Anticapitalismo para desmantelar o poder corporativo, a precarização do trabalho e o mercado digital

31/01/2022 |

Por Avantika Tewari

Avantika Tewari, da IT for Change, fala sobre o que é preciso para desmantelar as novas manifestações do capitalismo pelo mundo

Como seria um sistema anticapitalista? É preciso que vá além da caça às corporações e ao poder corporativo, coisas que, evidentemente, precisamos desmantelar. O que precisamos é criar estruturas alternativas para a ação coletiva e para os comuns sociais, sobretudo em um momento em que sabemos estar lidando com algo novo. Trata-se do capitalismo em crise, mas o capitalismo em seu desfecho, em uma revolução no sentido de se tornar capitalismo de dados. Hoje, temos um monopólio das redes dentro do setor de big data [tecnologia de processamento de dados em massa] e também de algoritmos de mineração, que levou à mercantilização da produção social do conhecimento, das artes, das comunicações e da informação. Está tudo em forma de capital, que criou uma dívida digital global que representa um impacto peculiar no “sul global”.

O Fórum Econômico Mundial [FEM] definiu uma agenda para a Grande Reinicialização [Great Reset], mas precisamos exatamente do oposto disso. Precisamos de uma reinicialização socialista.

As estratégias do norte

Estamos vendo créditos de carbono e outros dispositivos sendo explorados para penetrar o fluxo de capital no sul global. Estão surgindo cidades Bitcoin em El Salvador e outras regiões. Isso deve nos indicar os efeitos materiais de um sistema global de comercialização de dados extremamente especulativo. Neste momento, o próprio processo de produção está gerando o valor do trabalho em uma falsa relação com o capital. Nos processos anteriores de produção e reprodução em que as mulheres estavam envolvidas, tratava-se de realizar um intenso trabalho de rotina para grandes empresas, como corporações transnacionais. Isso já provocou e pode provocar migração forçada e despossessão em larga escala.

Muitas grandes empresas capitalistas, como a Levi’s, usava o trabalho de baixa qualificação em fábricas em Bangladesh e Índia. Agora, esses trabalhos estão sendo automatizados e terceirizados. Assim, por um lado, essa é a plataformização e a digitalização do trabalho que leva à perda interna de trabalho. Uma coisa é a perda de trabalho que já está nas camadas mais baixas e precarizadas, o que não se limita à digitalização do trabalho, mas também à reconstituição estrutural das relações sociais, coordenadas ideológicas e administrativas que esse regime digital do capital impõe.

Para além da perda de empregos seguros, quais são os novos trabalhos que estão sendo criados? David Graeber falou sobre os “trabalhos de merda” [“bullshit jobs”] que foram criados pelo capital. Muitos dos empregos que estão sendo criados, que até são motivo de orgulho da FEM, não são seguros. Ao contrário, eles dependem da sistemática desqualificação do trabalho que as populações acumularam, retirando investimentos nacionais e internacionais de bens e serviços públicos: educação, saúde e nutrição.

Problemas do novo trabalho

Shubhroja Sen, IT For Change

Esses novos empregos do mercado digital não oferecem proteção social nenhuma, nenhum direito às trabalhadoras e aos trabalhadores. Neste momento, também estamos disputando com uma estrutura em que trabalhadoras e trabalhadores são apresentados como consumidoras/es e prossumidoras/es. São vistos como parte do “sonho” capitalista, que justifica com argumentos falsos ao vender a lógica de que qualquer pessoa pode se tornar capitalista em um sistema que só sobrevive com base na exploração.

A trabalhadora e o trabalhador agora são vistos como participantes do processo produtivo e, portanto, o fardo de “corrigir” a podridão sistêmica acaba sendo dividida igualmente com eles, como “partes interessadas” iguais. Espera-se da trabalhadora e do trabalhador tratados como consumidores que paguem por saúde, educação, dados e informações privatizadas (serviços que deveriam ser de acesso gratuito e universal) por meio de estruturas de endividamento por aluguel: assinaturas, contratos temporários, remuneração baseada em comissão (em vez de salários) e títulos em criptomoedas, para ficar em apenas alguns exemplos. Há um aumento generalizado da retirada de direitos trabalhistas. Ao lado disso, vemos um certo tipo de entrincheiramento do subdesenvolvimento, pelo menos no sul global. Além disso, há a mercantilização da saúde, da educação, dos alimentos e da água.

Nessa conjuntura em que todo o campo das relações sociais e das trocas sociais estão sendo subordinadas ao capital, com a precarização e a privatização, como vamos avaliar essa realidade e fortalecer nossa luta contra ela?

Pensar sobre o futuro do trabalho como uma crise no trabalho pode nos ajudar. Precisamos ter atenção a um certo tipo de subversão da linguagem que está sendo empregada, sobretudo por entusiastas de blockchain[1], Web3[2] e criptomoedas[3]. Essas pessoas estão mobilizando uma linguagem de liberdade e emancipação para promover uma retórica libertária antissistêmica que não é nem anticapitalista nem emancipatória.

Questionemos a lógica financeira existente. Sem isso, não conseguiremos de fato libertar as mulheres, trabalhadoras e trabalhadores e nenhuma população impactada negativamente pelas estruturas exploradoras do capital.

Na IT For Change, nós trabalhamos nesse sucateamento do setor público na Índia com a política New Umbrella Entity, criada para promover infraestruturas financeiras paralelas administradas pelo setor privado. Temos uma petição contra isso justamente porque se forem distribuídas licenças para grandes varejistas e entidades de comércio eletrônico como Amazon, Flipkart-Walmart e Jio-Reliance – sendo elas próprias algumas das maiores usuárias de sistemas de pagamento –, a integração vertical do ecossistema digital de pagamentos com o ecossistema comercial delas levará à criação de monopólios perigosíssimos. Isso também confronta o mito persistente de que a descentralização da infraestrutura e abertura ao livre mercado levaria à “igualdade”, enquanto, na realidade, isso só cria uma concorrência interna dentro da classe dominante, o que está muito longe de representar uma “igualdade”.

Trabalhadoras

As mulheres têm enfrentado muito assédio na internet. Mais recentemente, vimos que as mulheres muçulmanas foram atacadas por um site da GitHub criado para leiloá-las. Mesmo com a legislação contra crimes cibernéticos e outros delitos, a escala das corporações multinacionais é tão imensa que não é possível identificá-las e conseguir levá-las a comparecer em audiências. Tem o Pegasus, vírus agressivo que surgiu em Israel. De quem é a competência para administrar essas coisas? Portanto, para que a soberania digital seja alcançada, é imperativo haver uma governança global de dados sem a qual as legislações nacionais continuarão a ser desviadas ou cooptadas pelas gigantes da tecnologia.

Nos últimos tempos, vimos uma plataforma de trabalhadoras e trabalhadores de uma empresa chamada Urban Company, que basicamente oferece serviços estéticos domiciliares sob demanda. O enviesamento dos algoritmos e da violência, nós já conhecemos. Sabemos que existem impactos reais nas projeções de IA [inteligência artificial], análise preditiva, aprendizado de máquina e agregação de dados que determinam o acesso e o comportamento social das pessoas. Trabalhadoras e trabalhadores são rastreados, monitorados e vigiados.

Na ausência de um salário mínimo, as e os trabalhadores recebem “incentivos” que imputam perdas retroativamente ao comportamento de consumidores e trabalhadores, justificando esses regimes de exploração e exaustão nas horas extras de trabalho como se fosse uma “escolha”. Além disso, se é feita uma avaliação ruim de uma ou um trabalhador, ela ou ele não recebe prioridade no algoritmo e acaba perdendo clientes ou fica suscetível a maus tratos de clientes porque a análise de seus dados dá resultados baixos. A classificação se torna ferramenta de disciplina. As trabalhadoras da Urban Company se protegeram dessas condições inseguras de trabalho e enfatizaram como era comum se depararem com violência e assédio no trabalho.

De modo semelhante, houve um grande protesto contra a Swiggy, plataforma que oferece serviços de entrega de alimentos. As e os trabalhadores protestaram contra a ausência de um salário mínimo e seguro de vida e contra acidentes. Existem riscos evidentes nesses modelos flexíveis de trabalho e as pessoas estão sendo obrigadas a se precarizar cada vez mais. O mercado de trabalho, por si só, está enraizado na exploração estrutural.

As trabalhadoras da Urban Company também confrontaram as relações de trabalho que se baseiam em plataformas, apontando como elas precisam pagar uma taxa de assinatura por uma coisa que deveria ser gratuita, porque são elas que realizam os serviços para a plataforma. Essa é uma das modalidades pelas quais a renda é extraída de prestadoras e prestadores de serviços que passam a ser considerados parceiros. Assim como as grandes farmacêuticas se beneficiam das patentes, que as ajudam a extrair renda dos medicamentos que desenvolvem, aumentando os custos do tratamento médico para cidadãos comuns. De modo semelhante, no panorama digital, para que trabalhadores e trabalhadoras possam vender sua força de trabalho, precisam pagar plataformas de serviços para entrar no mercado confinado no meio digital, que todavia comercializa os dados extraídos de seus esforços e do empenho do trabalho.

Voltando meu foco agora para o impacto da pandemia e da digitalização do trabalho, houve uma tendência para a virtualização forçada do trabalho em função da emergência sanitária que o mundo está testemunhando. As mulheres foram forçadas a voltar para casa e há diversos casos documentados que enfatizam como elas ficaram mais vulneráveis à violência doméstica nesse período. Mesmo para além do ambiente doméstico, é possível ver um certo tipo de migração reversa que está acontecendo em escala global. Além disso, todos os trabalhos na manufatura e nas linhas de montagem estão sendo automatizados. Uma pesquisa conduzida pela Reshoring Initiative em 2020 expôs como voltar a deslocar empregos para mais perto do norte global impactou trabalhadoras e trabalhadores do sul global.

Possíveis soluções

O que fazemos a respeito disso? Os planos de ação recomentados pela IT for Change incluem uma abordagem coletivista de governança global de dados, que envolve o estabelecimento de alguns princípios universais no estilo do constuticionalismo global de dados, com o objetivo de promover o acesso e o uso aberto da infraestrutura da internet para desmantelar o cercamento de dados nas mãos de monopólios privados. Aos países deve ser dada a autonomia de decidir estratégias políticas alinhadas a seus interesses. Deve haver algum tipo de cooperação sul-sul para garantir que ao menos seja aplicada a justiça fiscal. É necessário criar garantias trabalhistas universais para que, ao menos em momentos de crise, a população trabalhadora não fique vulnerável, mas tenha recursos para enfrentar o tipo de contingência que surgir de tempos em tempos.

Como se fala muito sobre crises e capitalismo, é essencial compreender que isso não significa o colapso total do capitalismo, mas sim que as contradições internas entre trabalho e capital ficam mais evidentes e se aprofundam sob o peso de sua própria crise autoinfligida. Também as relações de gênero estão sendo reconfiguradas ao lado das cadeias de valor reestruturadas digitalmente. Estamos enfrentando novas desigualdades e, ao mesmo tempo, assistindo ao aprofundamento daquelas que já existiam.

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Avantika Tewari é pesquisadora associada sênior da IT For Change. Este artigo é uma síntese baseada nas contribuições das pesquisas da IT for Change, transcrito a partir da fala de Avantika durante o webinário “Solidariedade feminista contra o poder corporativo” realizado pela Marcha Mundial das Mulheres.


[1] Sistema que rastreia o envio e recebimento de alguns tipos de informação pela internet. São pedaços de código gerados online que carregam informações conectadas – como vários dados que, juntos, formam uma corrente.

[2] Nova proposta da World Wide Web baseada em blockchains e na descentralização da internet.

[3] Moeda virtual utilizada em trocas a partir da tecnologia de blockchain.

Edição por Bianca Pessoa e Helena Zelic
Traduzido do inglês por Aline Scátola
Idioma original: inglês

 

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