El Salvador contra o bitcoin, a pobreza de muitos e a economia para poucos

12/11/2021 |

Por Ana Isabel López

As propostas antidemocráticas e neoliberais do presidente Nayib Bukele são rechaçadas em grandes marchas populares. Leia o relato da militante Ana Isabel López

Reuters, 2021

El Salvador é o menor país da América Central e, ao mesmo tempo, um dos países com maior densidade populacional da América Latina. Atualmente, o governo é dirigido pelo presidente Nayib Bukele, do partido Nuevas Ideas, que alcançou enorme popularidade a partir de suas supostas críticas à corrupção dos partidos Aliança Republicana Nacionalista (ARENA, de direita) e Frente Farabundo Martí pela Libertação Nacional” (FMLN, de esquerda). Sua campanha de ódio multimilionária foi acompanhada por uma perseguição política contra ex-funcionários do governo da FMLN. Iniciou uma perseguição contra as ONGs que receberam fundos públicos para o seu funcionamento e que foram acusadas de corrupção e de serem negócios ‘de fachada’, sem evidências verídicas.

Nas eleições legislativas de fevereiro de 2021, Nuevas Ideas ganhou a maioria qualificada de deputados (56 de 84). Atualmente, o país vive momentos de tensão social e política. Em 1.º de maio, dia da posse do novo parlamento, os cinco magistrados da Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça e o Procurador da República foram destituídos de forma abrupta e ilegal, e substituídos por novos funcionários leais ao atual governo.

Uma centralização de poder pelo Executivo se configura, colocando em risco a incipiente democracia construída no país após a assinatura dos acordos de paz em 1992.

As múltiplas crises

Há várias décadas, El Salvador passa por várias crises que se entrelaçam e se potencializam. A crise social, ambiental e econômica se soma à crise de saúde provocada pela covid-19, gerando um profundo impacto nas economias locais. Grandes setores da população perderam seus meios de subsistência, e a precariedade e a pobreza extrema aumentaram. Os hospitais, sem capacidade para atender às pessoas com covid-19, têm tido dificuldades para cuidar de pessoas que padecem de outras doenças.

As aulas online sobrecarregaram as mães devido ao fato de que elas assumiam um papel duplo, incluindo o papel de professoras. De acordo com o Instituto Salvadorenho da Previdência Social [Instituto Salvadoreño del Seguro Social], de janeiro a junho de 2020 houve uma redução de 69.118 empregos formais. Antes da pandemia, uma em cada três mulheres tinha um emprego, mas com o fechamento de creches, escolas e atividades econômicas, o número é ainda menor. A Câmara de Comércio e Indústria de El Salvador estima que 50% dos empregos formais foram afetados pelo encerramento de atividades, impactando com mais força os grupos de baixa renda, para os quais se estima um retrocesso de duas décadas nos esforços de combate à pobreza. A Fundação Salvadorenha de Desenvolvimento Econômico e Social (FUSADES) estima que o endividamento do país ultrapassará 92,6% neste ano.

O crescimento da violência

Diante de toda essa realidade, as mulheres tiveram que suportar a violência de três formas: a da covid-19, os estupros e a violência sexista e a violência institucional exercida pelo governo do presidente Nayib Bukele. São registrados aumentos de homicídios e, principalmente, de feminicídios em todas as partes do país. Enquanto isso, o governo se omite e publica o “sucesso” do plano de controle territorial.

A quarentena domiciliar fez com que meninas, jovens e mulheres convivessem com seus agressores 24 horas por dia. O Ministério da Saúde indica que no primeiro trimestre de 2021 foram registradas 138 gestações em meninas entre 10 e 14 anos e 3.555 em adolescentes entre 15 e 19 anos. De janeiro a abril de 2021, a Mesa Técnica Interinstitucional de Conciliação de Números de Vítimas de Homicídios e Femicídios  registrou 47 feminicídios, e a Procuradoria Geral da República informa 96 mulheres desaparecidas apenas nos dois primeiros meses de 2021. Um dos casos de desaparecimento mais conhecidos foi o de Flor García, encontrada em um depósito de escombros em Cojutepeque. A família insistiu durante meses para que as autoridades descobrissem o paradeiro de Flor, e fez uma campanha nos meios de comunicação que foi ouvida nacional e internacionalmente.

Outro fato que causou indignação e medo na população foi a descoberta de vários cemitérios clandestinos. O mais conhecido é o localizado no município de Chalchuapa, devido ao grande número de ossadas encontradas. O Ministério Público e a polícia declararam que os corpos encontrados correspondem em sua maioria a mulheres, o que aumenta o número de feminicídios no país. Um ex-policial identificado com o nome de Hugo Ernesto Osorio Chávez foi acusado de ter cometido os crimes.

El Salvador tem uma alta taxa de homicídios: até março de 2021, a taxa projetada era de 19,7 a cada 100.000 habitantes. De acordo com a narrativa do governo, os homicídios no país foram reduzidos em 65%, em decorrência da implementação do plano de controle territorial. No entanto, as extorsões e outras formas de violência permanecem intactas e parece que as gangues continuam controlando vários territórios, em um possível pacto com o governo. Consideramos que outras formas de crime estão sendo executadas, principalmente o desaparecimento de pessoas, em sua maioria jovens que, com o tempo, aparecem como assassinadas.

O povo salvadorenho se levanta por uma economia para a vida

Com maioria qualificada, o presidente tem apresentado diversos projetos de lei à Assembleia Legislativa, como a proposta da “lei do bitcoin”, que foi aprovada e entrou em vigor em 7 de setembro deste ano.

El Salvador se tornou o primeiro país a adotar a criptomoeda no mundo. Foi criado um aplicativo denominado Chivo Wallet que gera desconfiança e insegurança, pois viola as informações privadas dos usuários. A utilização desse aplicativo requer serviço de internet e a grande maioria, principalmente nas zonas rurais, não tem acesso. Em poucas palavras, essa moeda virtual não é para a maioria dos salvadorenhos. O bitcoin pode fomentar ataques especulativos que levem a um caos no sistema monetário salvadorenho, afetando, possivelmente, o valor das poupanças, das pensões ou dos salários. A questão gerou descontentamento na população.

Bukele conseguiu capitalizar o descontentamento da classe política tradicional, mas suas ações antidemocráticas são agora o catalisador para uma população que esteve disposta a ir às ruas para protestar.

Ao vice-presidente Félix Ulloa foi delegada a tarefa de desenvolver a nova proposta de reforma da Constituição da República. Com isso, buscam a separação da Sala Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça, bem como reformar as eleições de segundo grau e revisar o funcionamento do sistema eleitoral e os prazos dos mandatos. Para aprovar uma reforma constitucional, é preciso que uma legislatura a aprove e outra legislatura a ratifique. As mudanças na Constituição são ratificadas por meio de uma consulta cidadã.

Por isso, a marcha do dia 15 de setembro foi a maior dos últimos 30 anos, promovida por diversas organizações e pessoas de todos os níveis sociais.

Há um ano, o Bloco de Resistência e Rebelião Popular (BRRP) não existia. Ele nasceu em resposta às ações repressivas do atual governo de Nayib Bukele. Em meses conseguiu unificar, sob uma única causa, as bandeiras de 36 organizações, entre as quais se destacam sindicatos, associações de juízes, estudantis, feministas e do setor agropecuário.

Na marcha de 15 de setembro, juntaram-se os “juízes da Constituição”, dezenas de juízes da República indignados com o Decreto 144, que exonerou, com uma canetada, todos os juízes com mais de 60 anos ou com mais de 30 anos de experiência, o que significa um terço dos juízes do país.

Essa foi a primeira marcha de sucesso dessa organização, à qual aderiram mais de 20 mil pessoas. No mesmo dia, à tarde, o ato comandado por Nayib Bukele em comemoração ao Bicentenário da Independência foi transmitido em rede nacional, uma mensagem pré-gravada, uma performance estilizada e com rigor militar. Em seu discurso apressado, Nayib dedicou algumas palavras à marcha: chamou-a de política e reduziu-a como vandalismo.

Em 17 de outubro, foi realizado o segundo protesto contra Bukele. O governo tentou impedir a marcha popular por meio da Polícia Nacional Civil (PNC), que arbitrariamente detinha os ônibus que vinham do interior do país para se juntar ao protesto. Pelo menos 21 barreiras de fiscalização interceptaram os ônibus que traziam manifestantes de áreas como Chalatenango, Suchitoto, Sonsonate, Izalco, Ilopango e mesmo de dentro de San Salvador. As barreiras cercaram a capital e, segundo os depoimentos das pessoas afetadas, o objetivo era retardar a chegada dos manifestantes: “registraram todos nós. Nos fizeram descer. Nos colocaram com as mãos na cabeça. Nós, praticamente, vemos que voltamos aos anos 80, quando os órgãos repressivos, a Guarda Nacional e a Polícia do Ministério da Fazenda[1] faziam esse tipo de represália contra a população… O presidente diz que não existe ditadura, mas existe repressão”.

Apesar dessas tentativas malsucedidas de impedir a marcha, ela se tornou a segunda grande marcha contra o governo de Bukele.

Somam-se a ela as demandas dos deficientes de guerra, cuja situação se tornou mais instável, já que o atraso de mais de um ano na nomeação da nova presidência do Fundo de Proteção aos Deficientes e Incapacitados (FOPROLYD) gerou atrasos nos serviços e benefícios. A maioria das pessoas com deficiência de guerra são pessoas idosas que vivem da agricultura ou da economia informal e que por vários meses não obtiveram assistência médica adequada ou renda além da pequena pensão que o Estado lhes concedeu em governos anteriores.

Nesse tempo com tantos desaparecimentos e com a pandemia, as famílias e comunidades vem passando por um luto, uma dor coletiva. A situação de repressão prevalece e, por isso há muito medo de se manifestar.  Desunidas ou sozinhas, somos muito frágeis. Precisamos nos unir, todas e todos, fortalecer alianças entre movimentos ambientalistas, feministas, de agricultoras e agricultores.


[1] A Guarda Nacional e a Polícia do Ministério da Fazenda foram dissolvidas após os acordos de paz. Ao lado da Polícia Nacional, eram os principais órgãos militarizados de segurança pública de El Salvador. Nos anos 1980, foram utilizados durante a guerra para combater o “inimigo ideológico” do governo.

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Ana Isabel López mora em San Salvador, é militante do Movimento Salvadorenho de Mulheres que faz parte da Marcha Mundial das Mulheres em El Salvador.

Edição de Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Aline Lopes Murillo

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