Em um país
Vivo em um país do impossível,
onde não caem bombas, mas sofremos com a guerra.
Uma guerra que existe apenas para quem habita esse território.
Que pouca gente realmente vê.
Onde coexistem várias realidades e a verdade é assassinada a cada instante.
Vivo em um país que está tendo a ousadia de pensar em si mesmo,
de desafiar a si mesmo e entender a vida de outra forma.
Vivo em um país de mulheres que tiveram que inventar e reinventar
uma e outra vez suas formas de vida, de resolver as coisas.
Vivo na Venezuela, uma ameaça incomum e extraordinária
Não penso que já temos todos os problemas resolvidos em nossa revolução, tampouco decidi ignorar nossas contradições e desvios. Apenas creio que temos todo o direito de sonhar e de criar nossa história, tomar nossas decisões e cometer nossos erros. Em outras palavras, temos o direito, como todos os povos do mundo, de ser soberanos e livres.
A decisão soberana do povo venezuelano de tentar alternativas à democracia burguesa, outras formas de organizar a economia e as estruturas de governo e sociedade tem sido perseguida pelo império norte-americano desde o início da revolução. Não nos esqueçamos da tentativa de golpe de estado de 2002. Desde 2014, o governo dos Estados Unidos decidiu passar da pressão internacional de baixa ou média intensidade para declarar guerra¹. Guerra é o que define as sanções unilaterais e o bloqueio comercial, financeiro e cada vez mais marítimo e aéreo – uma guerra não convencional, mas sempre uma guerra. A Venezuela é um país sitiado pelo império dos Estados Unidos e de seus aliados: Canadá, a União Europeia, a Suíça e governos latino-americanos como Colômbia e Brasil que, seguramente, traem os sentimentos dos seus povos.
O que significa cuidar em um país sitiado?
Significa explicar a uma criança o que fazer “se”. Se algum dia caírem bombas, se alguma vez invadirem… Também é ter que dizer na hora das refeições que “é o que tem” – ou pior, ter que dizer “não tem”.
O bloqueio, as sanções unilaterais e as medidas coercitivas têm como objetivos nos dobrar pela fome e pela necessidade de dizer ao mundo que não é possível colocar em marcha as alternativas. Equivocam-se com a Venezuela. As e os venezuelanos têm vivido quase seis anos de assédio imperialista, como com o sistema de saúde, que agora enfrenta sérias dificuldades para garantir a saúde de todas e todos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o programa Barrio Adentro [Bairro Adentro], criado na revolução, que até alguns anos fornecia exames, medicamentos e cuidados totalmente gratuitos e sem restrições. As corporações farmacêuticas, que em sua maioria têm sedes nos Estados Unidos e na União Europeia, cumprem as leis norte-americanas de sanções extraterritoriais. Se as corporações farmacêuticas não as cumprirem, o sistema financeiro cumpre.
Sem ir muito longe na memória, em março de 2020, já declarada a pandemia pela Organização Mundial de Saúde, os bancos privados dos Estados Unidos, Europa e Ásia impediram que o governo venezuelano movimentasse sete bilhões de euros destinados à compra de insumos médicos para enfrentar a pandemia. O que isso tem mostrado é que a quarentena não vale para o imperialismo.
Se conseguirmos superar as travas comerciais e financeiras, ainda teremos que enfrentar os bloqueios em portos, aeroportos e empresas navais. Nossa mais recente experiência de bloqueio marítimo é a dos navios iranianos de combustível e produtos químicos necessários para o refinamento de petróleo. Eles se viram obrigados a viajar por uma rota maior e mais perigosa para contornar o bloqueio, e ainda fizeram toda a travessia sob ameaça militar. O primeiro desses navios chegou ao porto venezuelano em setembro.
O que significa para a Venezuela que não chegue essa gasolina e os aditivos químicos para a refinação? A maioria do transporte de pessoas, alimentos e outros produtos é por via terrestre. Isso significa que os camponeses não podem levar suas safras para as cidades, causando prejuízos para as e os camponeses e também desabastecimento. Podemos passar horas enumerando como o bloqueio e as sanções afetam a saúde, a educação, a produção e distribuição de alimentos, a compra em mercados internacionais, assim como afeta a indústria e a capacidade de produzir serviços como o de energia e o de distribuição de água, por impedir a compra de peças ou materiais para mantê-los.
Neste panorama, as mulheres são as mais demandadas, tanto na esfera doméstica como na comunitária. Somos as encarregadas, por um “mandato social”, dos cuidados e trabalhos indispensáveis para o bem-estar das famílias. Essa responsabilidade se projeta na sustentabilidade da vida nas comunidades. Desde o princípio da revolução, as mulheres são chamadas a se incorporar a estruturas como as associações de monitoramento da água [Mesas Técnicas de Água], comitês de saúde, conselhos comunitários, comitês de abastecimento e produção.
As mulheres organizam alternativas
Estamos convencidas de que, na luta contra o imperialismo, as mulheres são indispensáveis, não apenas na resistência aos ataques, mas também na concretização de alternativas que garantem a nossa independência e liberdade. Assim demonstramos: contra o bloqueio das corporações da saúde, reunimos nossos conhecimentos sobre ervas medicinais e os cultivamos nas comunidades. Contra o desabastecimento induzido pelas sanções, reunimos os comitês de abastecimento e fortalecemos alianças entre o campo e a cidade para uma distribuição direta de alimentos. Contra o desabastecimento da farinha de milho, recorremos às nossas avós e fizemos nossas arepas novamente, sem a chantagem do empresariado privado.
Às vezes me perguntam como, em vinte anos de revolução, não conseguimos solucionar nossos problemas de dependência do exterior. A verdade é que, para reverter o emaranhado de dependências que o sistema capitalista gerou durante cinco séculos, vinte anos é pouco tempo. O capitalismo e seus poderes transnacionais têm imposto vínculos de dependência aos povos de todo o mundo. Estes métodos não são novos. Temos sofrido na América Latina de forma declarada, especialmente os povos nicaraguense, cubano e venezuelano. Todos os povos do mundo que se atrevem a pensar diferente ou experimentar modelos diferentes vivem sob constante ameaça. O que o imperialismo não perdoa é o “mau exemplo” que damos. Nosso “mau exemplo” é que esse território (que os gringos tinham decidido que fosse seu quintal) se levantou.
Apesar da guerra econômica, da violência política financiada pelo exterior, das tentativas de golpes de estado, de sabotagens ao sistema elétrico e da incerteza causada pela escassez de alimentos, medicamentos e gasolina, as pessoas na Venezuela continuam a frequentar escolas, plantam mais do que nunca, pensam em cidades que produzem seus alimentos, pensam em comunas, formas de autogoverno e modos de produzir, distribuir e consumir para a vida.
Lutamos pelo direito das mulheres de decidir sobre seus corpos, despatriarcalizar a sociedade, lutar contra o racismo e o colonialismo, que é um legado corrupto de séculos de subjugação imperialista. Este povo de negras e negros rebeldes, índias e índios descalços, mestiças e mestiços, mostra a cada dia que somos capazes de resolver nossas contradições e erros, e que somos um excelente “mau exemplo”.
¹ Em 2014, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a lei 113/278, que legitimou sua política coercitiva em relação à Venezuela e influenciou medidas coercitivas de outros países.
Este texto é uma edição da fala realizada pela companheira Alejandra Laprea, da Marcha Mundial das Mulheres da Venezuela, no seminário virtual Luchas feministas antiimperialistas contra la militarización, la guerra y las sanciones realizado durante a Semana Internacional de Luta Anti-imperialista, que aconteceu entre os dias 05 e 10 de outubro.