Semear Berta Cáceres, suas resistências e revoluções

02/03/2022 |

Por Capire

“Estamos exigindo um feminismo que realmente desmonte todas as formas de dominação, disse Berta Cáceres

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Berta Cáceres foi uma líder indígena lenca fundamental para Honduras e para todo o continente americano. Coordenadora e cofundadora do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), Berta teve um papel valioso na construção das lutas anticapitalistas e patriarcais na defesa dos territórios e das comunidades.

Sempre ativa na luta, Berta enfrentou a perseguição política e o poder econômico das grandes empresas transnacionais interessadas nos territórios e bens comuns dos povos. Em 2 de março de 2016, Berta foi assassinada em sua casa por homens armados e desde então sua família e os movimentos sociais exigem justiça.

A luta por justiça continua

Em julho de 2021, o empresário David Castillo foi julgado e condenado por coordenar o assassinato de Berta. Na época, Castillo era presidente executivo da hidroelétrica Desarrollos Energéticos S.A. (DESA) e a empresa disputava o território do povo lenca com o objetivo de construir o projeto da represa Água Zarca, que afetaria todas as comunidades próximas ao rio Gualcarque.

Antes disso, em 2019, já tinham sido condenados pela justiça os militares que executaram o crime, Mariano Díaz Chávez e Douglas Bustillo. Mas o COPINH e a família Cáceres continuaram exigindo a investigação e o julgamento da família Atala, dona da DESA, cujos integrantes são apontados como autores intelectuais do crime.

Semear o legado de Berta

Devido a sua luta incessante, que permanece viva nas companheiras e companheiros, e seguirá nas próximas gerações, o COPINH convoca o dia 2 de março como o dia de semear Berta, um dia para recordá-la e cultivar suas sementes. Como diz uma canção do movimento hondurenho: “Berta não morreu, Berta não morreu, Berta se tornou milhões, Berta sou eu!”.

A contribuição do Capirepara esta data é, mais uma vez, alimentar as palavras de Berta para manter viva a sua memória. Em 2021, publicamos um vídeo e um áudio dela durante a 7ª Oficina Paradigmas Emancipatórios, em Havana, Cuba.

Neste ano, publicamos fragmentos do capítulo “A Resistência” do livro Las revoluciones de Berta, no qual a militante feminista argentina Claudia Korol reúne conversas com Berta Cáceres. A própria Berta, nessas páginas, afirmou o seguinte:

Para nós, a memória é muito importante e está, de forma transversal, em todo o pensamento dos nossos heróis independentistas, que lutaram na resistência ao colonialismo e pela fundação da República Centro-americana, mas também valorizamos a presença dos mártires da Resistência mais recentes. Porque a memória deles deve ser honrada. O exemplo deles deve estar sempre presente. Entregar a vida é algo muito profundo, é a maior coisa que pode entregar um ser humano (…) Nós sabemos que estamos mexendo com interesses muito poderosos e que, à medida que avançamos, a reação desses setores poderosos é cada vez mais agressiva. Então, por isso, o espírito deles e delas nos acompanha nessa esperança, iluminando e dando ânimo para seguirmos com muita força.

No livro, que está disponível para leitura gratuitamente [em espanhol], Berta fala sobre o processo de organização popular contra o golpe de Estado de 2009, sobre a fundação do COPINH e o desenvolvimento do feminismo entre os movimentos populares e sobre as múltiplas criminalizações vivenciadas pela defesa da terra. Finalizado postumamente, Las revoluciones de Berta apresenta uma conversa com Laura e Bertha Zúñiga Cáceres, filhas de Berta, e homenagens de companheiras e companheiros. Leia a seguir o fragmento de “La Resistencia”:

Las Revoluciones de Berta

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A solidariedade internacionalista

Um fator muito importante da nossa resistência é a solidariedade internacional. Queremos que o chamado de solidariedade com o nosso povo chegue aos movimentos sociais. Queremos recordá-los que essa situação não é só por Honduras, mas por todos os povos do mundo.

(…) É importante que as pessoas saibam de Honduras agora. Antes nossas lutas não eram conhecidas. Não existia um Comitê de Solidariedade a Honduras. Acreditava-se, inclusive, que éramos um povo pró-ianque. Nunca souberam que o povo de Honduras era uma base para a luta na América Central, para a luta da Nicarágua, de El Salvador, da Guatemala. Não somos um povo descartável e domesticado. E agora, sim, estamos recebendo uma grande solidariedade.

Quero aproveitar para agradecer a solidariedade dos povos do continente, e, em especial, a do povo cubano. Por exemplo, tentaram expulsar os médicos cubanos depois do golpe e nunca conseguiram. Os médicos cubanos são os que têm acompanhado o povo no que é mais essencial, em uma das situações mais difíceis que vivencia: a falta de atendimento na saúde pública, o abandono, a exclusão total. Existem áreas com mais de 50 mil habitantes e talvez um ou dois médicos. E quem são? As médicas e os médicos cubanos. Por isso Micheletti não se atreveu a expulsá-los do país, porque ele sabe que eles têm muita intimidade com a vida do povo hondurenho. E os médicos cubanos permaneceram em seus postos, apesar da ditadura ter cortado os fundos destinados pelo presidente Zelaya para a saúde. Eles têm resistido ao nosso lado, nos acompanham onde for preciso, mesmo ameaçados.

A luta antipatriarcal e feminista no COPINH

No começo do COPINH, nós não pensávamos em feminismos. Mas o que sempre esteve evidente para as companheiras é que tínhamos que lutar pelos direitos das mulheres por nós mesmas. Começamos a perceber que as mulheres do COPINH estavam participando das grandes discussões nacionais com os presidentes, com os conselhos de ministros, nos comitês de segurança, como auxiliares da prefeitura nas comunidades, que nós éramos as primeiras nas ocupações das indústrias exploradoras. Tinha muita força das mulheres indígenas. Isso possibilitou que, junto com algumas organizações feministas que têm um pensamento mais popular, nos aproximássemos e coordenássemos ações, por exemplo, para exigir a punição de estupradores e agressores de mulheres. (…)

Tivemos também um processo de denúncia constante, combinado a esse processo de educação popular e de trabalho concreto, em casos, por exemplo, de estupro e abuso sexual de crianças e mulheres, mulheres que foram vítimas de violência…Tivemos que lidar com casos terríveis e embora não contássemos com um profissional de direito, tivemos que enfrentar isso. E aprendemos com o processo de educação popular e da luta concreta.

Em Honduras não houve um processo feminista forte. Por muito tempo, foi algo elitista, distante da realidade das mulheres indígenas, negras, que estão lutando em seus territórios. Não estou dizendo que não havia feministas, mulheres valiosas. Mas esse grupo de elite não ultrapassou os próprios limites, não houve resultados para a vida das mulheres. Nós sentíamos, em muitos casos, a incompreensão de alguns grupos feministas que menosprezavam a questão indígena, e às vezes inclusive sentíamos um racismo bem evidente. Existe um desconhecimento da causa indígena ou negra e isso gerou tensões.

No debate interno do COPINH, sendo uma organização mista, fomos discutindo tanto o racismo quanto o machismo, e isso levou à nossa declaração como uma organização de luta antipatriarcal, antirracista, anticapitalista. Esse passo que demos foi uma alegria para as companheiras feministas, mas precisávamos saber melhor o que cada um estava fazendo. (…) Não sejamos ingênuas. Nós estamos exigindo um feminismo que realmente desmonte todas as formas de dominação, não um discurso maquiado ou demagogo, mas que desmonte concretamente e que enfrente essas formas de dominação de várias formas.

(…) Na atual Constituição Nacional, as mulheres não são mencionadas em nenhum momento. Estabelecer nossos direitos humanos, nossos direitos reprodutivos, sexuais, políticos, sociais e econômicos em uma Constituição é um grande passo para enfrentar um sistema de dominação como o patriarcal. É por isso que nós, mulheres, queremos ser protagonistas, contribuindo para o debate, que acredito que será um dos mais difíceis, pois temos que enfrentar os setores religiosos fundamentalistas e reacionários. É um desafio para as mulheres não permitir que outras e outros decidam pela maioria das mulheres pobres. Porque esta é também uma luta entre ricos e pobres, entre mulheres pobres e mulheres ricas, e isso está muito claro.

(…) O fato de ter e garantir o acesso das mulheres à terra, ao território, às culturas, à saúde, à educação, à arte, ao emprego digno – não apenas qualquer emprego, mas um digno e relevante para nós mulheres – e tantas outras coisas, são elementos que devemos garantir no processo de uma nova Constituinte, para dar prosseguimento a um processo de libertação.

O feminismo tem que ajudar a nós, mulheres, a continuar oferecendo essa contribuição de cores, de diversidade, de riqueza, onde realmente damos à luta outro sentido, um sentido de vida, de criatividade, de arte, e isso é o que mais dá força a esse movimento de resistência.

Redação por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Luiza Mançano

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