Experiências 01/12/2022

Desmilitarização

“Você está presa”: a desobediência de Rosa Parks contra o racismo

Leia o relato de Rosa Parks sobre seu ato de desobediência à segregação nos ônibus de Montgomery, nos Estados Unidos, em 1955

Há 67 anos, na data de hoje, 1.º de dezembro, na cidade de Montgomery, nos Estados Unidos, Rosa Parks se recusou a levantar de seu assento no ônibus para ceder seu lugar a pessoas brancas. Parks era ativista da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor [National Association for theAdvancement of Colored People – NAACP], e sua atitude foi um marco para as reivindicações antirracistas e antissegregacionistas no país.

Para celebrar esse ato de insubordinação que ficou gravado na memória dos povos negros ao redor do mundo, compartilhamos hoje um fragmento do livro “Minha história”, publicado pela primeira vez em 1992, ainda sem tradução ao português. No capítulo “Você está presa”, Rosa Parks conta como foi o dia em que foi levada à prisão, como foi tratada e quais eram as estratégias políticas de denúncia à segregação racista que estavam sendo discutidas naquele momento. 

*

“Você está presa”

Creio que não houve lei de segregação que mais enfureceu as pessoas negras de Montgomery do que a da segregação nos ônibus. E foi assim desde que as leis de segregação no transporte público foram aprovadas. Isso aconteceu em 1900, e as pessoas negras boicotaram os bondes de Montgomery até o governo da cidade alterar a legislação para que não se obrigasse ninguém a ceder seu lugar se não houvesse outro assento disponível. Mas ao longo dos anos, as práticas se transformaram, ainda que a lei não. Quando fui tirada do ônibus em 1943, o motorista estava de fato descumprindo a lei. Em 1945, dois anos depois daquele incidente, o estado do Alabama aprovou uma lei exigindo que todas as empresas de ônibus em sua jurisdição aplicassem a segregação. Mas essa lei não especificava o que os motoristas deveriam fazer em um caso como o meu.

Lá estava eu, meio século depois da primeira lei segregacionista, e havia 50 mil pessoas afro-americanas em Montgomery. Havia mais de nós andando de ônibus do que caucasianos, porque era mais comum os brancos terem condições de ter carro. Era muito humilhante ter que sofrer a indignidade de andar em ônibus segregados duas vezes por dia, cinco dias por semana, para ir ao centro trabalhar para pessoas brancas.

(…)

Jo Ann Robinson era professora de inglês na Faculdade Estadual do Alabama. Em 1946, ajudou a fundar o Conselho Político das Mulheres. Ao longo dos anos, ela teve sua cota de conflitos com motoristas de ônibus, mas, a princípio, não conseguia despertar indignação em outras mulheres do Conselho. Ela era de Cleveland, Ohio, e a maioria das integrantes era de Montgomery. Quando ela reclamava da grosseria dos motoristas, elas respondiam que aquilo era um fato da vida em Montgomery. Muitas vezes, ela protestou junto à companhia de ônibus em nome do Conselho Político de Mulheres. Por fim, conseguiu fazer a empresa concordar que os ônibus fariam paradas em todas as esquinas nos bairros negros, do mesmo modo que faziam nos bairros brancos. Mas foi uma vitória muito pequena.

O que a irritava — e a muitas outras de nós — era que as pessoas negras representavam mais de 66% dos passageiros. Era injusto nos segregar. Mas nem a empresa de ônibus nem o prefeito nem os vereadores ouviam. Lembro de ter discussões sobre como um boicote aos ônibus da cidade prejudicaria de fato a empresa, no bolso. Mas também lembro de perguntar a algumas pessoas se elas estariam dispostas a evitar pegar ônibus para melhorar a situação para nós, e elas responderem que a distância até o trabalho era longa demais. Então parecia não haver muito apoio a um boicote. A NAACP em Montgomery estava começando a avaliar entrar com um processo contra a cidade por causa da segregação no transporte. Mas era necessário ter a autoria certa e um caso robusto. O ideal seria ter uma mulher como autora, pois uma mulher despertaria mais simpatia que um homem. E deveria ser uma mulher acima de qualquer suspeita, de boa reputação, que não tivesse feito nada de errado além de se recusar a ceder seu lugar.

No primeiro semestre de 1995, uma adolescente chamada Claudette Colvin e uma mulher idosa se recusaram a ceder seus lugares no meio do ônibus para pessoas brancas. Quando o motorista foi chamar a polícia, a senhora saiu do ônibus, mas Claudette se recusou a sair, dizendo que já tinha pago a passagem e não havia motivo para se mexer. Quando a polícia chegou, ela foi arrastada para fora do ônibus e detida. (…)

Depois da prisão de Claudette, um grupo de ativistas apresentou uma petição aos responsáveis pela empresa e a autoridades municipais. A petição pedia um tratamento mais educado e pela retirada de placas de indicação de segregação. Não era um pedido pelo fim da segregação, apenas uma compreensão de que os brancos começariam a sentar na parte da frente do ônibus e as pessoas negras começariam sentando no fundo, e onde quer que se encontrassem seria a linha divisória. Creio que essa petição também pedia a contratação de motoristas negros. As autoridades municipais e a empresa levaram meses para responder à petição e, quando responderam, recusaram todos os pedidos.

(…)

Eu sabia que eles precisavam de uma autora que estivesse acima de qualquer suspeita para entrar com o processo, porque estava por dentro das discussões sobre os possíveis casos. Mas não foi por isso que recusei ceder meu assento para um homem branco na quinta-feira, 1.º de dezembro de 1955. Eu não tinha intenção de ser presa. Se estivesse atenta, não teria sequer subido naquele ônibus.

Eu estava ocupadíssima naquele momento específico. (…) Quando saí do trabalho na noite de 1.º de dezembro, fui para a Praça do Fórum, como de costume, para pegar o ônibus da Avenida Cleveland até minha casa. Não olhei para ver quem estava dirigindo quando subi e, quando o reconheci, já tinha pago minha passagem. Era o mesmo motorista que tinha me tirado do ônibus em 1943, 12 anos antes. Ele continuava alto e pesado, com a pele vermelha e áspera. E continuava com uma aparência vil. Eu não sabia se ele já tinha trabalhado naquele itinerário antes — às vezes eles mudavam os motoristas de linha. O que sei é que, na maioria das vezes, se eu o via em um ônibus, não entrava.

Vi um assento vago no meio do ônibus e sentei. Nem questionei por que havia um assento vago, embora houvesse um bom número de pessoas de pé no fundo. Se eu tivesse refletido sobre isso, provavelmente teria pensado que talvez alguém tivesse me visto subir e não sentou, mas deixou o assento vago para mim. Havia um homem sentado na janela e duas mulheres do outro lado do corredor.

A parada seguinte foi no Empire Theater, e alguns brancos entraram. Eles encheram os assentos para brancos, e um homem ficou de pé. O motorista olhou para trás e viu o homem de pé. Em seguida, olhou para trás, para nós. Ele disse: “Me deem esses lugares na frente”, porque eram assentos na parte da frente do setor para negros. Ninguém se mexeu. Ficamos sentados onde estávamos, nós quatro. Ele então falou pela segunda vez: “É melhor vocês facilitarem para vocês e me darem esses lugares.”

O homem sentado na janela ao meu lado se levantou, e eu me virei para deixá-lo passar, depois olhei do outro lado do corredor e vi que as duas mulheres também estavam levantando. Passei para o lugar do lado da janela. Não via como me levantar “facilitaria” para mim. Quanto mais cedíamos e obedecíamos, pior era o tratamento que recebíamos. (…)

As pessoas sempre dizem que eu não cedi meu lugar porque estava cansada, mas não é verdade. Eu não estava fisicamente cansada, ou não estava mais cansada que o normal no fim de um dia de trabalho. Eu não era velha, embora algumas pessoas tenham uma imagem de que eu era uma pessoa idosa. Eu tinha 42 anos. Não, meu único cansaço era o cansaço de ceder.

O motorista do ônibus viu que eu continuava sentada ali e perguntou se eu ia levantar. Eu disse: “Não.” Ele disse: “Bom, vou mandar prender você.” E eu respondi: “Você pode fazer isso.” Foram essas as únicas palavras que trocamos. Eu só fui saber o nome dele, que era James Blake, no dia em que estivemos juntos no tribunal. Ele saiu do ônibus e ficou alguns minutos do lado de fora, aguardando a polícia.

Ainda sentada, tentei não pensar no que poderia acontecer. Eu sabia que tudo era possível. Poderia ser maltratada ou espancada. Poderia ser presa. As pessoas me perguntam se me ocorreu naquele momento que meu caso poderia ser aquele que a NAACP vinha procurando para entrar com a ação. Não pensei em nada disso. Na verdade, se eu me permitisse aprofundar demais no que poderia acontecer comigo, talvez tivesse descido do ônibus. Mas escolhi ficar.

Enquanto isso, havia pessoas descendo do ônibus e pedindo para fazer baldeação, então isso começou a esfriar a multidão, sobretudo na parte de trás do ônibus. Nem todo mundo desceu, mas estavam todos bem quietos. A conversa que acontecia se dava em tom baixo; ninguém falava alto. Teria sido bem interessante ver o ônibus todo esvaziar. (…)

Dois policiais finalmente chegaram. Entraram no ônibus e um deles me perguntou por que não levantei. Perguntei a ele: “Por que vocês nos intimidam?” Ele disse — e eu cito literalmente: “Não sei, mas a lei é a lei, e você está presa.” Um policial pegou minha bolsa, e o segundo pegou minha sacola de compras e me acompanhou até a viatura. Na viatura, eles me devolveram meus pertences. Não encostaram a mão em mim nem me colocaram à força dentro do carro. Depois que sentei, eles voltaram para o motorista e perguntaram se ele gostaria de registrar o boletim de ocorrência. Ele respondeu que terminaria o itinerário e depois voltaria direto para registrar o boletim. Enquanto o boletim não fosse assinado, eu só estaria detida, não legalmente presa.

Ao me levarem até a delegacia, na Câmara, perto da Rua do Fórum, um deles me perguntou de novo: “Por que você não levantou quando o motorista falou com você?” Não respondi. Fiquei em silêncio durante todo o percurso até a Câmara.

Ao entrarmos no prédio, perguntei se poderia tomar água, porque minha garganta estava muito seca. Havia um bebedouro e eu estava bem ao lado dele. Um dos policiais disse que sim, mas quando me curvei para beber, o outro policial disse: “Não, você não pode tomar água nenhuma. Precisa esperar até ir para a cadeia.” (…) Perguntei se poderia dar um telefonema e eles responderam: “Não.” Como era a primeira vez que eu era presa, não sabia se isso era mais discriminação por eu ser negra ou se era o procedimento. Mas me parecia ser mais discriminação. Eles me levaram então de volta à viatura, e fomos até a cadeia da cidade na Rua North Ripley.

Eu não estava com medo da cadeia. Estava mais resignada que qualquer outra coisa. Não me lembro de sentir raiva de fato, não o suficiente para discutir. Eu só estava pronta para aceitar o que tivesse que enfrentar. Perguntei de novo se poderia dar um telefonema. Fui ignorada.

(…)

Ela [a carcereira] me levou escada acima (as celas estavam no segundo andar), passando por uma porta coberta com uma malha de ferro e por um corredor mal iluminado. Ela me colocou em uma cela vazia e escura e bateu a porta. Andou alguns passos, mas depois deu meia-volta e voltou. E disse: “Tem duas meninas do outro lado e, se você quiser ir ficar lá com elas em vez de ficar sozinha em uma cela, posso levar você.” Falei que não importava, mas ela respondeu: “Vamos lá, aí você não precisa ficar sozinha na cela.” Esse foi o jeito dela de ser legal. Não ajudou em nada para eu me sentir melhor. (…) Havia duas mulheres negras na cela para onde a carcereira me levou, como ela tinha dito. Uma delas falou comigo e a outra não. Uma simplesmente agiu como se eu não estivesse lá. A que falou comigo perguntou o que havia acontecido. Contei que tinha sido presa no ônibus.

Ela disse: “Tem uns motoristas que são cruéis mesmo. Você é casada?” Respondi: “Sou.” E ela: “Seu marido não vai te deixar aqui.”

Ela quis saber se poderia fazer alguma coisa, e eu respondi: “Se tiver um copo, eu poderia beber um pouco d’água.” Ela tinha uma caneca escura de metal pendurada sobre o vaso e pegou um pouco de água da torneira, e eu dei duas goladas. E aí ela começou a me contar dos problemas dela. Fiquei interessada na história e pensando em como poderia ajudá-la.

Ela contou que estava lá havia 55 ou 57 dias e que era viúva, o marido tinha morrido. Ela fazia companhia a outro homem, ele se irritou com ela e a agrediu. Ela pegou uma machadinha e foi atrás dele, e ele a colocou na cadeia.

Ela contou que tinha dois irmãos, mas não tinha conseguido falar com eles. Enquanto isso, depois de ficar presa um certo tempo, o homem meio que sarou e quis tirá-la da cadeia, mas só se ela continuasse com ele. Mas ela não queria ter mais nada a ver com ele. Então estava presa sem nenhuma forma de entrar em contato com ninguém que poderia tirá-la de lá.

Ela tinha um lápis, mas não tinha papel, e eu também não, porque tiraram minha bolsa de mim. Quando ela terminou de me contar sobre o que estava acontecendo, a carcereira voltou e me disse para sair da cela. Eu só descobri para onde estava indo quando cheguei à cabine telefônica. Ela me deu um cartão e falou para eu escrever o nome da pessoa para quem ia ligar e o número de telefone. Colocou uma moeda no telefone, discou o número e ficou por perto para ouvir o que eu dizia.

Liguei para casa. Meu marido e minha mãe estavam lá. Ela atendeu. Eu disse: “Estou presa. Veja se o Parks pode vir me tirar daqui.”

Ela quis saber: “Bateram em você?”

Respondi: “Não, não apanhei, mas estou presa.”

Ela passou o telefone para ele, e eu disse: “Parks, você pode vir me tirar da cadeia?”

Ele respondeu: “Já chego aí.” Ele não tinha carro, então eu sabia que demoraria. Mas enquanto ainda estávamos no telefone, um amigo passou de carro. Ele tinha ouvido falar da minha prisão e foi até nossa casa na Cleveland Court para ver se poderia ajudar. Falou que levaria o Parks de carro até a cadeia.

A carcereira me levou de volta à cela.

Como o amigo do Parks já tinha indicado, a informação sobre minha prisão já estava circulando. O sr. Nixon havia sido informado pela esposa, que ouviu de uma vizinha, Bertha Butler, que tinha me visto sair escoltada do ônibus. O sr. Nixon ligou para a cadeia para descobrir qual era a acusação, mas não quiseram dizer a ele. Ele então tentou falar com Fred Gray, um dos dois advogados negros de Montgomery, mas ele não estava em casa. Por fim, o sr. Nixon ligou para Clifford Durr, o advogado branco que era marido da sra. Virginia Durr. O sr. Durr ligou para a cadeia e descobriu que eu havia sido presa com base nas leis de segregação. Também descobriu o valor da fiança.

(…)

Quando voltei à cela, a mulher tinha encontrado um pedacinho de papel amassado e escreveu o nome e o telefone dos dois irmãos. Disse para ligar de manhã cedo, porque eles saíam para trabalhar por volta das seis da manhã. Falei que ligaria.

Foi aí que a carcereira veio me avisar que eu seria liberada, e a mulher ainda não tinha me entregado o pedaço de papel. Estavam me apressando para sair, e ela estava bem atrás de mim. Ela sabia que não conseguiria passar pela porta com a malha de metal no fim da escadaria, então atirou o papel escada abaixo, que caiu na minha frente. Peguei o papel e coloquei no bolso.

A sra. Durr foi a primeira pessoa que vi quando passei pela porta da malha de metal com carcereiras dos meus dois lados. Ela estava com os olhos cheios d’água e parecia abalada, provavelmente pensando no que teriam feito comigo. Assim que me liberaram, ela passou os braços por mim, me abraçou e me beijou como se fôssemos irmãs. (…) Saímos sem conversar muito, mas foi um momento carregado de emoção. Só percebi como ser presa tinha me afetado quando saí.

Descendo a escada, o Parks e o amigo dele estavam chegando, então entrei no carro com eles, e o sr. Nixon nos acompanhou até nossa casa.

Quando cheguei em casa, já era cerca de nove e meia ou dez da noite. Minha mãe estava feliz de me ter em casa e queria saber o que poderia fazer para me deixar confortável. Falei que estava com fome (por algum motivo, não tinha almoçado naquele dia), e ela preparou alguma coisa para mim. (…) Estavam todos revoltados com o que tinha acontecido comigo, falando que isso nunca mais deveria acontecer. Eu sabia que nunca, nunca mais andaria em um ônibus segregado, mesmo que tivesse que ir andando para o trabalho. Mas ainda não tinha me ocorrido que o meu caso seria a melhor ação representativa da controvérsia contra os ônibus segregados.

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Fragmento traduzido do inglês por Aline Scátola

Introdução e edição por Helena Zelic

Tradução da introdução por Luiza Mançano

 

 

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