#EscolaFeminista: Estado e democracia são terrenos da luta feminista

02/06/2021 |

Por Capire

Saiba como foi a formação sobre Estado e democracia, com experiências compartilhadas por mulheres de partes do mundo como Quênia, Venezuela, Curdistão e Bolívia.

Melissa Sandoval

Não existem manuais para a transformação forjada em cada território a partir da história e da organização do povo. É preciso reconhecer que acertos e equívocos fazem parte desses processos e que a democracia popular exige a discussão e o aprendizado sobre os erros que possibilitam seguir adiante.

Somos sobreviventes de Estados genocidas. Somos Palestina. Somos Colômbia. A mística que iniciou a sessão sobre Estado e Democracia da Escola Internacional de Organização Feminista Berta Cáceres trouxe a força dos povos em luta por autodeterminação e soberania, e afirmou a solidariedade internacional como prática permanente do feminismo popular.

As palavras de Berta Cáceres colocaram a importância de reconhecer a legitimidade dos povos em suas lutas que, muitas vezes, se opõem à legalidade do Estado. Isso revela o caráter de dominação de Estados, cuja legalidade permite golpes e abre caminhos para o avanço do capital transnacional sobre os territórios dos povos.

A experiência do povo hondurenho, recuperada no vídeo abaixo, ilustra que, para o feminismo popular, o debate sobre Estado e democracia passa pela discussão política sobre as estratégias dos movimentos sociais em cada conjuntura.

Estado e democracia são terrenos de luta. O primeiro dia de formação foi dedicado a compreender o desenvolvimento do Estado moderno no capitalismo, exportado na colonização; o papel do Estado na nossa vida (via regulação, políticas públicas e/ou coerção); e também as perspectivas e estratégias políticas dos povos nesse terreno de luta.

As companheiras do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil) apresentaram estratégias de confronto às dinâmicas do agronegócio imbricado nas políticas de Estado, bem como suas lutas por transformações estruturais para a reforma agrária popular.

Foram compartilhadas as experiências das mulheres que auto-organizaram a Umoja, uma comunidade autônoma, como estratégia para viver livre de violência no Quênia. As participantes também ouviram sobre a luta por autodeterminação das mulheres e do povo curdo.

Em grupos, refletimos sobre as estratégias políticas contra, dentro ou fora do Estado, assim como sobre a combinação delas em diferentes contextos. Foram identificadas as formas como as estratégias se combinam, e a necessidade permanente de construir mobilização e organização popular para o confronto e oposição a governos e Estados opressores, e para a resistência contra retrocessos e a disputa por políticas públicas e legislações.

A disputa não se encerra no Estado, e é permeada na sociedade. Por isso, a organização para mudar a correlação de forças é um desafio permanente. Para o feminismo, foi colocado o desafio de manter a autonomia e a mobilização popular diante da institucionalização e despolitização, relacionadas com o financiamento e agendas internacionais das Nações Unidas. Em muitos contextos, os movimentos estão em um enfrentamento direto com as políticas de Estado que criminalizam a luta social e com Estados colonialistas, como é o caso de Israel contra a autodeterminação palestina.

A disputa política vai além das fronteiras do Estado nacional. Ela se relaciona com o enfrentamento ao poder corporativo e aos tratados de livre comércio.

Como pontuou a facilitadora Cindy Wiesner, da Aliança Popular por Justiça Global (Grassroots Global Justice – GGJ), todas essas estratégias colocam uma questão central sobre a democracia. De qual democracia estamos falando em cada contexto? Por qual democracia lutamos? Ficou evidente que os anseios emancipatórios não cabem nos moldes da democracia representativa liberal adequada à dominação do Estado burguês. A ampliação da participação, no sentido de uma democracia socialista, é uma estratégia de construção do poder popular.

No segundo dia de formação, o foco foi a construção de alternativas. A criatividade do feminismo popular marcou esse encontro. Isabel Vinent (Chabe) se tornou apresentadora da “Berta TV” e entrevistou as militantes da Marcha Mundial das Mulheres Alejandra Laprea, da Venezuela, e Graciela Lopez, da Bolívia.

Graciela compartilhou a teoria e prática articulada na proposta do bem viver, gestada nos enfrentamentos populares contra o neoliberalismo, dos quais a guerra da água em Cochabamba é exemplar. Essas lutas exigiram uma mudança política que foi além da eleição de um presidente: consolidou-se em uma nova constituição para o Estado boliviano. Nela, os povos indígenas são reconhecidos em um Estado Plurinacional.

O sentido político do bem viver vem do Sumak Kawsai, em quechua, e do Suma Qamaã, em aymara. Nesses dois idiomas se coloca uma perspectiva de vida boa, admirável, de cuidar dos outros e conviver, um sentido de plenitude que não se encontra no espanhol. Graciela destacou a importância do processo constituinte escrito pelo povo e pelas mulheres, a legitimidade e os saberes desses sujeitos que foram além do arcabouço jurídico ocidental. Incorporaram a justiça comunitária e a Pachamama e estabeleceram um novo patamar para as lutas feministas.

“Um governo revolucionário não é o mesmo que um Estado revolucionário”. Uma nova constituição também marcou o processo venezuelano, abordado na entrevista de Alejandra Laprea para a Berta TV. A militante recuperou a trajetória das mobilizações que levaram à eleição de Hugo Chavez. O caráter socialista bolivariano é parte desse caminhar. A mudança constitucional definiu novas divisões políticas e territoriais, novas formas de gestão e organização da vida.

Mais do que a criação de poder popular, o que o socialismo bolivariano inaugurou foram formas de exercício do poder popular.

As mulheres nesse processo foram visibilizadas como sujeitos políticos. Ao mesmo tempo, o feminismo viu uma rearticulação de um senso comum patriarcal, que maternaliza a ação política das mulheres. Essa é parte da disputa política.

Não existem manuais para a transformação forjada em cada território a partir da história e da organização do povo. É preciso reconhecer que acertos e equívocos fazem parte desses processos e que a democracia popular exige a discussão e o aprendizado sobre os erros que possibilitam seguir adiante. Não são apenas disputas de valores ou vontade política. É preciso retomar o controle popular sobre os bens naturais e a economia para que seja possível ampliar e avançar nas políticas públicas.

Árvore da democracia e transformação

Inspirados pela força dessas transformações populares e conscientes da ofensiva imperialista que processos revolucionários enfrentam, os grupos voltaram a se reunir para construir propostas alternativas para o Estado. O instrumento para essa atividade foi uma árvore, dividida entre partes visíveis, invisíveis ou escondidas, entre o político, o econômico e o sociocultural. A síntese dessa atividade evidenciou que essas dimensões são inseparáveis nas estratégias e nas propostas alternativas, justamente porque estão imbricadas nas dinâmicas do capitalismo racista e heteropatriarcal.

As propostas de alternativas integram a diversidade de práticas econômicas, feministas, negras e solidárias, com o reconhecimento, a politização e a socialização do trabalho doméstico e de cuidado. Destacam as formas coletivas e democráticas de fazer política feminista e popular, ampliando a noção do que é político para todas as dimensões da vida em comum. As alternativas constrõem propostas de integração regional e dos povos, baseadas na reciprocidade e complementariedade, e assim se contrapõem à lógica do livre comércio e do poder corporativo.

A desmercantilização da vida é uma estratégia fundamental, assim como a defesa e construção de políticas públicas universais e solidárias. As transformações emancipatórias passam pela educação, pela recuperação dos saberes ancestrais e revitalização dos idiomas indígenas e das culturas.

A diversidade, o cuidado, a alegria e a rebeldia transformam a sociedade e as subjetividades em um processo comum. A autonomia sobre os corpos e a autodeterminação dos povos e de suas práticas de cultivo convergem com a agroecologia como estratégia para a soberania alimentar. Faz parte desses desafios transformar as relações urbano-rural e norte-sul na perspectiva da justiça e da igualdade.

Essas são algumas práticas e propostas que as mulheres e companheires participantes da Escola compartilharam a partir de suas realidades. Elas enfrentam contradições e desafios, mas colocam os povos em movimento, construindo as condições para a transformação, com organização, mobilização e força popular.

Com essa formação sobre Estado e Democracia, a Escola completou sua primeira etapa, que buscou construir uma leitura comum da realidade, passando também pelos temas do sistema de opressões, da defesa da Mãe Terra, dos corpos e sexualidade. A partir do próximo encontro, a Escola inicia sua segunda parte, sobre a economia feminista como projeto emancipatório e sobre a construção de movimentos feministas e populares. Aqui no Capire, seguiremos registrando todos esses encontros.

Redação por Tica Moreno
Revisão por Helena Zelic

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