Feminismo em terreno hostil: desafios para proteger as que lutam

03/09/2025 |

Sarah de Roure

O artigo traz dados e reflexões para a segurança de defensoras de direitos ao redor do mundo em uma conjuntura de violências e avanço da extrema direita

PUCP

Há anos, o movimento feminista tem denunciado a aliança entre autoritarismos e interesses capitalistas, expondo os ataques aos direitos das mulheres como estratégia articulada. O aumento da militarização, a expulsão de comunidades de seus territórios, a ausência de regulação sobre o poder corporativo e as crises ambientais colocam em risco não apenas os direitos dos povos e das mulheres, mas também a segurança de quem se organiza para defendê-los.

As mulheres em movimento têm desempenhado um papel fundamental ao resistir à ofensiva brutal contra os corpos, territórios e as democracias. Elas emergem como vozes essenciais em contextos marcados por perseguições sistemáticas e sérias violações do direito internacional. Em muitos lugares, como Bangladesh e Sri Lanka, são elas que lideram movimentos sociais transformadores e reivindicam mudanças profundas em seus países e com isso enfrentam riscos de quem está na linha de frente. Em Bangladesh, a estudante Maliha Namla declarou: “foi por causa das mulheres que esse movimento se tornou uma revolução popular”.

Nesse mesmo contexto, mulheres e homens estudantes foram atacados em seus dormitórios por integrantes da Liga Estudantil [Bangladesh Chatra League], ligada ao partido da ex-primeira-ministra. É importante observar que, em contextos onde as mulheres são alvos prioritários da violência, são exatamente elas que desempenham papel central na resposta às crises enfrentadas por suas comunidades, como ocorre na República Democrática do Congo e no Sudão. As mulheres são vítimas de agressões verbais e físicas, criminalização e até assassinatos.

De Mianmar à Caxemira, da Palestina à Colômbia, são as mulheres que assumem o cuidado de suas comunidades, garantindo o acesso a necessidades básicas e mantendo a luta por justiça, igualdade e paz. Frequentemente, enfrentam grandes riscos por isso.

  1. Um olhar para os dados

Segundo levantamento da organização irlandesa Front Line Defenders, as pessoas que defendem os direitos das mulheres foram o grupo mais ameaçado globalmente em 2024 e o segundo mais ameaçado em 2023, representando 12% das violações documentadas em 2024 e 10% em 2023.

Organizações e indivíduos que atuam na defesa dos direitos das mulheres têm sido alvo de uma variedade de violações: ameaças (21,4%) detenções arbitrárias (19,5%), ações legais (7,6%), interrogatórios (6,5%), ameaças de morte e outras formas de intimidação (5,3%). Em um cenário de retrocessos globais nos direitos das mulheres, elas continuam na linha de frente — e, por isso mesmo, na linha de fogo.

As cinco violações mais documentadas contra todos os grupos de defesa de direitos foram: detenções/criminalizações, ameaças, ações legais, ameaças de morte e vigilância. Embora as proporções de cada uma dessas ameaças não variem de forma expressiva entre mulheres e homens, cada uma delas os afeta de forma particular. Também é notável que formas de vigilância (12,2%) e ataques físicos (6,8%) apareçam entre as cinco violações mais documentadas contra pessoas trans e não binárias. Esse dado é distinto ao de mulheres e homens cis, revelando que a violência ganha contornos particulares dependendo da  sexualidade e identidade de gênero.

Ao olhar para trás, lembramos de Berta Cáceres, Margarida Alves, Marielle Franco — e tantas outras que perdemos no caminho das lutas. Em 2024, segundo o HRD Memorial, foram documentados 43 assassinatos de mulheres em contexto de defesa de direitos. O memorial é uma iniciativa coletiva global de 13 organizações de direitos humanos comprometidas com a proteção de pessoas defensoras de direitos humanos e a documentação de casos de assassinatos.

É igualmente importante falar sobre as lacunas nos dados. Nem os números de assassinatos, nem as violações documentadas são uma fotografia exata da realidade. Documentar essas violências de forma consistente é uma tarefa extremamente difícil em muitos contextos. Muitas organizações ou indivíduos que poderiam liderar esse esforço estão fora de seus países devido a guerras ou enfrentam riscos excessivos ao fazê-lo. Além disso, há limitações graves à liberdade de expressão, com supressão de informações, restrições ao direito de manifestação e à atuação da sociedade civil.

No caso das mulheres, a situação é ainda mais crítica. Muitas vezes, sua atuação na defesa de direitos sequer é reconhecida como trabalho de defensoras, o que invisibiliza os riscos que enfrentam e as violências a que estão submetidas. Com isso, essas violências permanecem nas sombras, sem mecanismos de proteção e segurança. O não reconhecimento das mulheres como sujeitos ativos na luta por direitos está intimamente relacionado com as estruturas patriarcais que dividem as esferas pública e privada. Nessa divisão sexual, as mulheres são historicamente associadas ao âmbito privado dos afetos, aos laços sanguíneos, à sensibilidade, ao cuidado, à submissão, enquanto o mundo público está associado à cidadania, à liberdade, aos direitos, à propriedade e, portanto, aos homens. A família é construída como parte do âmbito privado, e Estado e sociedade civil são construídos como pertencentes ao âmbito público. As mulheres transitam nas esferas pública e privada, mas sua inserção em ambas continua a ser marcada pela lógica de separação e hierarquização. Essa dinâmica se reflete no interior de organizações onde as mulheres assumem tarefas administrativas, ou ao representar suas comunidades à frente de negociações nas quais suas intervenções não são consideradas.

Ao separar o espaço dos direitos e o espaço privado e ao hierarquizar o papel de mulheres e homens, o patriarcado e o racismo com frequência desfiguram a imagem das mulheres como sujeito da defesa de direitos. As mulheres que, ao perderem alguém de sua família, passaram a liderar os movimentos em busca dos desaparecidos no Paquistão ou as mulheres indígenas no México que estão à frente das campanhas pela liberação de seus queridos em situação de cárcere percorrem um longo caminho para que sua atuação seja reconhecida além da posição de esposa, filha ou mãe. Ao ultrapassar fronteiras entre público e privado, elas transformam suas experiências em reivindicações.

A ousadia das mulheres que lutam, não raras vezes, é respondida com violência. Os ataques às mulheres incluem ataques contra elas e seus familiares, campanhas online de difamação, violência sexual e ameaças que colocam em risco sua saúde mental e bem-estar. Em retaliação ao seu papel de liderança no Movimento de Desobediência Civil após o golpe em Mianmar, mulheres foram alvo de práticas discriminatórias, incluindo humilhação pública, verbal e abuso sexual por parte da polícia e das forças armadas.

Além de enfrentarem riscos quando atuam publicamente nas lutas por igualdade e direitos, não raras vezes as mulheres são alvo instrumentalizado para ameaçar seus parentes engajados nas lutas por direitos. Essa dimensão com frequência não é documentada ou mesmo considerada. Em pelo menos 9 casos de assassinatos em 2024, membros das famílias também foram alvo no mesmo ataque e, em outros 36 casos, familiares ou amigos também foram feridos. Em 2023, 21 familiares de defensores de direitos humanos foram assassinados, incluindo crianças no Afeganistão, Colômbia, Honduras, Sudão e Filipinas.

  1. Quando direitos se tornam crimes

Nos últimos anos, temos assistido a um alarmante avanço de legislações que transformam a luta por direitos em um ato passível de punição. Leis que deveriam proteger a dignidade e a liberdade estão sendo instrumentalizadas para restringi-las. Seus impactos sobre os grupos que defendem os direitos das mulheres são diretos e profundos.

Em março de 2023, Uganda aprovou o Ato Anti-Homossexualidade, uma das legislações mais severas do mundo contra pessoas LGBTQIA+. Projetos semelhantes estão em tramitação em países como Quênia e Gana, enquanto Maláui, Mali e Tanzânia já aprovaram legislações que criminalizam relações homoafetivas, assim como miram ativistas e organizações que lutam pela comunidade LGBTQIA+. Ao oferecer apoio legal, psicológico ou simplesmente visibilidade às pessoas perseguidas, essas defensoras passam a ser consideradas cúmplices e, muitas vezes, criminosas. No mesmo sentido, no Líbano, em agosto de 2023, foram apresentadas propostas legislativas que buscavam criminalizar relações homoafetivas, aprofundando o ambiente de repressão. Em novembro de 2023, a Corte Suprema da Rússia classificou o movimento LGBT internacional como uma organização extremista, proibindo sua atuação e criminalizando qualquer forma de apoio. A decisão legaliza uma perseguição já sistemática e insere na lógica do combate ao “terrorismo” pessoas e grupos que apenas defendem o direito à existência e à dignidade. 

No contexto do genocídio cometido por Israel contra Gaza, o parlamento de Israel recentemente discutiu o projeto de lei, conhecido como “Lei do TPI”, que propõe criminalizar qualquer tipo de cooperação com o Tribunal Penal Internacional (TPI). O projeto prevê até cinco anos de prisão para quem compartilhar informações com o TPI sem autorização e prisão perpétua caso os dados sejam classificados como sigilosos. A lei também criminaliza qualquer linguagem que sugira que o governo ou autoridades israelenses cometem crimes definidos pelo Estatuto de Roma. Na prática, organizações de direitos humanos registradas em Israel que investigam e denunciam violações contra a população palestina poderão ser punidas com no mínimo cinco anos de prisão. Essa lei faz parte de um padrão mais amplo de enfraquecimento da sociedade civil que atua pelo fim do genocídio e dos regimes de ocupação e apartheid. A proposta surge em um momento em que Israel tenta contestar a jurisdição dos tribunais internacionais, que emitiram mandados de prisão contra autoridades israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, e que continuam a documentar o crime de genocídio contra o povo palestino. 

Nos últimos 15 anos, o governo de Israel tem promovido campanhas de difamação, intimidações, restrições legais e pressões sobre doadores internacionais para sufocar entidades que expõem abusos e contribuem para o tecido social do povo palestino. Exemplo disso foi a designação, em 2020, de sete organizações palestinas como terroristas, incluindo a UPWC, que faz parte da Marcha Mundial das Mulheres e a UAWC, parte da Via Campesina. A medida autocrática foi seguida por uma série de outras agressões que incluiu prisões e fechamento de seus escritórios.

Essas leis fazem parte de uma tendência global de repressão à sociedade civil, impulsionada por discursos nacionalistas, religiosos ou de segurança. Sob o pretexto de combater o “terrorismo”, proteger a “família” ou preservar a “soberania”, Estados estão aprovando normas que restringem a atuação de organizações independentes e silenciam vozes dissidentes. Esses conceitos são utilizados de acordo com a conveniência de governos, empresas ou grupos fundamentalistas, que não estão dispostos a regular lucros, tolerar dissensos, ampliar direitos de mulheres, migrantes e da comunidade LGBTQIA+, ou mesmo garantir o direito à autodeterminação.

A própria Comissão Europeia, em 2023, propôs uma Diretiva sobre Transparência na Representação de Interesses em Nome de Países Terceiros. Embora apresentada como um instrumento para evitar interferência estrangeira, organizações da sociedade civil alertam que essa medida pode ser utilizada por Estados-membros da União Europeia para estigmatizar defensores de direitos humanos, limitar o espaço cívico e justificar legislações repressivas em outros contextos, oferecendo uma fachada legal para regimes autoritários imitarem o modelo europeu sob o pretexto da “transparência”.

Essas mudanças legais criam um cenário em que mulheres envolvidas na luta por direitos e movimentos de solidariedade passam a ser tratadas como ameaças à ordem. Suas ações, como organizar uma manifestação, oferecer apoio jurídico ou mesmo falar publicamente sobre violações, podem ser enquadradas como crimes. O resultado é o silenciamento de vozes dissidentes, a fragmentação de movimentos e o aumento do risco pessoal para aquelas que continuam resistindo.

Estratégias a partir do feminismo 

A reconhecida importância dos movimentos sociais na criação de novos marcos interpretativos — “marcos de injustiça” — disputam com outras forças sociais a definição dominante da realidade. No interior das redes feministas, esses marcos vão sendo lentamente elaborados, oferecendo novas formas de compreender antigas realidades, como a violência patriarcal. As formulações feministas de autoras como Ana de Miguel apontam que a raiz da violência contra as mulheres está na necessidade de controle, apropriação e exploração do corpo, vida e sexualidade das mulheres, que é própria do patriarcado e do capitalismo. O patriarcado se apoia na divisão das mulheres em duas categorias: “santas” e “putas”. Como parte desse sistema, a violência é a punição para aquelas que não se enquadram no papel da “santa”: boa mãe e esposa.  A violência, a ameaça ou o medo da violência são utilizados para excluir as mulheres do espaço público e manter uma estrutura injusta.

Além de acionar um sistema de violências contra as mulheres à frente das lutas por direitos, o patriarcado também coloca barreiras importantes para que as mulheres acessem as poucas opções de proteção para reagir à esses riscos. Propomos, assim, uma questão para reflexão futura: como nossas estratégias feministas frente à violência contribuem para uma ação coletiva mais segura? 

Há discussões interessantes, como a trazida por Jules Falquet em Pax neoliberalia, que apontam paralelos entre a tortura por motivação política e a violência doméstica. A longa trajetória do feminismo, pensando e desenvolvendo estratégias para responder à violência de forma mais ampla, segue sendo um aporte chave nas discussões e estratégias de proteção daqueles que defendem direitos. Grupos de mulheres se fortalecem através de encontros de diálogo, debates, manifestações, trabalhos corporais de autodefesa, aprendendo e reaprendendo a resistir, a construir e reconstruir nossas vidas sem violência. Propomos uma segunda questão para reflexão futura: como o feminismo participa de uma rede de cuidado e segurança para os diversos movimentos e coletivos?

Pensar sobre a violência contra as mulheres que estão à frente das lutas em um contexto global de retrocessos e violência. Aprofundar estratégias feministas coletivas de segurança e proteção. Nos vermos como parte de um movimento transnacional de solidariedade. Essas são partes de nossas apostas coletivas por um feminismo sustentável.

Sarah de Roure é integrante da equipe da Front Line Defenders
Edição por Helena Zelic e Tica Moreno

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