No Dia Internacional de Luta pelo Fim da Violência Contra as Mulheres, 25 de novembro, recuperamos a elaboração política da Marcha Mundial das Mulheres sobre essa luta. O campo de ação sobre violência contra as mulheres foi construído coletivamente em preparação à 3a Ação Internacional do movimento, em 2010, ao lado de outros três campos de ação: paz e desmilitarização, bens comuns e serviços públicos, trabalho e autonomia econômica. Os campos de ação expressam a síntese política daquele período, e serviram de orientação da ação política da Marcha Mundial das Mulheres desde então.
Doze anos depois, as bases desse documento continuam vigentes. Capire conversou com integrantes do Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres sobre os desafios para atualização das estratégias de combate a violência contra as mulheres na atual conjuntura.
Entre os elementos de continuidade do campo de ação, está a visão política de que a estratégia feminista contra a violência deve ter como foco combater suas causas, e não apenas remediar seus efeitos. Para Nalu Faria, representante das Américas no Comitê Internacional, “lutar contra a violência é enfrentar o sistema patriarcal, em sua imbricação com o capitalismo, o racismo, o colonialismo e a LGBTfobia”. O documento destaca que a violência afeta todas as mulheres como grupo social, mas está muito relacionada com os contextos específicos, e se intersecciona com as diferentes opressões que as mulheres enfrentam por sua classe, raça, sexualidade. Nalu sublinha a importância de compreender os desafios da luta contra a violência no contexto de acirramento do conflito capital-vida. A violência, o racismo e a militarização têm sido instrumentos para ampliar o controle sobre os corpos, trabalhos e territórios.
O vínculo entre violência, militarização e avanço do capital é um desafio apontado por Luciana Alfaro e Marianna Fernandes, representantes da Europa. As militantes destacam a violência das fronteiras militarizadas e denunciam a precariedade a que as mulheres migrantes são submetidas enquanto sustentam parte da reprodução social na Europa. Os fluxos de acumulação do capital transnacional se relacionam com a violação de direitos e a despossessão nos países do Sul: “como feministas que habitamos esta região, também cabe a nós denunciar o poder corporativo das empresas transnacionais de capital europeu, que operam com toda impunidade nos territórios do Sul”. Luciana e Marianna destacam, ainda, a necessidade de “reconhecimento e solidariedade feminista com as companheiras que, por denunciar e resistir, estão sendo criminalizadas, ameaçadas e violentadas pelos Estados e pelo poder das transnacionais.”
A violência contra as mulheres é usada como arma de guerra. Bushra Khaliq, representante da Ásia e Oceania, destaca que as mulheres enfrentam situações brutais devido às intervenções militares dos Estados Unidos e da OTAN. Em 2010, o campo de ação questionava a instrumentalização da defesa dos direitos das mulheres, usados como “justificativa” para legitimar estratégias imperialistas de ocupações, guerras e sanções. O documento mencionava explicitamente o Afeganistão; hoje, mais de uma década após a ocupação estadunidense no país e um ano após sua retirada que trouxe novamente o Talibã ao poder, as mulheres afegãs enfrentam restrições em todas as dimensões de suas vidas. “Devemos manter o Afeganistão em nossas mentes, corações e vozes. Não podemos aceitar esses tipos de restrições”.
Retomar o campo de ação da Marcha Mundial das Mulheres sobre a violência nos permite avaliar os acúmulos e desafios dessa luta. Uma das marcas do tempo sobre o documento é a necessidade de explicação do termo “feminicídio”, em uma nota de rodapé que o define como “o misógino e excepcionalmente brutal genocídio de mulheres, muitas vezes acompanhado por violência sexual extrema e impunidade para seus agressores”. A luta das mulheres já fez o mundo conhecer o sentido político desse termo, e a brutalidade de sua realidade.
A crítica à mercantilização do corpo e ao controle da sexualidade é parte constitutiva do enfrentamento à violência patriarcal no neoliberalismo. Outra marca do tempo é a necessidade de denunciar as dinâmicas de violência contidas no modelo capitalista e heteropatriarcal de organização da Copa do Mundo de futebol masculino da FIFA. Em 2010, o evento foi realizado na África do Sul e as feministas denunciaram o aumento do tráfico de mulheres e da exploração sexual. Em 2022, o Mundial acontece no Catar, e há denúncias de violência, violação dos direitos das mulheres e da população LGBT+, e de exploração das e dos trabalhadores migrantes no país. Para Bushra, “as pessoas transgênero e LGBT+ estão sob ameaça, suas vidas, seus espaços e suas vozes estão sendo ameaçadas”, e essa realidade vai muito além do Catar.
A visão política da Marcha Mundial das Mulheres sobre o enfrentamento à violência aponta a necessidade de disputar as políticas públicas e a justiça, tendo como horizonte a transformação global do modelo, enfrentando as causas da pobreza e da violência. Por isso, sua aposta estratégica é fortalecer a auto-organização e a solidariedade entre mulheres, assim como fortalecer alianças para incorporar o enfrentamento à violência na agenda dos movimentos mistos, como faz a Via Campesina. Para Bushra, o feminismo hoje traz muita esperança “porque existe resistência e mobilização, inclusive enfrentando repressão. Estamos marchando por nossa liberdade, e vamos seguir nossa luta até que todas sejamos livres”. Leia abaixo o texto do campo de ação da Marcha Mundial das Mulheres:
Pelo fim da violência contra as mulheres
Campo de ação da Marcha Mundial das Mulheres – 2010
A violência contra as mulheres é estrutural e é inerente aos sistemas patriarcal e capitalista. É usada como uma ferramenta de controle da vida, corpo e sexualidade das mulheres por homens, grupos de homens, instituições patriarcais e Estados. Apesar de afetar às mulheres como grupo social, cada violência tem um contexto específico e temos que compreender como, quando e por que ocorre a violência contra as mulheres.
A ideia geral sobre a violência contra as mulheres é que trata-se de uma situação extrema ou localizada, envolvendo pessoas individualmente. Mas ela nos toca a todas, pois todas já tivemos medo, mudamos nosso comportamento, limitamos nossas opções pela ameaça da violência. Outra ideia é que a violência contra as mulheres é apenas um problema das classes baixas e das culturas “bárbaras”. No entanto, também sabemos que esse tipo de violência é transversal e atravessa todas as classes sociais e diferentes culturas, religiões e situações geopolíticas.
Apesar de ser mais comum na esfera privada, como violência doméstica – seja esta sexual, física, psicológica ou abuso sexual – a violência contra as mulheres e meninas ocorre também na esfera pública, que entre outros inclui: feminicídio, assédio sexual e físico no lugar de trabalho, diferentes estupros, mercantilização do corpo das mulheres, tráfico de mulheres e meninas, prostituição, pornografia, escravidão, esterilização forçada, lesbofobia, negação do aborto seguro e das opções reprodutivas e autodeterminação, etc. O silêncio, a discriminação, a impunidade, a dependência das mulheres em relação aos homens e as justificações teóricas e psicológicas toleram e agravam a violência para as mulheres.
A violência, a ameaça ou o medo da violência são utilizados para excluir as mulheres do espaço público. As mulheres pagam com suas vidas por trabalhar na esfera pública em lugar de ficar em casa como impõe a cultura patriarcal, ir à escola ou à universidade, “atrever-se” a viver sua sexualidade abertamente ou por se prostituir como falta de opção. Em um contexto de criminalização dos movimentos sociais, a repressão de mulheres ativistas envolvidas com a luta muitas vezes toma a forma de violência sexual. Além disso, a discriminação contra as mulheres é composta pela intersecção de diferentes formas de opressão: elas são discriminadas por ser mulheres, e também pela sua cor de pele, língua, raça, etnia, classe social, situação financeira, religião, sexualidade…
A raiz da violência contra as mulheres está no sistema patriarcal e no capitalismo, que impõem uma necessidade de controle, apropriação e exploração do corpo, vida e sexualidade das mulheres. O patriarcado funciona através de dois princípios: a noção de que as mulheres são propriedade dos homens, por isso sempre disponíveis a esses, e a divisão das mulheres em duas categorias: “santas” e “putas”. Como parte desse sistema, a violência é a punição para aquelas que não se enquadram no papel da “santa”: boa mãe e esposa. Por exemplo, é comum que os homens justifiquem que agrediram, verbal ou fisicamente, a suas esposas porque a comida não estava pronta ou porque a roupa que queriam vestir não estava limpa. Também é um castigo para aquelas que são consideradas “putas” e os agressores e a sociedade justificam a agressão dizendo que a mulher estava caminhando sozinha de noite, ou porque são lésbicas e devem ser ensinadas a ser heterossexuais, ou porque a roupa que estavam usando não era decente.
Como parte da cultura patriarcal, a masculinidade está associada à agressividade, e os jovens são ensinados que ser violento é ser um “verdadeiro homem”. São empurrados – em alguns casos – a unir-se a gangues sexistas ou racistas. Novas formas de violência com relação às jovens mulheres, como assédio sexual contra as estudantes e violência de grupos nas escolas, se revelam e crescem à cada dia. Elas instauram relações e divisões sexistas de papéis entre jovens mulheres e homens sem que haja qualquer discussão pública sobre esses estereótipos devastadores. A noção imposta pelo patriarcado de que as mulheres são propriedades dos homens inclui também um aspecto econômico que se expressa na combinação entre o patriarcado e o capitalismo, impondo uma divisão sexual do trabalho com papéis “naturais” para mulheres e homens. Desta forma, as mulheres são caracterizadas como mão-de-obra muito barata sempre disponível para o cuidado dos outros e para todo o trabalho que isto implica.
Assim, assistimos a dois níveis de dominação das mulheres dentro dos sistemas patriarcal e capitalista: por um lado, há uma exploração do trabalho das mulheres e, por outro, a violência como ferramenta para manter a dominação do homem. E, portanto, não podemos falar na erradicação da violência para as mulheres sem demandar a erradicação dos sistemas patriarcal, capitalista e colonialista.
A violência contra as mulheres e a misoginia se intensifica na medida em que os atores e políticas da globalização neoliberal se afirmam na economia. O feminicídio aumenta quando são promovidos e assinados acordos de livre comércio nas Américas, como o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), sob o qual os lugares de trabalho, como as fábricas, aproveitam da flexibilidade das leis trabalhistas e ambientais. Muitas mulheres mexicanas são assassinadas, por exemplo, quando cruzam a fronteira com os Estados Unidos e na própria cidade fronteiriça de Cidade Juárez. O ataque aos direitos reprodutivos e aos serviços de saúde aumentou à medida que os serviços sociais foram sendo privatizados ou tiveram seus orçamentos reduzidos. À medida que se globaliza a indústria sexual cresce o numero de mulheres traficadas cada vez mais jovens. As mulheres são estupradas em guerras geradas em nome da “propagação da liberdade” e nas invasões realizadas por potências estrangeiras (como a invasão americana ao Afeganistão) que por vezes se “justificam” em nome da defesa dos direitos das mulheres.
Como podemos combater a violência contra as mulheres?
Já existem convenções internacionais como a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e leis em muitos países que “protegem” às mulheres da violência, mas não são suficientes e muitas vezes nem sequer são aplicadas na prática. Além disso, estas leis e convenções põem o foco do problema nas mulheres, como se fosse nosso problema, com o qual temos que lidar, quando – pelo contrário, e como vimos anteriormente – necessitamos questionar o papel dos homens na violência e denunciar que a violência é estrutural.
Sabemos que as medidas punitivas são necessárias, mas insuficientes para erradicar a violência. Nos países onde as leis existem, é difícil que cheguem às mulheres que não pertencem à classe média, urbana e branca. Temos que exigir que nossos Estados se tornem responsáveis, demandar políticas públicas para as vítimas de violência, para as mulheres e crianças traficadas, para os grupos minoritários, para as mulheres rurais, negras, migrantes e indígenas. Mas, além disso, são necessárias ações que busquem prevenir e que coíbam os atos de violência antes que ocorram.
Temos também que discutir o papel dos governos e do Estado. Atualmente, o Estado é, ao mesmo tempo, protetor e opressor: é portador do interesse geral e defensor dos privilégios, é patriarcal e violento (contra as mulheres, povos indígenas, migrantes, de diferentes raças e etnias). Inclusive a polícia que cumpre muitas das políticas que demandamos, é a mesma que pratica a violência para as mulheres, reprime os movimentos sociais e é parcial em termos sociais e raciais. Reconhecemos a contradição inerente desta situação, pois o fato é que, para muitas mulheres, contar com o Estado, que representa um poder exterior e superior, é a única forma que têm para defender-se contra a violência nas suas comunidades e famílias. Pelo contrário, o Estado que nós demandamos deve promover as liberdades e direitos para todas e todos, intervir na economia e estar estruturado em diferentes formas de democracia participativa e controle cidadão.
As mulheres sempre resistiram, e seguem resistindo, no âmbito individual e coletivo. Sempre que uma mulher atua dessa forma, ao desafiar ou denunciar a violência contra ela mesma ou mulheres de sua comunidade, está rompendo com o paradigma dominante. Necessitamos apoiar sua resistência ao condenar e denunciar homens que cometem violência contra as mulheres, e confrontar publicamente aos homens e à sociedade sobre o tema da violência contra as mulheres. Também devemos denunciar a cumplicidade de homens, Estados e instituições tais como as forças armadas e religiões. Necessitamos mobilizar a sociedade civil, pensar estrategicamente e promover ações radicais para a prevenção e denúncia da violência masculina contra as mulheres. Nesse processo, as mulheres do setor não lucrativo – que provêm serviços essenciais para o empoderamento e cuidado das mulheres – e os movimentos locais fortes – onde as mulheres das comunidades são protagonistas – desempenham um papel decisivo.
Nós, da Marcha Mundial das Mulheres, queremos gerar um debate e uma ação política ampla que promova mudanças em nossas culturas patriarcais e se antecipe à violência, sendo verdadeiramente preventiva.
A extensão e a intensidade da violência já são conhecidas. Por isso, não é necessário esperar que exista mais uma denúncia, mas pautar de forma permanente esse tema na agenda dos grupos de mulheres, nas organizações mistas, nas rádios comunitárias, nos periódicos e meios de comunicação dos movimentos.
Para isso, acreditamos que o movimento feminista deve construir uma forte e ampla auto-organização das mulheres em luta por autonomia (econômica, sexual, reprodutiva, pessoal, etc) e autodeterminação.
Os grupos de mulheres se fortalecem através de encontros de diálogo, debates, manifestações, trabalhos corporais de auto-defesa. O objetivo não é localizar a violência sexista como um problema de algumas mulheres, mas nos fortalecer a todas, aprendendo e reaprendendo a resistir, a construir e reconstruir nossas vidas sem violência.
Valorizamos como um passo importante nesta luta o fato de que movimentos sociais mistos –urbanos ou rurais – se disponham a enfrentar à violência contra as mulheres. Por isso, declaramos nossa solidariedade com a “Campanha Mundial pelo fim da Violência contra as Mulheres”, lançada pela Via Campesina em sua 5ª Conferência Internacional realizada em Moçambique, em outubro de 2008. Reconhecemos a importância de que tanto mulheres quanto homens se ocupem de responsabilizar os homens pela violência contra as mulheres.
Frente à violência contra as mulheres, demandamos:
• A adoção de medidas que indiquem o compromisso dos diversos atores para reconhecer às mulheres como indivíduos e cidadãs de pleno direito desde a infância. Por exemplo: a utilização de linguagem inclusiva em materiais didáticos, a promoção de uma educação não-sexista que rompa com a divisão sexual e hierárquica de papéis entre crianças e meninas, campanhas de conscientização popular e a garantia de espaços de participação política;
• O apoio com recursos aos movimentos e grupos de mulheres sem fins lucrativos, que estão a frente de serviços de suporte às mulheres que se recuperam de discriminações, abusos e violências;
• A atribuição de responsabilidade aos meios comerciais como porta-vozes dos sistemas patriarcal e capitalista pela contínua má representação, apropriação e abuso do corpo feminino;
• A prevenção da violência contra as mulheres e meninas por meio de atividades de sensibilização, explicitando como ocorre a violência, quais são suas causas, e como se manifesta, assim como por meio do estimulo à auto-organização das mulheres;
• A condenação do uso sistemático do corpo das mulheres como arma de guerra em conflitos armados, assim como a rejeição que elas e as crianças que são fruto de violações enfrentam por parte de suas famílias e comunidades que as culpam pela violência que sofreram;
• A punição dos que praticam a violência contra as mulheres – seja na esfera privada, seja na esfera pública.
E nos comprometemos a:
• Denunciar as diferentes expressões da violência patriarcal contra as mulheres nos diversos países, como: feminicídio, mutilações genitais, levirat – sororat1, “crimes de honra”, turismo sexual, tráfico de mulheres e meninas, esterilização forçada e as situações de violência vividas pelas mulheres comprometidas com as lutas, as mulheres presas, as lésbicas e as mulheres portadoras de deficiência;
• Trabalhar para transferir para os homens que praticam a violência o estigma que atualmente recai sobre as mulheres vítimas;
• Denunciar a mercantilização do corpo das mulheres e continuar o debate sobre a prostituição, especialmente por ocasião da Copa do Mundo de Futebol em 2010;
• Dar visibilidade a todas as formas de resistência das mulheres à violência sexista, sobretudo em âmbito coletivo e, desta forma, romper a cultura do silêncio que cerca a violência em nossas comunidades;
• Combater a violência através de ações de sensibilização junto de movimentos sociais aliados, e campanhas de educação popular que favoreçam a conscientização feminista;
• Visibilizar os vínculos entre as políticas patriarcais que perpetuam a violência contra as mulheres (tais como a impunidade para os agressores, a negação da autodeterminação reprodutiva, criminalização de mulheres ativistas, proibição do aborto, etc) e atores e políticas neoliberais. Chamar a atenção sobre o feminicidio, por exemplo, e seus vínculos com os acordos de livre comércio;
• Trabalhar em aliança com movimentos sociais mistos (nos quais homens e mulheres participam) para garantir a construção de um ambiente no qual a violência contra as mulheres não seja aceitável (e de espaços físicos livres de violência) como princípio que oriente estes movimentos.
- Casamento forçado de uma viúva com o cunhado, ou do viúvo com a irmã de sua falecida esposa [↩]