Nos últimos anos, organizações feministas do mundo todo têm alertado sobre o aumento da violência online para os corpos dissidentes. Temos sentido a hostilidade, a humilhação e a perseguição de mulheres, pessoas trans, LGBTQIAPN+ e de organizações que trabalham na defesa dos direitos humanos no ambiente digital. Essa perseguição se dá tanto para difamar suas pautas quanto para disputar a narrativa, impondo um ambiente hostil e nada seguro.
É neste cenário que entra a MariaLab, organização feminista que atua na intersecção entre gênero, raça, política e tecnologias, sendo elas digitais ou não. Na MariaLab, promovemos uma discussão tecnopolítica que permite repensar o uso e desenho de tecnologias que possam estar a serviço dos nossos movimentos.
A MariaLab foi, durante os últimos anos, recebendo pedidos de ajuda de mulheres, organizações da sociedade civil e pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ para lidar com demandas emergenciais sobre segurança digital. Os pedidos de ajuda tiveram um aumento significativo durante e após a pandemia do covid-19, inclusive motivados pelo aumento da virtualização, que impôs novas vulnerabilidades de segurança devido ao desconhecimento de como se proteger no ambiente online. Pessoas foram vítimas de golpes, clonagens, violências de gênero (inclusive durante campanhas políticas), entre tantas outras violências.
Tornou-se urgente tirar do papel um projeto antigo: a realização de uma linha de ajuda, serviço online, gratuito e seguro para que as pessoas pudessem contar com um atendimento humano, feminista e que busca desenvolver habilidades para a autonomia das pessoas. Assim, nasceu a Maria d’Ajuda, a primeira linha de ajuda feminista e brasileira para atendimentos em emergências digitais, que atua em 3 eixos: segurança digital para redes sociais — recomendações específicas para cada acolhimento em casos de perda de conta, ataques de ódio, assédio, entre outras ameaças digitais; segurança digital organizacional — recomendações de estratégias de mitigação de danos em casos de ataques às infraestruturas digitais das organizações ou de outras formas de ameaça digital de acordo com o contexto; repressão, perseguição e censura — estratégias de proteção e cuidado frente a ameaças e ataques eminentes contra ativistas, movimentos sociais e organizações defensoras de direitos humanos. Outros tipos de ameaças digitais, que não estão listadas acima, são analisadas individualmente para buscar a melhor forma de acolhimento.
Não nos ensinaram que nos proteger na internet garante um uso mais saudável das tecnologias.
A Maria d’Ajuda quer mudar isso, um atendimento por vez. Todo o atendimento é feito online, através do e-mail sos@mariadajuda.org e com encontros virtuais entre a equipe de acolhimento e a pessoa acolhida. Os atendimentos são construídos a partir de uma metodologia feminista de acolhimento que trabalha com a escuta ativa e promove a autonomia das pessoas em relação à sua segurança digital. Durante o atendimento, há um processo educacional sobre cuidados digitais, para trazer mais confiança no uso da internet.
O cenário das violências digitais
Historicamente, mulheres e corpos dissidentes são alvo de diferentes tecnologias e políticas de controle, seja por tecnologias reprodutivas, legislações discriminatórias a gênero, sexualidade e raça, limitações do acesso ao conhecimento, entre muitas outras. No desenvolvimento e aplicação das tecnologias digitais, isso não é diferente. Por exemplo através de deepfake, uma inteligência artificial que coloca o rosto de uma pessoa no corpo de outra, fazendo com que mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ tenham seus rostos vinculados aos corpos de atrizes e atores da indústria de filmes adultos, ou mesmo Aplicativos Espiões que são uma tecnologia de vigilância que tem como propaganda a possibilidade de você monitorar a “fidelidade” da pessoa com quem se relaciona, tendo acesso à localização, câmera, mensagens, entre outros. Assim como vão aparecendo mais e mais formas de controle dos corpos, inclusive através da violência.
Alguns exemplos de violências digitais, com forte recorte de gênero, raça e sexualidade em seus alvos são: a disseminação não consentida de imagens íntimas com intenção de humilhar, expor, constranger alguém por divulgação de imagens íntimas; o discurso de ódio; a vigilância (ou espionagem) eletrônica; a extorsão, ou seja “a ameaça de se divulgar imagens íntimas para forçar alguém a fazer algo — ou por vingança, ou humilhação ou para extorsão financeira”, como define a associação SaferNet; o cyberbullying (ou assédio virtual); perfis falsos; perseguição online (cyberstalking); e a censura ou controle no ambiente digital que é impedir que uma pessoa tenha acesso aos seus meios digitais através de troca de senhas das redes sociais, exclusão de perfil, invasão de contas de e-mail, etc.
Você pode mergulhar no tema da segurança digital e da tecnopolítica
Nossas práticas na MariaLab são influenciadas por diversas elaborações do movimento feminista e de defesa dos direitos humanos, tais quais a própria Marcha Mundial das Mulheres, que desenvolveu uma série incrível sobre a Crítica Feminista ao poder corporativo — o terceiro episódio, chamado “A digitalização”, traz reflexões importantes sobre o caráter político da tecnologia, através de uma leitura feminista popular dos impactos nos nossos territórios sendo pela mineração, monitoramento, entre outros.
Também indicamos a Biblioteca online da MariaLab, voltada para a segurança digital para ativistas e outros conteúdos para defensoras de direitos humanos. No Instagram da Maria d’Ajuda, há conteúdos sobre a linha de ajuda e sobre segurança digital para compartilhar com sua rede. Indicamos também o lindo site Prato do Dia, da Rede Transfeminista de Cuidados digitais, que faz um paralelo entre cuidados digitais e segurança alimentar, e que está disponível em português, espanhol e inglês. Além disso, Simone Browne tem um importante texto sobre a vigilância biométrica e seus paralelos com a vigilância colonialista durante a escravidão.
Para conhecer mais sobre o trabalho da MariaLab indicamos nossa participação no Podcast Tecnopolítica. Existem iniciativas semelhantes à nossa linha de ajuda em outras partes do mundo, como Luchadoras (México), Access Now (Global) e Navegando Libres (Equador).
A atuação de feministas na internet é muito atravessada pela presença de ataques à honra, ao movimento, às nossas pautas principais, às ativistas. A Maria d’Ajuda quer ser mais um braço da luta feminista para momentos em que precisamos umas das outras para lidar com as ameaças digitais de uma forma acolhedora e impulsionadora de autonomia.
O cenário está cada vez mais complexo em relação à nossa atuação online, ainda mais neste momento que a internet atravessa muitas áreas de nossas vidas e é um palco de disputa intensa sobre formas de ser e viver. Como o movimento feminista bem sabe, a nossa proteção precisa estar em diferentes áreas para que seja integral. Nossa proteção tem que permear um pacto coletivo de cuidado e de transmissão de conhecimentos entre nós, para que seja construída de forma consistente e duradoura. Toda vez que uma companheira, companheire, coletivo ou organização toma iniciativa para estar mais segure na internet, é preciso refletir sobre como essa maior segurança só será alcançada se for coletiva: com o comprometimento do maior número de pessoas que estão na luta durante o processo de mudança cultural no uso das tecnologias.
Construir a internet que queremos é um exercício conjunto de pensar e repensar nossas atuações nela e como isso impacta o movimento como um todo.
As feministas têm um papel fundamental de pensar esse futuro da internet, que tem como pilares o cuidado, o afeto, a educação, a análise interseccional, o respeito ao meio ambiente, as múltiplas gerações unidas, os territórios, as culturas, as redes entre pessoas, o acolhimento e muito mais que ainda não sabemos, mas ousaremos construir juntas.
____