As mulheres negras sempre tiveram um papel fundamental na luta pela libertação no Brasil. No entanto, por vivermos em uma sociedade patriarcal, racista, machista e excludente, esta presença e este reconhecimento sempre foram invisibilizados. É importante reafirmar que nossos passos e nossas lutas vêm de longe. Falamos de uma longa caminhada de mulheres negras que fizeram de suas vidas exemplo de luta e de resistência e que pavimentaram os caminhos para o movimento de mulheres negras contemporâneo, contribuindo com movimentos feministas, e para que fossem reconhecidas nas lutas sociais que continuam crescendo.
Poderíamos falar sobre vários nomes de Mulheres Negras, que foram e continuam sendo nossas referências, mas vamos contar a história de uma delas: Tereza de Benguela, a rainha do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. O Quilombo se localizava na Serra dos Parecis, próximo ao Rio Guaporé e da Vila Bela da Santíssima Trindade. Entre os anos de 1752 e 1820, essa pequena cidade era a capital do estado. A descoberta de riquezas minerais na região do Rio Guaporé fez com que os colonizadores portuguêses ocupassem a região, garantindo uma expansão de população branca, e levando também mãos escravizadas negras e indígenas.
Lembremos que antes ser capital, já havia negros escravizados nesta cidade. Tereza de Benguela passou a ser conhecida na região a partir de 1750 como rainha do Quilombo de Quariterê, onde viveu e reinou até 1770, quando foi capturada e assassinada junto a outras pessoas que pertenciam ao Quilombo.
Tereza de Benguela era escravizada fugitiva. Sob sua liderança e com a presença e atuação nas fugas de mulheres, homens, negros e indígenas, fundou o Quilombo Quariterê. Neste período Tereza de Benguela comandou toda estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, criou estratégias de organização e defesa, trocando armas, alimentos com brancos e expropriando vilas. Estima-se que no Quilombo havia aproximadamente 200 pessoas livres, entre negros e indígenas fugidos da escravização e do trabalho forçado nas fazendas da região.
O Quilombo Quariterê era uma referência potente de liberdade, de vida em comunidade, de respeito as diferenças, ali as pessoas viviam de tudo que elas mesmas plantavam. Nas suas terras eram cultivado milho, feijão, mandioca, banana e algodão, utilizado na fabricação de tecidos e roupas que eram comercializados fora do quilombo. Sendo um espaço de liberdade, os negros no quilombo usavam o mesmo ferro que os feriam e os marcavam como gado como arma de resistência e organização.
Tereza de Benguela era esposa de José Piolho, outro líder negro quilombola. Juntos administraram o Quilombo por quase 20 anos, como podemos ver neste registro da época:
“Governava esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entrava os deputados, sendo o de maior autoridade, tipo por conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executava à risca, sem apelação nem agravo. ” – Anal de Vila Bela do ano de 1770
É claro que o Estado jamais iria tolerar tal desaforo: um espaço de liberdade e resistência negra e indígena que permitia outra forma de vida e economia existentindo e sendo referência para várias partes do país. Uma referência positiva que circulava entre as pessoas escravizadas e que incentivava inúmeras fugas de homens e mulheres para o Quilombo. Foram várias resistências às investidas do exército para destruir o Quilombo dirigido por uma mulher.
No ano de 1770, o Quilombo Quariterê sofreu um forte ataque, apesar de sua resistência e organização. Este ataque deixou muitos feridos e muitos foram capturados, entre eles Tereza de Benguela. Essas pessoas foram humilhadas, sofreram violências e rapidamente algumas foram levadas de volta aos seus “senhores”, marcados para sempre como escravos fujões.
A Rainha Tereza de Benguela sofreu ainda mais por ser a líder do Quilombo. Foi exposta em uma prisão pública para ser vista por todos, em especial pelos que viviam no Quilombo, para servir de exemplo para quem tentasse fazer o mesmo que ela. Tereza de Benquela sofreu humilhações e privações até sua morte. Sua cabeça foi cortada e colocada no centro do Quilombo de Quariterê, em um poste alto, como exemplo e para a memória de quem tentasse seguir os seus passos.
A vida e a experiência desta mulher Preta e Quilombola, a Rainha Tereza de Benguela, não serviu para gerar medo nos escravizados capturados e aos que conseguiram fugir, como era a intenção o exército e dos fazendeiros. Ela foi exemplo de resistência e motivação para continuar as resistências e a luta pela libertação. Aqui é possível perceber o quanto o Estado sempre apoiou a elite branca brasileira, financiado a destruição e a vida dos povos negros e indígenas para manterem-se no poder e com controle das vidas e da terra.
A experiência do Quilombo de Quariterê serviu de exemplo principalmente para a resistência de todos aqueles e aquelas que conseguiram fugir do ataque e souberam da história e de como a Rainha Tereza de Benguela havia sido morta. Voltaram com força a reorganizar o Quilombo de Quariterê. Em 1795, porém, com uma nova ofensiva do exército e de fazendeiros, o Quilombo Quariterê deixa de existir fisicamente, mas não na memória de mulheres e negras que continuaram seu legado até os dias de hoje.
As mulheres negras sempre contribuiram na construção das resistências e na luta pela emancipação e libertação no Brasil e no mundo, embora esta contribuição seja sempre apagada e silenciada. O sangue esvaído de Tereza de Benguela inundou a terra e fez germinar outros quilombos, outras resistências. Graças à mobilização e a luta das mulheres negras e do movimento negro, em 2 de junho de 2014, foi instituído por meio da lei nº 12.987 no Brasil, o dia 25 de julho como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Uma homenagem a esta mulher símbolo de resistência contra a escravidão. Nesta mesma data celebramos também o Dia das Mulheres Negras, Latinos-americanas e Caribenhas.
Todas estas conquistas são resultadodo legado da luta de Tereza de Benguela, Dandara, Akotirene e tantas outras mulheres negras da América Latina e do Caribe, vivendo na diáspora. Vieram rompendo o silêncio, o chicote, a violência, o genocídio e o feminicídio até os dias atuais. A mulheres negras, para além de serem a base da pirâmide social que construiu e constrói este país, somos também o fundamento da resistência desta sociedade, que constantemente quer nos calar, nos silenciar seja por bala, por Covid, pelo genocídio, pelo epistemicídio, pelo encarceramento em massa da população negra ou pelas inúmeras violências cotidianas contra negras, negros e indígenas. Violências que seguem sendo apoiadas, financiadas e administradas pelo Estado.
O resgate das vidas e experiências das mulheres negras na história do Brasil é fundamental na construção da libertação de quem esteve por séculos invisibilizado. É importante dizer que estas histórias estão ganhando corpo e visibilidade a partir das próprias mulheres negras, movimentos de mulheres negras, coletivos de mulheres negras, saraus, literatura, escritas poéticas, contos, danças, teatros, cordéis, mulheres negras intelectuais, cientistas, doutoras, pesquisadoras e uma infinidade de espaços que estão sendo ocupados, criados e fortalecidos por nós, mulheres negras.
Resgatamos a memória e luta de Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Dandara, Akotirene, Alta de Souza, Antunieta de Barros, Laudelina de Campos, Jovelina Perola Negra, Carolina Maria de Jesus e tantas outras. Saber que Tereza de Benguela não se calou e que seu sangue rega e nutre a luta de outras mulheres negras até os dias de hoje é o que nos faz esperançar. Fazemos valer a frase da querida ativista negra norte-americana, Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Marli de Fátima Aguiar é escritora-militante feminista negra, agente de defesa ambiental e educadora popular, cofundadora do Coletivo Flores de Baobá-Escritoras Negras e Coletivo Carolinas e Firminas, de São Paulo, Brasil.