Em uma demonstração da organização da luta socialista internacionalista, aconteceu em outubro de 2023 a 3ª Conferência Internacional Dilemas da Humanidade, sediada em Joanesburgo, na África do Sul. Membros de organizações políticas, movimentos sociais, partidos e sindicatos de todas as partes do mundo se reuniram para debater e construir uma agenda de lutas comuns para construir o socialismo, organizar a classe trabalhadora, defender a vida e a natureza, construir democracia popular e fazer a luta anti-imperialista e por soberania dos povos e territórios.
Em vídeo produzido pelo Capire durante a conferência, mulheres de diversas partes do mundo falam sobre o que é necessário para construir um socialismo feminista. Assista:
A luta socialista e internacionalista se constrói a muitas mãos e só pode avançar se as mulheres estiverem presentes e atuantes. Com o sentido de articular essa luta como eixo central e transversal na construção da sociedade que queremos, o seminário “Feminismos e luta contra o patriarcado”, ocorrido no dia 16 de outubro, foi parte da programação da conferência. Foi um momento de debate e reflexão sobre a centralidade da organização das mulheres e pessoas dissidentes de gênero na construção de um projeto socialista, internacionalista e solidário. A conferência internacional foi resultado dos acúmulos das edições regionais, nas quais as lutas feministas e contra o patriarcado apareceram como tema central da luta de classes nos continentes.
Participaram do seminário a professora, pesquisadora e militante Akua Opokua Britwum, de Gana; a militante pela democracia na Tailândia Kunlanat Jirawong-Aram; a integrante do Partido dos Trabalhadores da Tunisia Olfa Baazaoui; María Inés Davalos, militante da Coordenação Nacional de Organizações de Mulheres Trabalhadoras, Rurais e Indígenas (Conamuri) do Paraguai; Maite Mola do País Basco e membro do Partido da Esquerda Europeia; e Maisa Bascuas, pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social na Argentina, responsável pela mediação. O debate foi iniciado com a apresentação do documentário indiano Kerala’s Kudumbashree: Quando Milhões de Mulheres se Organizam [Kerala’s Kudumbashree: When Millions of Women Organize], produzido pelos portais Peoples Dispatch e NewsClick. O documentário apresenta a história das mais de quatro milhões de mulheres organizadas na luta por autonomia no estado de Kerala, ao sul do país.
Construindo um socialismo feminista
Segundo Akua Opokua, o patriarcado precede o capitalismo, mas é a partir do capitalismo que a estrutura patriarcal se redesenha para permitir uma exploração ainda maior do trabalho das mulheres. Em Gana, ela explica, as mulheres tiveram um papel importante na luta contra o colonialismo e pela independência do país. Após a independência, a luta se organizou a partir do anti-imperialismo em consonância com lutas que envolviam todo o continente contra o apartheid e a exploração do trabalho e da natureza por países europeus. Os grupos de mulheres organizadas foram se ampliando ao longo dos anos, enfrentando e denunciando a cooptação do feminismo pela agenda neoliberal. “No movimento socialista de Gana, buscamos pessoas jovens que querem uma sociedade diferente para trazer transformações, porque há uma relação entre patriarcado e o sistema capitalista”, ela compartilha.
Na Tailândia, o jornal de esquerda Dindeng cobre a luta pela democracia no país e o feminismo socialista construído pelas mulheres tailandesas. Produzir textos, podcasts e traduções em tailandês sobre os debates da esquerda global é uma preocupação para o jornal, que busca ser acessível para a população. Kunlanat Jirawong-Aram explica que as mulheres na Tailandia enfrentam uma das maiores taxas de encarceramento do mundo. “Uma de nossas companheiras que estava presa nos disse que quase todas as mulheres que ela conheceu na cadeia estavam ali por causa dos homens de suas vidas”, explica. Além disso, elas são vítimas do militarismo e imperialismo norte-americano que continua a operar no país. Apesar dos desafios que enfrentam no Dindeng, as mulheres se organizam para apresentar sua agenda feminista nos artigos publicados no site e também nas mobilizações de rua.
Na Tunísia, as mulheres tiveram um papel central no movimento de libertação nacional. Olfa Baazaoui explica que, mesmo que leis mais progressistas conquistadas recentemente tenham sido atribuídas ao presidente, elas só foram conquistadas com o trabalho do movimento das mulheres. O país passou por um golpe de estado em 2021, quando o presidente Kaïs Saïed paralisou o parlamento, atuando até hoje como único governante com plenos poderes no país. “Estamos lutando para tentar conservar as conquistas democráticas que tivemos porque só assim podemos ajudar as mulheres a se organizarem e lutarem por democracia e mais direitos”, explica Olfa.
No Paraguai, as companheiras da Conamuri, que fazem parte da CLOC-Via Campesina, constroem o feminismo camponês e popular, em um compromisso político com a defesa da vida e partindo das experiências nos territórios. O feminismo passa pela defesa da terra, das sementes e pelo enfrentamento à violência. “As lutas são vivas e sabemos que a luta pela emancipação das mulheres tem que estar junto com o fim da propriedade privada”, defende María Inés Davalos. Na América Latina, a vasta ocupação da terra por empresas transnacionais e pelo agronegócio é um dos principais desafios. Na contramão, estão as mulheres que vivem de sua terra e de sua produção, e estão na luta por soberania alimentar: “é nossa forma de nos comunicar com os demais, lutar contra as transnacionais e nos proteger das sementes transgênicas”.
Na Europa, as mulheres lutam contra o avanço da extrema-direita e do conservadorismo e o aumento da violência, epecialmente a cometida contra mulheres migrantes vindas do Sul global. Para Maite Mola, ainda que o problema da imigração não seja específico das mulheres, são elas as que mais sofrem nas fronteiras e com a precariedade que encontram ao chegar nos países para onde se destinaram. Nessa parte do mundo, também avançam as denúncias das mulheres contra a pornografia e a atualização de formas de violência cibernética, como na criação de deep fakes pornográficos, usando a imagem de qualquer mulher que tenha fotos publicadas na internet. “Além disso, o tema do aborto é um tema central. Precisamos lutar por esse direito e essa é também uma luta de classe, não é um tema de caprichos. Mesmo sendo ilegal, as mulheres que têm dinheiro fazem aborto, e as que não têm, morrem”, denuncia Maite.
Para Kunlanat, a construção feminista também passa por romper com a divisão entre a racionalidade, vista como masculina e apreciada, e a sensibilidade, vista como feminina e inútil à luta: “há uma normalização dos espaços políticos como espaços dominados pelos homens, e as mulheres não são vistas como políticas. Mesmo hoje, as mulheres são vistas como pessoas sem pensamentos e ideias próprias em um mundo que tenta colocar a lógica acima das emoções. Mas as emoções não devem ser inferiores. Devemos acolher as emoções como uma questão política”. Sobre o feminismo e a luta socialista, María Inés compartilha que “para nós o feminismo é de classe, pois busca a construção do socialismo. Dizíamos ‘sem feminismo não há socialismo’, mas temos que avançar com uma visão positiva. Hoje dizemos ‘com feminismo, construímos socialismo’”.