A luta de Marielle está viva: por territórios livres da pobreza, do racismo, do machismo e do militarismo

14/03/2022 |

Por Dara Sant’Anna

Dara Sant’Anna reflete sobre o militarismo no Rio de Janeiro, Brasil, quatro anos após o assassinato de Marielle Franco

MST/RJ, 2019

Passaram-se quatro anos desde a execução de Marielle Franco, a quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Marielle exercia seu primeiro mandato quando foi executada em 14 de março de 2018, dentro de um carro no centro do Rio de Janeiro. Um dos assassinos, o policial reformado Ronnie Lessa, vizinho do presidente Jair Bolsonaro, foi condenado em 2019. A motivação e os mandantes do crime ainda não foram identificados pela justiça. 

Existe uma mobilização social por respostas. No Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil e do mundo, grandes atos de rua são realizados. Marielle Franco se tornou um símbolo da luta contra a militarização e as injustiças sociais.

A vereadora, que se identificava como mulher, preta e favelada, estava acompanhando a intervenção militar de segurança promovida pelo então governo golpista de Michel Temer.

A violência que atravessa o Brasil

De 2018 para cá, além da ausência de respostas do Estado sobre o crime, vivemos a eleição de Bolsonaro, que se deu de mãos dadas com os Estados Unidos e com Israel – dois Estados pautados pela guerra e pela destruição.

O Brasil, diferente de muitos países, passou por uma ditadura militar. Essa ditadura  não se findou completamente, porque a anistia total aos militares, sem julgamento das torturas e assassinatos ocorridos, deixou uma ferida aberta. Nosso país não conseguiu, na sua história, romper com a herança da ditadura militar. É um país que tem uma história de conciliação, de reforma desse lugar autoritário. E o bolsonarismo é fruto disso.

Após seis anos do golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência, quatro anos do assassinato de Marielle Franco, três anos de governo Bolsonaro e dois anos de uma pandemia, o Brasil passa por um desmonte das políticas públicas de atendimento à população, saúde, educação, assistência social. No entanto, continua a investir fortemente no setor de segurança e na flexibilização da legislação sobre o porte de armas no país, que hoje é regulado pelo Estatuto do Desarmamento.

Chega de armas, chega de mortes

O número de chacinas aumenta e algumas “novas” iniciativas são apresentadas pelo governo de Cláudio Castro no Rio de Janeiro. O Jacarezinho, por exemplo, é a favela onde ocorreu a maior chacina da cidade do Rio de Janeiro no dia 06 de maio de 2021. A substituição da Unidade de Polícia Pacificadora pelo Programa Cidade Integrada apresentou uma série de propostas para a favela. Na prática, o novo programa culminou no assassinato do suspeito de matar um policial durante a chacina.

Há anos, o Rio de Janeiro tem servido como um laboratório das políticas racistas de segurança pública no país. Tais programas sempre vestem novas roupagens e sempre terminam em mortes.

Em 2020, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 determinou que cessassem as operações policiais durante a pandemia. O descumprimento à ADPF é constante. As disputas de território entre milícia e tráfico deixam a população periférica carioca refém de braços altamente armados. As operações de inteligência só impactam na ponta, sem cortar o mal pela raiz.

Faz-se necessária a construção de alternativas de segurança pública que passem por um debate real de transformação social. Para tanto é fundamental que desmilitarizemos nosso pensamento.

Por outro modelo de segurança

Segurança Pública não é sobre efetivo policial, operações ou armamentos. Segurança é estado, qualidade ou condição de quem ou do que está livre de perigos, incertezas, assegurado de danos e riscos eventuais. É a situação em que nada há a temer e a Segurança Pública só existe se for para todas, todos e todas em todos os territórios e sem armas. Falar dessa condição é, então, tratar sobre o pleno direito à vida e ao território.

É o momento de rompermos com o pensamento militarizado e encarar a segurança enquanto iluminação das ruas e ocupação de espaços vazios e abandonados pelo capital privado e pelo poder público, com programas de habitação que saiam do território, enquanto valorização de ambulantes e comércios locais que façam com que as pessoas estejam circulando por todos os lugares.

Marielle se identificava enquanto favelada. A favela, que é o lugar mais inseguro para se viver no Rio de Janeiro, precisa estar segura em toda sua extensão. No entanto, ficamos presos a uma polícia militar instituída pela ditadura militar em 1969, que tem como principal objetivo a proteção do patrimônio e a manutenção da ordem.

Há a luta pela desmilitarização da polícia, mas a problemática deve ser tratada com muito mais profundidade. Precisamos lutar pela desmilitarização da vida e dos corpos, pleiteando o direito ao território como centro do debate. Assim, podemos dialogar sobre mudanças verdadeiramente radicais e de transformação social.

Um real investimento na educação pública priorizando lugares que estejam em maior vulnerabilidade social, um programa de renda básica e de distribuição de renda, a efetivação de uma justiça restaurativa e elaboração de projetos de reforma urbana que visem a melhoria da qualidade de vida nas periferias devem ser encarados como medidas de segurança pública.

O legado de Marielle

Marielle Franco questionava esse sistema, denunciava as arbitrariedades das operações e ações policiais nas periferias e reiteradas vezes apontou que a dita “guerra às drogas”, apontada como política de segurança pública até hoje, é, na verdade, o genocídio da população negra e favelada.

Completados quatro anos da morte de Marielle, temos mais vítimas dessa guerra civil e mais questionamentos em relação ao que motivou tamanha atrocidade.

A nós, que permanecemos vivas e vivos, o horizonte de mudança se apresenta: é o aumento de representatividade de mulheres, favelados e faveladas, negros e negras nos espaços de poder, para que, enfim, possamos garantir segurança pública para todos e todas.

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Dara Sant’Anna é estudante de Direito, militante da Marcha Mundial das Mulheres, do Coletivo Enegrecer e do Movimento Negro Unificado no Rio de Janeiro.

Edição e revisão de Helena Zelic

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