Feminismo sul-africano na luta contra a pobreza e a subordinação

10/08/2021 |

Por Wilhelmina Trout

Wilhelmina Trout aponta desafios históricos da luta das mulheres sul-africanas por participação política para desmantelar o capitalismo patriarcal.

Amandla!

Amandla significa “poder”. Na África do Sul, normalmente respondemos com “poder aos trabalhadores”, mas, na Marcha Mundial das Mulheres, nossa resposta sempre é “poder às mulheres!” Fico um pouco impressionada com a importância dada à África do Sul, porque nossas lutas e nossos desafios parecem minúsculos diante do que acontece no resto do mundo e, principalmente, em outras regiões do continente. Foi pedido que eu falasse sobre a situação do movimento de mulheres na África do Sul, no marco do Dia da Mulher Africana, para celebrar a conferência da Organização Pan-africana das Mulheres [Pan-African Women’s Organization – PAWO], realizada em 1962 na Tanzânia.

Para nós, da Marcha Mundial das Mulheres, acredito que não podemos nos distrair daquilo que é a nossa luta, os nossos objetivos e a nossa visão. O que me atraiu a participar da Marcha Mundial das Mulheres foi o foco na raiz do problema da exploração e da opressão, na sensibilização para o fato de que lutamos contra um sistema: o capitalismo, sistema econômico que busca aumentar a desigualdade entre ricos e pobres, pois se baseia em uma lógica que prioriza o lucro em detrimento das necessidades das pessoas. Além disso, é um sistema patriarcal que marginaliza as mulheres e, portanto, a união e a organização das mulheres entre si torna-se um imperativo para combater essa opressão.

Até 1994, a África do Sul foi governada por um sistema opressivo chamado apartheid, que não reconhecia as pessoas negras como seres humanos e segregava a população com base na cor da pele. Enquanto lutávamos contra esse sistema – mulheres e homens juntos –, a luta pelos direitos das mulheres não se colocou como prioridade. Tínhamos um inimigo em comum, que era o sistema capitalista do apartheid.

A nova era de democratização não trouxe transformações para a maioria das mulheres e pessoas negras na África do Sul, pois apenas o apartheid entrou em colapso em 1994, não o sistema capitalista. A luta contra o capitalismo continuou, assim como outra batalha, contra outro tipo de opressão – o patriarcado –, pois a transferência de poder se deu entre homens.

Na África do Sul, nosso espaço político se baseia em uma política “partidária”. Em 1994, o Congresso Nacional Africano [African National Congress – ANC] assumiu o governo e continua no poder até hoje. O ANC tem sua própria Liga de Mulheres [African National Congress Women’s League – ANCWL], assim como a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] tinha o Fórum Mulher. Mas, ao contrário do Fórum Mulher, que se tornou independente, a ANCWL continua sendo uma ala forte do partido que está no governo.

Quando falamos de feminismo e lutas das mulheres na África do Sul, as pessoas imediatamente se voltam à ANCWL. A liga continua subordinada ao poder dos homens do partido. Um exemplo disso é ilustrado pelos recentes acontecimentos políticos. Foram levantadas muitas questões e preocupações a respeito de saques e destruição de infraestrutura que aconteceram no país, como vocês têm acompanhado pela televisão ou pelas redes sociais. É evidente que isso está ligado à prisão do ex-presidente Jacob Zuma. Ele foi preso porque se recusou a testemunhar diante de uma comissão criada quando ele estava no governo para investigar diversos casos de corrupção.

Algum tempo atrás, esse mesmo presidente foi denunciado em um caso de estupro. Para a maioria das mulheres, o apoio da ANCWL a Jacob Zuma durante o julgamento foi incompreensível. No contexto sul-africano, construir o movimento de mulheres e competir com um partido político tão forte e popular não é uma batalha fácil. Portanto, é muito importante construir organizações da sociedade civil fortes e tentar organizar a Marcha Mundial das Mulheres na África do Sul.

Organização das mulheres durante a pandemia

Ao longo da história da África do Sul, quando os homens deixavam as áreas rurais em busca de trabalho nas minas e cidades, as mulheres ficavam para cuidar da casa, da família e da lavoura. Para sobreviver, elas se organizavam no que chamamos de “stokvels” ou “clubes de poupança”. Elas se uniam para trocar e compartilhar suas práticas.

A pandemia trouxe a necessidade de recuperar esses conhecimentos indígenas e retomar esses grupos. As mulheres se uniram e formaram grupos em diferentes comunidades para cozinhar e oferecer alimentos a pessoas sem-teto e a quem perdeu o emprego. Todos os dias, milhares e milhares de pessoas estão se alimentando graças a essas cozinhas comunitárias. A África do Sul continua sendo uma das sociedades mais desiguais do mundo, e a pandemia só deixou isso mais evidente.

É interessante que o foco do Dia da Mulher Africana é o empoderamento econômico e a inclusão financeira. Muito dessa ênfase, dada principalmente por movimentos de mulheres do norte, está no empreendedorismo, para estimular as mulheres a montar pequenos negócios e a ganhar dinheiro. “Assim você enriquece e melhora de vida” é o que dizem.

Precisamos ter cautela para não cair na armadilha capitalista, que dá ênfase para ganhar dinheiro. Na Marcha Mundial das Mulheres, devemos manter o foco nas nossas demandas por uma economia feminista, nas nossas demandas por reconhecimento do trabalho reprodutivo invisível, para que ele seja incluído na economia. Esse trabalho, em todas as suas formas, precisa ser reconhecido e valorizado. Trata-se do reconhecimento do papel fundamental que as mulheres desempenham em nossa sociedade, com foco na raiz do problema: lutar contra um sistema que nos oprime e nos mantém em uma espiral de pobreza e desigualdade, um mundo que mantém o poder dos homens sobre nós.

Existem muitas mulheres em cargos de liderança em África, e nós celebramos isso. As mulheres ocupam várias cadeiras no parlamento. Mas não devemos esquecer que essas parlamentares são tão fortes quanto nós, que estamos nos territórios, organizadas na base. Elas são tão fortes quanto as vozes dessas mulheres que não são ouvidas nos territórios. Porque as mulheres no parlamento, nesses cargos poderosos, podem ser co-optadas com facilidade pela dominação masculina e pelos círculos patriarcais.

As vozes da Marcha Mundial das Mulheres, marchando nas ruas, devem fazer barulho e não deixar dúvida: “abaixo o capitalismo”, “transformação do sistema”, “vacina para todas as pessoas”, “as pessoas vêm antes do lucro”. Essas vozes devem ser fortes para encorajar aquelas mulheres – em quem votamos para ocupar as estruturas decisórias – a lutar por uma transformação significativa. Amandla!


Wilhelmina Trout é sindicalista feminista e integrante da Marcha Mundial das Mulheres na África do Sul. Este texto é uma versão editada da fala dela no webinário “Celebrando as Mulheres Panafricanas Hoje”, realizado pela MMM África no dia 31 de julho de 2021.

Edição por Helena Zelic
Traduzido do inglês por Aline Scátola

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