Nos dias 10 e 11 de maio, as vozes, poesias e canções que iniciaram a formação sobre corpo e sexualidade na Escola Feminista expressaram um “basta!” vindo das mulheres e de todas as pessoas que transgridem as imposições heteropatriarcais e racistas sobre seus corpos e sexualidades.
O capitalismo colonialista e heteropatriarcal impõe o que sentimos e desejamos. Controla os territórios e os corpos, com violência e militarização, e produz castigos a quem transgride as normas. Heteronormatividade, gênero binário e ideais de feminilidade e masculinidade brancos são normas construídas historicamente.
Aprendemos com a elaboração das companheiras indígenas de Iximuleu/Guatemala sobre a concepção do território corpo-terra. Corpo e terra se nutrem mutuamente pela resistência, pelas práticas históricas das mulheres para sustentar a vida.
Nossos corpos são territórios em permanente disputa. Em grupos, participantes compartilharam a compreensão de que essa disputa se liga diretamente à lógica de acumulação do capital, que precisa controlar e disciplinar os corpos para o trabalho. Nesse sentido, a apropriação dos nossos corpos é estruturante no sistema de opressões: se relaciona com a colonização, a supremacia branca, a exploração do trabalho e o acaparamento de territórios.
O que afeta a terra também afeta nossos corpos
A mercantilização do corpo e da sexualidade das mulheres é parte de um processo de colocar nossa vida e a natureza nos circuitos do mercado. Mercantilização, pornografia e prostituição estão articulados no neoliberalismo, e enfrentamos novas formas de aliciamento das mulheres e corpos dissidentes a serviço dos homens e corpos hegemônicos. Enfrentamos formas renovadas de expropriação da subjetividade pela mídia e redes sociais, que nos impõem padrões de beleza e comportamento brancos e ocidentais.
As mulheres, corpos e sexualidades dissidentes são sistematicamente castigadas, culpabilizadas, criminalizadas. O desaparecimento e assassinato de mulheres indígenas, a mutilação genital, a transfobia e a lesbofobia foram algumas das violências destacadas. O desafio é enfrentá-las de forma integral, revelando as violências como instrumentos do heteropatriarcado colonialista. As participantes da Escola questionaram, ainda, os mecanismos dos Estados que, em aliança com setores religiosos, são atores dessas dinâmicas de controle e responsabilizam as mulheres pelas violências sofridas.
O crescimento da violência é parte de uma reação misógina e colonialista contra as mulheres. Os grupos expressaram que o controle dos corpos e sexualidades é parte de uma disputa de poder. As mulheres e dissidências sexuais têm poder quando se organizam.
Aprofundando a análise
María Dolores e Tita Godinez, da Alianza Política Sector de Mujeres da Guatemala, facilitaram a discussão e apresentaram uma visão articulada sobre corpo e sexualidade. María Dolores destacou quatro pontos que aprofundam as reflexões dos grupos. O primeiro é o entendimento do corpo como um território em torno do qual a vida se organiza – por isso, está em permanente disputa.
Em resistência, precisamos descolonizar nossa mente, imaginação e prazeres, recuperando esse território corpo-terra para o bem viver.
O controle sobre o corpo e a sexualidade é intrínseco ao processo de acumulação de capital. Com essa perspectiva, questionamos a criação de necessidades, a submissão dos desejos e a organização da família. Nela, o amor se torna uma instituição que naturaliza o trabalho de cuidado como uma responsabilidade das mulheres.
Entre as instituições materiais e simbólicas de controle dos corpos e sexualidades, destacam-se a educação, que contribui para manipular o desejo e internalizar hierarquias, religiões e pactos políticos que patologizam e criminalizam as dissidências. Destacam-se a imposição da heterossexualidade compulsória, a maternidade como destino, a monogamia feminina e a propriedade sobre os corpos.
O último elemento de reflexão foi sobre a heteronormatividade como regime político, com a imposição de sexualidades orientadas à reprodução social do capital, a manipulação dos desejos e o controle das subjetividades. Nesse processo violento, com raízes colonialistas, os corpos são classificados por um gênero binário imposto e as raças são criadas, junto com uma hierarquização que pune e castiga quem transgride a norma.
Participantes da Escola compartilharam como tais questões aparecem em seus contextos. Colocaram a necessidade de enfrentar o silêncio, a vergonha e a culpa que marcam as experiências das mulheres, de corpos e sexualidades dissidentes em todo o mundo.
Escutamos análises sobre a violência da mutilação genital, que nega o prazer das mulheres à força; as terapias de “reconversão” de gênero e sexualidade, uma forma de violência institucionalizada contra lésbicas, gays, corpos e sexualidades dissidentes; a criminalização da homossexualidade inscrita no código penal como herança colonial; entre outras.
Diante das diferentes formas de controle, encontramos luta e resistência nas experiências do feminismo popular: para condenar o casamento forçado, reivindicar direito ao aborto e Estado laico, dar visibilidade às mulheres lésbicas, à diversidade e dissidências sexuais e de gênero; para enfrentar a prostituição e construir alternativas para as vítimas e sobreviventes; para questionar a mercantilização e medicalização dos corpos e para acabar com todas as formas de violência.
São lutas que se concretizam na sociedade de forma geral e também nas organizações mistas, onde ainda é preciso enfrentar formas de controle que impõem a submissão das mulheres na política.
Um mundo de autonomia e liberdade se constrói com luta
Além de análises críticas profundas, o feminismo popular tem construído as possibilidades de transformação em todos os lugares. Como bem lembrou uma companheira, não podemos esperar uma revolução acontecer para libertar nossos corpos e sexualidades. É preciso fazê-lo agora, como parte das nossas lutas.
Por isso, inspiradas pelo vídeo com propostas para a liberdade de nossos corpos e sexualidades, nos reunimos novamente em grupos para compartilhar nossos sonhos e visões do mundo que lutamos por construir, assim como as ações e estratégias que precisamos fortalecer nesse caminho.
Faz parte do nosso sonho a eliminação de todas as formas de violência. Isso só é possível em uma sociedade descolonizada, em que as pessoas tenham autonomia sobre seus corpos; em que as relações sexuais sejam de fato livres, sem intermediação do dinheiro e do poder. A liberdade não pode ser comprada no mercado, e ela só é possível com igualdade e justiça.
A luta por esse outro mundo nos convoca a desafiar as normas e imposições, a desaprender e reaprender. Com nossa sabedoria, liderança compartilhada e livre de estereótipos, colocamos a autodeterminação dos nossos corpos e saberes no centro da disputa por reorganizar o poder. Para isso, uma estratégia é a educação feminista e popular – das mulheres, para mulheres e reconhecendo os corpos e sexualidades dissidentes como uma categoria política. Os conceitos que usamos para explicar nossas vidas e reivindicar outro mundo têm sentido e são forjados em cada contexto de luta.
Não devemos separar nossos corpos de onde estamos: defender a água é defender nossos corpos saudáveis, porque somos seres integrais e somos natureza. Aprender com a diversidade da natureza é também reconhecer e reivindicar a diversidade dos corpos e sexualidades.
Para alcançar o sonho de viver em um mundo em que a diversidade seja referência, sem a polarização entre masculino e feminino, é preciso construir movimentos em que corpos e sexualidades dissidentes tenham visibilidade e protagonismo, em que o desejo não seja punido e o prazer seja experimentado e vivido. Por isso é tão importante que o feminismo popular enfrente os tabus e silêncios em torno da sexualidade, trazendo esse debate para o mundo público. Vamos cultivar os afetos para construir um mundo sem violência.
Todos esses sonhos coletivos exigem estratégia, debate e organização capazes de enfrentar contradições e polêmicas para poder construir sínteses que nos fortaleçam enquanto movimentos.
Isso passa pela capacidade de recuperar, a partir do feminismo popular, a visão crítica às armadilhas patriarcais e racistas que reduzem nossas lutas por autonomia aos limites e amarras do neoliberalismo colonialista. É o caso das narrativas hegemônicas das “escolhas individuais” que, quando dissociadas da crítica aos sistemas de opressão, criam armadilhas e reduzem os debates – às vezes interditando-os, às vezes manipulando-os.
As reflexões sobre corpo e sexualidade estão profundamente conectadas com as dos encontros anteriores, sobre sistema de opressões e defesa da Mãe Terra. Essa é uma exigência para que as reivindicações por autonomia e liberdade formem parte das lutas emancipatórias, articulando o individual e o coletivo, a subjetividade e as condições materiais da vida. É essa a visão que se expressa toda vez que afirmamos: “seguiremos em marcha até que todas, nossos corpos, povos e territórios sejamos livres!”