este saber se impõe como o único, o que fecha a possibilidade de diálogos entre saberes diversos.

Redação por Bianca Pessoa
Edição por Helena Zelic

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