No Estado espanhol, as pessoas não têm acesso a moradia digna. Os salários não estão equiparados nem são proporcionais aos preços das moradias. Em 2008, devido à crise imobiliária que ocorreu, chamada de “bolha imobiliária”, os preços das moradias aumentaram, tanto para aluguel quanto para compra, sem que os salários aumentassem. A realidade agora é que o aluguel de uma casa para uma família equivale a três quartos do salário recebido. Se uma pessoa ganha 1100 euros, o chamado salário mínimo, muitas vezes 900 euros vão embora no aluguel. As famílias precisam de duas fontes de renda para sustentar seu dia a dia ou enfrentar situações muito complicadas. A crise habitacional também está relacionada à falta de oportunidades de emprego.
Atualmente, as pessoas sequer imaginam que um dia poderão comprar uma casa. É uma realidade diferente da das gerações passadas, onde havia a possibilidade, graças a melhores condições de trabalho, de progredir na escala social com a compra de uma casa. Para ter acesso a um aluguel, que é a realidade da maioria da população, é necessário ter um contrato de trabalho que não seja temporário e cumprir muitos requisitos inacessíveis. Para muitas pessoas, especialmente migrantes, é impossível conseguir um aluguel. Por isso, o que lhes é oferecido são coisas totalmente ofensivas e indignantes. Um exemplo é o de uma companheira de Bogotá, a quem ofereceram, por 250 euros, um quarto para uso apenas aos domingos. Era destinado a mulheres que trabalham realizando os cuidados de idosos ou crianças de outras pessoas e só têm os domingos livres para descansar.
Creio que é uma crise global, que se deve ao neoliberalismo. Já não é sequer a realidade dos reformistas capitalistas do início do século passado, que permitiam certas comodidades e auxílios sociais para evitar que o povo se revoltasse, ou seja, para evitar protestos. Na Catalunha, existem 350 mil casas vazias. Isso é especulação: os proprietários esperam enquanto a demanda aumenta e, devido à falta de oferta que eles mesmos geram, podem aumentar os preços das moradias.
Em um webinário realizado pela Marcha Mundial das Mulheres em 2023 sobre a crise habitacional ao redor do mundo, algumas companheiras falaram sobre as complexidades vivenciadas em cooperativas habitacionais que estão em mãos estatais, ou seja, que dependem da intervenção do Estado. No movimento de okupação da Catalunha, somos bastante afins com o pensamento libertário. Acreditamos na okupação, acreditamos que okupar os espaços nos permite viver coletivamente, e que essa coletividade nos permite trabalhar valores que se perdem na estrutura familiar. Fazer isso na Europa, porém, não é o mesmo que okupar e resistir na América do Sul e em outras partes do mundo.
Experiências de luta
Em uma cidade da Catalunha próxima a Barcelona chamada Manresa, existe uma organização muito potente chamada Plataforma de Afetados pelas Hipotecas (PAH), que se tornou conhecida inclusive pela trajetória política de Ada Colau, sua porta-voz, posteriormente eleita prefeita de Barcelona entre 2015 e 2023. Atualmente, em Manresa, há nove edifícios ocupados de construção recente, que são propriedade de fundos de investimento de alto risco (os chamados ‘fundos abutres’), como a Blackstone. Esses imóveis estão sendo oferecidos, por meio da ocupação dos mesmos, prioritariamente a famílias migrantes, geralmente vindas do norte da África. A PAH faz parte de uma rede de estruturas populares que abrange outras necessidades que deveriam ser responsabilidade do Estado. A organização popular é o que permite suprir certas carências.
Há também experiências importantes no norte europeu, onde as cooperativas de moradia existem desde os anos 1940-50, quando houve uma migração vinda do sul da Europa. Após a 2ª Guerra Mundial, o governo sueco demandou trabalhadores para exercer mão de obra barata. Nas cooperativas de moradia construídas por esses trabalhadores, uma pessoa não é dona de seu apartamento, mas sim de uma porcentagem do imóvel. As decisões são tomadas coletivamente, ainda que cada pessoa viva em sua casa. Assegurar uma moradia digna para todas é necessário, independente do lugar.
A participação das mulheres
Quando o trabalho da PAH começou, sobretudo as mulheres e a população migrante tomaram as ruas. Quando eram informadas de um despejo, as mulheres migrantes defendiam essas casas e as famílias inquilinas. Concentravam-se em frente às casas onde ocorreriam os despejos para impedir o acesso da polícia. É importante mencionar que os termos ‘despejo’ e ‘desalojo’ são diferentes, porque o primeiro acontece com alguém que foi inquilino, que pagou seu aluguel por algum tempo, mas não pôde manter o pagamento — aqui, contra elas, acontecem as ocupações com ‘C’ —, e o segundo é o que acontece com as okupações com ‘K’. Ambas situações são extremamente violentas.
Durante o mandato de Ada Colau como prefeita, foram realizadas mediações com o município, tentando, por exemplo, cobrir aluguéis para evitar que as famílias fossem expulsas de suas casas no mesmo dia. São famílias com crianças pequenas e sem alternativas. A administração e o serviço social disponibilizam um albergue por apenas duas semanas quando há crianças na família. Todas as mulheres têm uma grande responsabilidade, pois são as cuidadoras das famílias. Muitas vezes, estão sozinhas com seus filhos e, se vivem em uma situação de instabilidade, sem moradia ou renda, o Estado pode tirar seus filhos. É um perigo constante.
Diante dessa situação, o coletivo Soror, por exemplo, oferece apoio às mulheres migrantes, ajudando-as a aprender espanhol e abrindo um espaço seguro para que compartilhem suas experiências. Muitas são mulheres que não escolheram ocupar, que não o fazem por ideologia política, mas por necessidade. Uma jovem companheira de 25 anos, mãe de um bebê, disse uma vez: “Não durmo. Não durmo à noite. Não consigo dormir”. Ela tinha medo de que a Direção Geral de Assistência à Infância e Adolescência (DGAIA) retirasse a guarda de sua filha. Se as mulheres não têm um teto, tiram-lhes os filhos. Mas, se não têm emprego, não podem pagar o aluguel; se não têm documentos, não conseguem um emprego. É uma espiral de precariedade e vulnerabilidade na qual as mulheres sofrem mais do que os homens, porque são responsáveis por sua comunidade e pelos cuidados de todos.
Estou traduzindo um livro sobre o capitalismo do início do século XX intitulado The Capital Order, How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism, de uma autora estadunidense de origem italiana, Clara E. Mattei. Segundo essa obra, na Grã-Bretanha, após a 1ª Guerra Mundial, houve três anos de luta operária e conquista de direitos sociais — alguns, permitidos pelos reformistas que desejavam apaziguar as classes trabalhadoras. O interessante é que foi criada a Comissão de Moradia e, paralelamente, a Subcomissão de Moradia das Mulheres. As mulheres buscavam criar espaços comuns, locais de encontro ao ar livre. Isso foi planejado no papel por dois anos, sob a orientação e decisão das mulheres. Infelizmente, não se concretizou devido à chegada da austeridade na Grã-Bretanha, que correspondeu à chegada do fascismo na Itália.
Elas defendiam a criação de lavanderias comunitárias, cozinhas comunitárias, organização de vizinhança, hortas, janelas amplas, boa circulação de ar. As mulheres zelam pelo nosso bem-estar.
Em nossa atuação, seguindo um pensamento mais anarquista e libertário, não cabe a nós ter qualquer expectativa com o Estado. Nessa linha, buscamos uma autogestão verdadeira ou, pelo menos, uma tentativa genuína e concreta de autogestão. Isso significa tomar os espaços sem pedir permissão a ninguém. E, dentro desses espaços, sonhar com um mundo mais justo em voz alta com as demais companheiras.
Isadora Prieto vive na Catalunha, é intérprete e integra a Marcha Mundial das Mulheres no Estado espanhol.