A força vital das mulheres na Via Campesina

22/11/2022 |

Por Nettie Wiebe

Conheça a experiência de organização das mulheres nos primeiros anos de construção da Via Campesina #LVC30Anos

Tineke D’haese / La Vía Campesina, 2013

A primeira reunião da Via Campesina foi em Manágua, Nicarágua, em 1993, e foi uma reunião de líderes homens. Nem a declaração de Manágua nem a seguinte de Mons, quando a Via Campesina foi estabelecida como tal, incluíam menções a mulheres camponesas.

Depois, em 1996, nos encontramos em Tlaxcala, no México, e foi uma assembleia incrível. A partir do meu espaço ajudamos na organização e na mobilização. E não tínhamos ideia de quão maravilhosas, amplas, determinadas e enérgicas eram as organizações campesinas do mundo todo. Como foi grande a representação naquela assembleia!

La Vía Campesina, Tlaxaca, 1996

Nesse momento, já eram 20% de mulheres na assembleia. Organizamos debates paralelos e criamos um grupo de trabalho de mulheres. Em um dos últimos dias, ocorreu o processo para escolher um Comitê de Coordenação Internacional (CCI), que seria o centro desse movimento recém-estabelecido. Naquela época eram oito regiões, uma das quais não estava propriamente estabelecida, e cada região realizou uma reunião para selecionar sua coordenação regional. Quando voltaram para a assembleia, sete homens haviam sido selecionados.

Havia uma tensão na sala. Muitas de nós não ficamos satisfeitas com essa representação. Houve resistência e por isso as regiões tiveram que fazer um segundo turno de seleção e tentar novamente. Eu fui selecionada para representar a América do Norte. Conseguimos quebrar essa barreira de exclusão das mulheres na liderança. Participei do CCI por oito anos.

Pessoalmente, senti uma enorme responsabilidade, mas sempre fui cercada, abraçada e apoiada por mulheres e homens maravilhosos da Via Campesina, que compartilhavam essa visão de criar um movimento por igualdade e justiça para transformar verdadeiramente nossas vidas, comunidades, relações de gênero e nossa agricultura, e a partir daí iniciar grandes mudanças necessárias no mundo. Por isso nunca me senti sozinha, abandonada ou incapaz de construir aquele espaço.

Nosso trabalho foi particularmente focado em demonstrar e integrar efetivamente as questões, conhecimentos e liderança das mulheres no movimento. Sabíamos que já havia muita liderança e muita metodologia no movimento camponês ao redor do mundo. Em particular, digo pela minha experiência que nos apoiamos muito e trabalhamos persistentemente com as camponesas da América Latina, que já tinham articulações de mulheres muito fortes, como na Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC). Nós, da Via Campesina, fomos adotando essas experiências amplamente. As metodologias eram trabalhar coletivamente, compartilhar experiências e se fortalecer como mulheres no movimento.

Trabalhamos com nossos companheiros homens, é claro. Mas precisávamos de nossos próprios espaços de articulação, da nossa própria maneira, para definir nossas prioridades. Precisávamos de espaços para aprender juntas e valorizar nossas experiências, conhecimentos e análises das mulheres, onde pudéssemos construir confiança para nos expressarmos e, assim, ter nossas vozes ouvidas. Precisávamos mostrar que essas questões eram fundamentais para alcançar as profundas transformações que todxs queríamos levar adiante. Usamos muito essa metodologia e de forma muito eficaz.

Na assembleia de Bangalore em 2000, nós, mulheres, já havíamos redigido um documento de posição. Nossa visão era que a participação das mulheres estava funcionando, mas queríamos não apenas participação, e sim igualdade nos mecanismos de tomada de decisão na direção da Via Campesina. Para alcançar isso, não íamos sentar e esperar. Precisávamos reconhecer na Via Campesina que isso era estrutural. Precisávamos garantir que as mulheres sempre teriam espaço e que as mulheres ocupariam esse espaço.

Assim, adotamos, naquela assembleia, uma paridade estrutural: cada região teria não apenas uma pessoa coordenadora, mas duas, que fariam parte da CCI. Uma teria que ser homem e a outra mulher. Isso veio do feminismo camponês, profundamente arraigado na minha organização de base. E é assim que trabalhamos: trazemos as comidas que nos deleitamos nas nossas próprias cozinhas para o domínio público, coletivo. Foi uma enorme mudança para a Via Campesina e um grande progresso na forma como trabalhamos, nos organizamos e desenvolvemos a liderança das mulheres. É talvez um caso único dentro dos movimentos sociais do campo em questões de igualdade e paridade de gênero. Continuamos lutando pela diversidade de gênero para garantir espaços não só para mulheres e homens, mas para toda a diversidade de gênero, que deve ser acolhida no movimento.

Tineke D’haese / La Vía Campesina, 2013

Nossa força está em nossa solidariedade e no trabalho coletivo. Isso significa tentar entender umas às outras, nos aprofundar em nossos desafios comuns. Como mulheres, nosso desafio comum é enfrentar a opressão e a violência, que são o patriarcado.

Enfrentamos isso em todos os lugares, mas fazemos melhor se o enfrentarmos em solidariedade e coletivamente. Como mulheres, estamos bem preparadas para ser pacientes e tolerantes, para negociar. Sempre digo, como mãe, que se você souber negociar com uma criança de dois anos, efetivamente saberá negociar. Sabemos como trabalhar em solidariedade e continuamos aprendendo isso sempre. Celebramos a força de fazê-lo.

Como mulheres devemos sempre lembrar que a luta pela igualdade está em todas as esferas de nossas vidas: em nossas casas e famílias, pois as famílias patriarcais são fundadas no patriarcado; em nossas comunidades; e em nossas organizações. Mencionei que na minha organização temos paridade de gênero desde o início, mas ainda assim continuamos conscientes de que inclusão, diversidade e igualdade são um trabalho contínuo. Internacionalmente, continuamos a enfrentar esses desafios.

O patriarcado está profundamente enraizado: está em nossas culturas religiosas, nossas tradições e comunidades. É uma estrutura tão onipresente de ver o mundo e de hierarquizar homens e mulheres, que devemos enfrentá-la continuamente em todos os lugares, a partir de uma multiplicidade de maneiras.

Nossa visão e liderança feminista dentro da Via Campesina tem sido um dos presentes mais maravilhosos e poderosos que demos ao movimento. Acho que devemos comemorar. Mudamos a forma de funcionamento da Via Campesina e de nossos movimentos camponeses, e a mística faz parte disso. Fortalecemos e transformamos as temáticas que a Via Campesina é capaz de enfrentar e combater: violência contra as mulheres, defesa das sementes, defesa da terra, demanda por proteção social… muito do nosso trabalho em todas essas questões é profundamente orientado por nossas perspectivas como mulheres em luta. Nossa força conseguiu incluí-las como questões-chave. Não devemos subestimar o quão vital e importante isso é, não apenas para a Via Campesina, mas para a luta global em torno dessas questões. Em muitos lugares e graças ao nosso trabalho na Via Campesina, conseguimos cultivar e globalizar a esperança.

Leia o chamado #25Nov22 da Via Campesina, com o slogan “Defendemos a Soberania Alimentar e nossos territórios, contra a violência, os despejos e o agronegócio”. As mulheres camponesas reivindicam a soberania alimentar, o direito à terra, o fim da criminalização e de todo tipo de violência no campo e nas cidades. Ao mesmo tempo, denunciam como em tempos de crise alimentar, política e econômica são alarmantes os números da violência contra mulheres, crianças e diversidades. Por isso, “é urgente construir sociedades livres de violência, comunidades de paz com justiça social”.

A Via Campesina está comemorando 30 anos de lutas, esperanças e organização com a tag #LVC30Anos. Além disso, está por iniciar a sua VIII Conferência Internacional e VI Assembleia de Mulheres Rurais, que serão espaços de debate, tomada de decisão e construção coletiva em novembro de 2023 na Nicarágua. Em preparação, ela compartilha a publicação “O caminhar do feminismo camponês e popular na Via Campesina” sua versão de estudo e sua versão gráfica para o trabalho de base.

Nettie Wiebe integra a União Nacional de Agricultores do Canadá e foi a primeira mulher a integrar o Comitê de Coordenação Internacional (CCI) da Via Campesina. Este texto é uma edição de sua intervenção realizada na jornada de formação “Feminismo camponês e popular na Via Campesina” em agosto de 2022.

Traduzido do espanhol por Aline Lopes Murillo

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