Em agosto, movimentos da América Latina e do Caribe se reuniram em Honduras para uma série de atividades convocada pela Amigos da Terra da América Latina e do Caribe (ATALC). No dia 23, foi realizado um evento aberto ao público chamado Direitos para os povos, obrigações para as empresas. O evento contou com a presença de mais de 15 palestrantes e teve como foco o tratado vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, que será debatido durante a oitava rodada de negociações da Organização das Nações Unidas (ONU) no mês de outubro em Genebra, na Suíça.
O evento contou com a presença de Natalie Roque Sandoval, ministra da Secretaria de Direitos Humanos de Honduras (SEDH), a quem foi entregue o texto proposto pela Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo. A recuperação da democracia nesse país centro-americano e no governo de Xiomara Castro é, para os movimentos, um cenário de oportunidades para avançar em políticas nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos.
“Ficamos muito emocionadas na posse da presidenta Xiomara Castro, ao ver os rostos de tantas mulheres que entregaram suas vidas a essa luta, que lutaram com suas próprias vidas para colocar a vida no centro. Quero dizer que, assim como as mulheres que estão à frente desta batalha, na primeira linha, são as mais afetadas, elas também são justamente as que estão na liderança. A cara da luta pelo tratado é uma cara feminista”, disse Leticia Paranhos, da Amigos da Terra Internacional, no início de sua exposição.
Soniamara Maranho, do Movimento de Atingidos por Barragens da América Latina (MAR), foi uma das militantes presentes que falaram sobre a agenda de enfrentamento ao poder corporativo. Segundo ela, “as empresas transnacionais são corporações com um poder paralelo, com muito poder. Muitas vezes, elas exercem uma grande pressão sobre nossos governos e nossos povos. Para elas, não existe lei. Não possuem visto, nem fronteira, nem negociação, porque a negociação vem de cima e tem como finalidade enriquecer e privatizar tudo o que construímos com nossas mãos e com nosso suor”.
São empresas repressoras, que tiram de nós até o direito de viver e reproduzir a vida em nossos territórios. É por isso que eles roubam nossos alimentos e os recursos naturais que são essenciais para o desenvolvimento humano em todo o mundo: porque eles querem comandar o mundo.
Soniamara Maranho
Miriam Miranda, dirigente da Organização Fraternal Negra Hondurenha (Ofraneh), abordou o poder das corporações em Honduras e como esse poder se naturaliza, naturalizando também as mudanças climáticas e a precarização da vida. Ela também criticou as falsas soluções das empresas para o problema dos resíduos industriais e para o consumo de alimentos ultraprocessados: “90% do que estamos consumindo nos supermercados está embalado em plástico e eles nos dizem ‘traga a sacola porque não vamos mais usar plástico’”. Em sua intervenção, Miriam perguntou: “Como explicar a uma criança que a comida não nasce no supermercado? É costume levar crianças aos supermercados, mas elas não sabem que, por trás dos alimentos que são comprados, existem muitos problemas enfrentados nas áreas rurais”. Portanto, para ela, “temos que entender que nossos bairros e comunidades são territórios onde precisamos construir soberania e autonomia. Vejam o que está acontecendo no norte neste momento: todos os rios estão secando, há uma crise, é uma coisa impressionante”.
Enfrentar as empresas transnacionais é defender a vida e os direitos humanos
O povo originário garífuna, do qual Miriam é parte, vive uma realidade de perseguição e usurpação de terras. “Vivemos na costa, sitiada permanentemente pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas. Neste cenário, temos que lutar dia após dia para não desaparecer como povos e comunidades. Vocês não imaginam o que isso significa, o que significa ser assediado por esse verdadeiro poder que, na América Latina, tem crescido a cada dia”, disse ela no evento.
Na mesma semana, a Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo publicou uma nota em defesa de Miriam, denunciando o abuso de autoridade por parte da Procuradoria Geral da República, que determinou uma investigação contra Miriam e outras e outros ativistas políticos, indígenas e comunitários.
Entendemos que a estratégia de criminalização de defensores, exercida pela Procuradoria da República, é parte de um roteiro que busca desestabilizar o poder executivo. Isso faz parte de uma estratégia que vem sendo utilizada para minar a governabilidade daqueles governos que têm como objetivo restaurar a ordem democrática. É nesse sentido que expressamos nosso apelo ao Estado de Honduras, para pôr fim a essas ações violentas, para garantir o direito à legítima defesa de si mesmo dos diferentes territórios. Reiteramos, assim, que apoiamos e estamos juntos com Miriam Miranda, Luther Castillo Harry e Edy Tábora.
Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo
Bertha Zúñiga falou sobre a organização do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh) desde o assassinato, em 2016, de Berta Cáceres, sua mãe e líder do Conselho. As alianças e processos de divulgação e denúncia têm sido fundamentais para, como descreve Bertha, “apontar e responsabilizar as empresas que, com dinheiro – e não apenas com o dinheiro delas, porque quanto mais investigamos, mais se confirma que se atua em cumplicidade com a criminalidade – têm permitido tantos crimes, não apenas o da nossa companheira Berta Cáceres”. Para ela, o assassinato de Berta foi “a síntese da grande perseguição que tem lugar na América Latina e das consequências do desrespeito aos direitos à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas”.
Cada dia de investigação – não apenas as investigações oficiais, mas também as que são conduzidas a partir da solidariedade popular – expõe com mais nitidez a responsabilidade das empresas ligadas ao projeto hidrelétrico Agua Zarca nesse assassinato. Neste ano de 2022, David Castillo, ex-presidente executivo da empresa Desarrollos Energéticos (DESA), que tinha interesses econômicos no território do povo Lenca defendido por Berta, foi condenado. Para Berthita, a sentença “foi um momento muito importante, porque Castillo era o elo com as empresas internacionais e os bancos europeus. Então podemos dizer a essas empresas: ‘vocês estavam dialogando com uma pessoa que foi condenada a 22 anos de prisão’. Isso não é pouca coisa. Agora temos certeza de que as empresas são assassinas”.
Organização popular para desmantelar o poder corporativo
Uma das formas de combater o poder das empresas transnacionais é a proposta de um tratado vinculante, capaz de regulamentar e julgar esse poder internacionalmente, priorizando os direitos humanos acima do lucro. Segundo Leticia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, a negociação de tal proposta só tem sido possível com a articulação de movimentos e governos populares. Leticia também avalia que, durante o processo dessa proposta, uma série de golpes do mercado nas negociações, bem como disputas entre o Norte e o Sul globais, causou a perda de elementos fundamentais para manter a força do documento. “Isso fez com que, em aliança com a Campanha Global e os Estados democráticos do Sul, conseguíssemos colocar de volta os conteúdos essenciais para que o tratado não seja um pedaço de papel em branco”, explicou. A disposição para fortalecer o tratado e reorganizar a economia vem, segundo ela, da força popular: “Ainda bem que o povo está se levantando e estamos recuperando nossas democracias com governos que colocam a vida no centro e não se curvam ao lucro das corporações transnacionais. Sabemos que a lei por si só não garante direitos. A luta popular garantirá os direitos, mas a lei será uma ferramenta que permitirá uma luta mais justa para os movimentos, povos e comunidades atingidas.
Como despertamos o povo? Trazemos sempre nossos tambores, que estão presentes na luta, nossas cores e nossa alegria, porque a luta tem que ser alegre.
Miriam Miranda
Também na compreensão de Miriam Miranda, é necessário aprofundar a ação transformadora, ir além de colocar as críticas. “Diante dessa situação e da realidade, precisamos correr, não apenas na análise, mas também na elaboração de propostas”, afirmou. Para isso, ela aponta a necessidade de vincular as lutas por soberania alimentar e por justiça ambiental, não apenas entre as populações rurais, mas também nos bairros e comunidades da área urbana. “Não se pode transferir para as comunidades a responsabilidade de cuidar do planeta. As áreas urbanas também têm que assumir responsabilidade, é preciso fortalecer as lutas nos bairros e comunidades porque são os consumidores aqui. As pessoas dos bairros têm que saber que estamos lutando lá, onde a comida é produzida; mas se não tivermos água lá, eles não terão o que comer na zona urbana”.
A usurpação da natureza e a exploração da força de trabalho na América Latina e no Caribe é um tema de preocupação e de denúncia para os movimentos sociais do continente. As empresas transnacionais, atuando sem regras e sem restrições, criam novas formas de imperialismo e colonialismo e aprofundam o conflito entre capital e vida nos territórios do Sul global. Esse conflito ficou evidente, por exemplo, nos crimes da mineradora Vale, responsável pela morte de centenas de pessoas e pela destruição de comunidades e seus meios de subsistência devido ao rompimento das barragens de Brumadinho e Mariana no Brasil, perto do local onde Soniamara vive. A ausência de uma reparação justa às pessoas atingidas é também uma marca do poder corporativo. “As corporações transnacionais se apropriam e tornam privado tudo o que é construído socialmente, com as mãos e os corpos de nossos povos. Não é possível falar sobre o desenvolvimento do sistema capitalista e das empresas transnacionais sem falar da América Latina, porque somos extremamente ricos em muitos recursos naturais”, diz Soniamara.
Todos nós acreditamos em uma alternativa ao sistema capitalista. Precisamos deter as transnacionais para defender nosso planeta. Queremos e acreditamos que podemos construir uma sociedade para sermos felizes, para desfrutar dos frutos de nosso trabalho, onde os povos e os governos sejam cúmplices de um projeto de soberania, democracia e defesa dos direitos humanos.
Soniamara Maranho