Cindy Wiesner: “Os movimentos nos EUA dizem ‘não’ à guerra”

25/03/2022 |

Por Capire

Leia a entrevista com a diretora-executiva da GGJ sobre o papel do poderio dos EUA no imperialismo e nas guerras

Há muito tempo, os movimentos feministas, sociais e pela paz denunciam os impactos das políticas imperialistas dos Estados Unidos. O poderio estadunidense é responsável por sanções e bloqueios contra países que recusam o império. É responsável pela ocupação e exploração de terras e territórios populares nos países do sul. Controla a economia e a autodeterminação dos países ao impor acordos de livre comércio, com uma presença ostensiva de corporações transnacionais, e também liderando ocupações militares, ataques armados e a militarização de aliados estratégicos. O papel dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na guerra entre Rússia e Ucrânia exige que os movimentos populares mantenham, com ainda mais intensidade, uma agenda de lutas radicais contra o armamentismo, a militarização e as guerras.

Capire conversou com Cindy Wiesner, diretora-executiva da Grassroots Global Justice Alliance (GGJ). A GGJ é aliança de organizações associadas que trabalha de forma transversal entre diferentes setores da classe trabalhadora. A atuação da GGJ está na intersecção entre justiça climática e ambiental, combate à militarização, combate às guerras e ocupações e a reivindicação por uma transição justa para uma economia feminista, regenerativa e antirracista. Atuante no movimento feminista, a GGJ representa a coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres nos EUA.

Na entrevista, Cindy destaca as interconexões entre militarismo e crise climática, ressaltando a importância da pressão exercida por movimentos feministas populares do país ao governo Biden e a denúncia dos interesses e lucros da indústria da guerra. “Conhecemos o impacto devastador que houve no Afeganistão e como esse processo aconteceu. Então precisamos responsabilizar nosso governo pelo que está acontecendo com as pessoas de lá e pelo papel terrível que os EUA desempenharam no país nos últimos 20 anos. E também pelo que está acontecendo no Iêmen, na Síria, na Palestina e na Somália. Os EUA têm um papel em todos esses conflitos.” Leia e ouça a entrevista completa abaixo:

Como você vê o papel dos EUA, em articulação com a Otan, no estímulo à guerra e ao armamentismo das nações?

Em primeiro lugar, os movimentos dos EUA – e nós, como GGJ – estamos dizendo “não” à guerra. Precisamos deixar manifesto que não deve haver uma escalada militar na Ucrânia e na região e estamos exigindo cooperação diplomática. Sabemos que é nosso papel pressionar o governo Biden – nosso governo – para dar esses passos e garantir que essa questão não se torne ainda maior. Além disso, precisamos entender o papel que os EUA estão assumindo nesse momento em que Biden está tentando se estabelecer e colocar o país de volta em uma posição de superpotência. Ele não deve usar isso de forma oportunista. Nós sabemos do papel que os EUA desempenharam ao promover a Otan como forma de lidar com as negociações geopolíticas que estão acontecendo.

É muito importante nos colocarmos em solidariedade com o povo ucraniano. Estamos vendo todos os dias, na televisão, no noticiário, no rádio, o impacto sem sentido sobre a população civil. Estamos assistindo a uma migração em massa e à devastação do território do povo ucraniano. O governo dos EUA tem um histórico de uso de poder e intimidação. Relembrando, faz 31 anos desde o primeiro massacre do Iraque, em 1991. Muito do que aconteceu ali foi uma guerra sem sentido, onde não havia armas de destruição em massa. O Iraque foi devastado, mas o que vimos foi um nível imenso de lucro, sobretudo pelas corporações transnacionais dos EUA. Como estamos vendo agora.

As ações de empresas como Raytheon e Lockheed Martin tiveram um ganho inacreditável em 24 horas ou em uma semana de guerra. Precisamos conseguir relacionar essas questões.

Como os movimentos populares dos EUA estão lidando com a agenda de Biden e o posicionamento do governo com relação à guerra e ao imperialismo?

Em um nível, estamos muito contentes por não estarmos no regime Trump. Isso é bem importante, por causa do que vimos, mesmo em termos de declarações que Trump fez em apoio a Putin e à invasão. Essa é uma diferença de posicionamento e nós precisamos entender essa nuance. Neste momento, Biden optou por um tipo de mecanismo diferente: a aplicação de sanções – mesmo com nossa crítica a elas. Sabemos que elas não matam de imediato, matam lentamente.

Parte dos movimentos populares que combatem a militarização e lutam pela paz tomou a decisão de pressionar por uma postura diplomática como forma de lidar com o conflito. Vimos um montante inédito de milhões e milhões de dólares liberados pelo Congresso dos EUA para enviar apoio militar à Ucrânia. Muitas vezes, isso se sobrepõe com disputas que vimos no passado com relação à garantia de um resgate econômico [bailout] popular, garantindo um tratamento das necessidades das comunidades que foram impactadas de forma tão direta pela pandemia. Não é uma escolha entre um ou outro quando se fala em cuidar da população dos EUA. É uma questão de conseguir enxergar que, quando o Congresso e o presidente têm vontade política, eles conseguem liberar o dinheiro.

Por causa do interesse dos EUA na geopolítica e no desejo de se impor como superpotência nessa disputa global em torno do projeto imperialista de construção de nação, queremos deixar manifesto que dizemos “não” à militarização do orçamento.

Nós dizemos “não” ao auxílio que é oferecido às custas do sofrimento da população. Conhecemos o impacto devastador que houve no Afeganistão e como esse processo aconteceu. Então precisamos responsabilizar nosso governo pelo que está acontecendo com as pessoas de lá e pelo papel terrível que os EUA desempenharam no país nos últimos 20 anos. E também pelo que está acontecendo no Iêmen, na Síria, na Palestina e na Somália. Os EUA têm um papel em todos esses conflitos. Devemos demonstrar solidariedade com a população impactada pela guerra, pela militarização e pela ocupação.

Há também o papel das corporações transnacionais dos EUA. Sabemos que outra camada disso é uma guerra por recursos. Os combustíveis fósseis têm um impacto em termos do poder que a Ucrânia e a Rússia têm na região. É momento de exigirmos uma descarbonização imediata, de nos direcionarmos às sensibilidades das pessoas para afirmarem de fato que precisamos cortar os investimentos em combustíveis fósseis e na militarização. Nós queremos paz e sustentabilidade, um paradigma diferente sobre o qual queremos viver. Essa é uma oportunidade para nós, no movimento, levantarmos essas questões, sobretudo nesse momento em que ainda estamos vivendo a pandemia.

GGJ

Quais são os caminhos e horizontes dos movimentos feministas para a construção da paz? Como o feminismo contribui para a paz?

Nós participamos de um processo nos Estados Unidos com outras organizações parceiras. Uma delas é a Women Cross DMZ, que exige o fim da Guerra da Coreia – uma das mais longas da história dos EUA – e a reunificação da Coreia. Também atuamos ao lado da MADRE, outra organização que apoia a agenda de paz e os movimentos feministas e de mulheres pelo mundo. Participamos de um processo chamado Iniciativa Feminista pela Paz [Feminist Peace Initiative], que lançou recentemente um compromisso “Contra a guerra e o aquecimento” [“No war and no warming”]. Estamos tentando incidir sobre nossos parlamentares para que assinem esse compromisso e façam a ligação entre a crise climática, a militarização e o imperialismo, mas também que afirmem que existe outro caminho. Existe uma abordagem feminista para se pensar a paz e o bem-estar, e o que isso significa para o respeito à soberania e aos territórios populares.

Esse trabalho que estamos tentando fazer é, ao mesmo tempo, educar as pessoas com relação às interconexões das nossas lutas contra o militarismo e a crise climática e também pressionar nosso governo para conseguir impulsionar a cooperação e a diplomacia como forma de resolver as questões e os problemas.

Pela GGJ, estamos promovendo uma economia feminista antirracista regenerativa, e parte disso tem uma visão de longo prazo. Depois de viver no regime patriarcal, misógino, racista e homofóbico de Trump, era preciso deixar muito evidente a ascensão dessas figuras e lideranças autoritárias machonas que estão ganhando espaço por meio de processos eleitorais. Precisamos articular nossa alternativa a isso, o que de fato será o contraponto a esse modelo.

Está bem evidente que esse modelo de liderança, política e ideologia tem a ver de fato com o lucro. Ele se centra na morte e na matança, assassinando pessoas e a natureza.

Em última análise, ficou muito evidente, ao longo da pandemia, o papel do trabalho reprodutivo que nos salvou. Foram muitas vezes mulheres, corpos dissidentes, pessoas no setor de serviços que foram trabalhar para manter o resto de nós vivos. Esse aspecto, mais do que nunca, evidencia por que precisamos falar sobre uma economia, práticas, ideias políticas e políticas públicas diferentes.

No trabalho da GGJ, essa análise feminista é bastante nítida, mas é uma análise feminista popular muito influenciada por uma perspectiva feminista global afroamericana, negra, radical, queer, lésbica, trans, camponesa e indígena. Isso de fato articula o mundo em que queremos viver não apenas daqui a 50 ou 200 anos, mas também que começamos a praticar já. E como isso está começando a se desenhar? Esse é o projeto político de que fazemos parte, ao lado de um movimento feminista global, com a Marcha Mundial das Mulheres, mas também com muitas outras organizações ao redor do mundo.

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa e Helena Zelic
Tradução do inglês por Aline Scátola

Artigos Relacionados