Equador: um país ferido que volta a eclodir

30/06/2022 |

Por Magdalena León

Em luta contra o neoliberalismo, a resistência indígena, camponesa e popular toma as ruas e enfrenta repressão.

O termo “estallido” (eclosão, em português), utilizado para caracterizar a jornada histórica de protestos sociais contra o neoliberalismo em outubro de 2019, volta a estar presente neste mês de junho. O Equador completa mais de duas semanas de mobilização popular, sustentada apesar de uma repressão que até agora deixou duas pessoas mortas e dezenas de feridos, tanto na capital, Quito, como em outras partes do país. Nesta conjuntura, se combinam condições similares às do estallido anterior e algumas outras novas, mas o que predomina é a incerteza em meio a uma atmosfera de turbulência política e profunda crise social.

A convocatória de uma paralisação nacional realizada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e a mobilização de seus integrantes tanto nos territórios em que atuam quanto na capital está no centro dos protestos que incluem muitos outros setores: estudantes, trabalhadoras e trabalhadores da saúde e do transporte, camponeses, mulheres, pequenos comerciantes, habitantes de zonas rurais e urbanas, entre tantos outros. Um povo encurralado pela reimplantação do neoliberalismo, que sente que lhe estão arrancando as chances de ter uma pátria, essa referência de pertencimento a um lugar e a um coletivo que constrói condições compartilhadas de existência e projetos de vida. A institucionalidade pública, desfigurada pela ofensiva “anticorreísta”[1] desde 2017, aparece agora como o adversário de um povo exposto ao desamparo econômico e social, à repressão, à falta de segurança e à violência.

Já faz um ano que o banqueiro Guillermo Lasso assumiu a presidência e cinco anos que seu plano de governo foi implementado, já que em 2017 o inominável Lenín Moreno, eleito graças ao apoio popular à Revolução Cidadã, adotou o plano de governo do partido opositor (o movimento CREO, que reúne a centro-direita e a direita do país), dando lugar à retomada do poder pela direita e a subsequente virada neoliberal e antiestatal. Como resultado, dizer que o país atualmente está sangrando não é mais uma metáfora. No nível mais imediato, estão os mortos e feridos dos últimos dias pelas mãos das “forças da ordem”, que são eficazes na repressão, mas incapazes de controlar as prisões onde ocorreram os horripilantes massacres no último ano, ou de garantir segurança nas ruas onde a população sofre uma escalada de criminalidade sem precedentes, com a presença de quadrilhas armadas e sicários.

Essa conotação de ferida também se deve às dificuldades enfrentadas pela maioria das famílias no trabalho e na vida, em um cenário agravado pela pandemia e pelas políticas pro-cíclicas e de austeridade fiscal. Em 2020, o PIB caiu 7,8%, sem previsão de uma recuperação aos níveis anteriores, o desemprego e o subemprego têm aumentado junto com uma tendência inflacionária nunca experimentada em tempos de dolarização. A proteção social foi reduzida ao mínimo, com serviços públicos de saúde e educação sujeitos a cortes e precarização.

Mas não é só isso. A atual saga neoliberal é uma repetição de ações que levaram a uma crise extrema na virada do século, marcada pelo colapso do sistema bancário, dolarização e pela migração em massa da população. Os atores e agendas daquela época retornam agora como mortos vivos. Se o próprio Lasso é um banqueiro que se acha o bambambã neste contexto de fraudes especulativas, sua equipe de governo resgatou figuras daquele período, em muitos aspectos defasadas da atual realidade e urgências do país.

A distância entre as necessidades do país e as orientações do governo é palpável e perceptível pela população, pois os fatos não poderiam dizer mais. Por exemplo, no mesmo dia de maio em que ocorreu um novo massacre de 40 pessoas encarceradas (elevando o total para 356 só neste ano), veio à tona que o banco do qual Lasso é dono teve um aumento de 123% no último ano. Naquele momento, ele se encontrava em Israel, sendo o primeiro presidente equatoriano a visitar esse Estado, apresentando uma preocupante agenda de segurança, negócios e outros assuntos.

Na fase do conflito capital-vida do qual voltamos a fazer parte, a necropolítica está à espreita. Na primeira fase da pandemia, enquanto uma parcela da dívida externa era paga antecipadamente, Guayaquil estava cheia de cadáveres nas ruas. Em seu relatório anual de gestão, Lasso enfatizou que nós, 18 milhões de equatorianas e equatorianos, devemos a ele nossas vidas por ter implementado o plano de vacinação para a covid-19, ao mesmo tempo em que mostrava como um grande resultado os avanços na privatização de bens e serviços públicos. Nos dias atuais, enquanto a paralisação nacional está em curso, foi emitido um decreto para ampliar as demissões e reduzir os salários no setor público.

Os dez pontos apresentados pela CONAIE como demandas ao governo abarcam os aspectos mais críticos e sensíveis para a população: o preço dos combustíveis, moratória e renegociação das dívidas pessoais e familiares, preços justos para a produção camponesa, promoção do emprego e dos direitos trabalhistas, restrições à mineração e à extração de petróleo, respeito aos direitos coletivos, não privatização de setores estratégicos e do patrimônio público, controle dos preços básicos e da especulação, orçamento para saúde e educação e políticas efetivas de segurança e proteção.

Se no plano social a concordância com essas exigências supera quaisquer diferenças, no plano político prevalecem as contradições. Um setor do partido Pachakutik[2] mantém a aliança com o governo, como também aconteceu no período anterior. A repressão e perseguição interferem nos diálogos e negociações, e a experiência de 2019, quando a luta social de doze dias foi diluída na mesa de negociações e a agenda do governo da época acabou sendo imposta, volta a estar presente. Também está em pauta a ativação de mecanismos constitucionais para uma dissolução do governo[3], com o risco de sermos tachados de “golpistas” e com a perseguição judicial correspondente, como já ocorreu em 2019. Assim, é necessária uma solução política para a crise, mas seus contornos não estão claros no momento.

Destaque: Como é possível que um país reconhecido pelo mundo – e em alguns casos conhecido – por suas transformações e propostas inéditas de mudança, guiadas pela noção de bem viver, se encontre atualmente aprisionado em uma espiral de empobrecimento, de desinstitucionalização e violência?

Essa é uma questão que deve ser respondida coletivamente, como parte da busca por saídas que recuperem o caminho trilhado por mudanças profundas. É também um desafio para as forças sociais e políticas que devem se entender, superando desacordos induzidos e atendendo aos sentimentos de suas bases, como o fazem a CONAIE e a Revolução Cidadã.


[1] Em referência a Rafael Correa, que presidiu o Equador entre 2007 e 2017.

[2] Partido criado pelo movimento indígena no anos 90 e que possui tendências diversas, que vão desde a esquerda à centro-direita.

[3] A proposta de abertura do processo de impeachment foi rejeitada na Assembleia Nacional do Equador na terça-feira, 28 de junho.


Texto publicado originalmente em Ruta Kritica.


Magdalena León é integrante da REMTE (Rede Latino-americana de Mulheres Transformando a Economia) no Equador.

Traduzido do espanhol por Luiza Mançano.

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