Quando a pandemia surgiu, nós conseguimos, com a participação de diversas organizações e integrantes do Movimento Feminista do País Basco (Euskal Herria), criar uma coordenação para colocar o tema dos cuidados no centro da agenda. Estávamos diante de um momento crítico em pelo menos dois sentidos. Por um lado, existia um grande risco de que a Covid-19 acelerasse a crise dos cuidados que nós, feministas, já vínhamos denunciando. Por outro, tínhamos a oportunidade de interpelar as instituições e exigir transformações radicais no modelo de organização dos cuidados e, mais ainda, no sistema capitalista e patriarcal no qual vivemos. Além disso, enxergávamos que se tratava de um momento-chave para criar um ponto de inflexão na sociedade referente à conscientização em torno dos cuidados. Naquele momento, precisávamos criar alianças fortes e visíveis para “colocar o feminismo no enfrentamento à pandemia”.
Desde o início, a coordenação ambicionava levar às ruas e sedimentar tudo aquilo que estava sendo teorizado e amadurecido nos últimos anos dentro do movimento. Assim, em fevereiro de 2022, nós organizamos algumas jornadas. Nosso ponto de partida foi a valorização da genealogia feminista dos cuidados, tanto em seu marco como em suas práticas concretas.
Os cuidados são imprescindíveis para a sustentabilidade dos nossos corpos e das nossas comunidades, isso é, para manter e gerir a vida, o bem-estar e a saúde. O debate sobre o que são os cuidados e como queremos organizá-los é profundo e multifacetado. Temos certeza de que mudar a concepção e o modelo de cuidados supõe transformar a atual organização social. Assim, os cuidados configuram uma força motriz única para a transformação social, com um enorme potencial político.
No entanto, o atual regime de cuidados é injusto, desequilibrado e limitado. Para além dos contextos temporários e territoriais, somos nós, as mulheres, quem sustentamos a vida, e o fazemos de forma desigual, em condições de exploração e precarização. Com isso, nas posições privilegiadas (poderes políticos e econômicos, instituições públicas, empresas privadas, masculinidade, branquitude…) ocorre uma sistemática evasão da responsabilidade de cuidar. É por esse motivo que definimos os cuidados como algo situado e com uma estrutura dual, que demanda uma abordagem integral a partir de uma visão sistêmica.
Falamos sobre diversidade funcional, envelhecimento e infância. Mas queríamos ir além desses momentos e circunstâncias (aos quais uma certa visão limitada dos cuidados se concentra) para manter a coerência com o enfoque dos cuidados como algo que afeta todas as pessoas, todos os dias. E assim passamos também à reflexão sobre o que acontece com os cuidados ao longo da vida.
Fizemos um debate a partir de quatro caminhos estratégicos de transformação: coletivizar, revalorizar, profissionalizar e avançar em um modelo de cuidados emancipador. Por fim, colocamos a necessidade de um ciclo de mobilizações com uma agenda comum. A partir desse conteúdo, das reivindicações e da agenda estratégica comum, criamos um dossiê que foi publicado para que pudéssemos usar como referência em assembleias feministas realizadas nos territórios.
Após o encontro, realizado no segundo semestre de 2022, organizamos assembleias abertas nos territórios, nas quais afirmamos que precisávamos chegar a um acordo sobre cuidados, colocando em pauta a proposta de uma greve geral feminista para socializá-lo. Assim, apresentamos a dinâmica “Denon Bizitzak Erdigunean” (“todas as vidas no centro”, em basco) em fevereiro de 2023, descrevendo-a como um processo de médio e longo prazo com o intuito de promover uma transição social no País Basco.
Nosso objetivo é formar um acordo nacional, um acordo social. Para isso, estamos criando alianças e apoios, buscando a colaboração dos organizações sociais e sindicais do País Basco para que se juntem ao processo e, assim, possam fazer parte desse acordo. Exigimos um direito coletivo ao cuidado. Estamos comprometidas em garantir o direito de todas as pessoas, ao longo de toda a vida, de dar e receber cuidados em condições dignas e com base no compromisso. Isso vai muito além das situações de dependência e implica a capacidade de decidir quanto, como e de quem queremos cuidar e, da mesma forma, como e por quem queremos ser cuidados, entendendo esse direito de forma coletiva e não individualizada.
Em 23 de abril de 2023, mais de 200 companheiras se reuniram em uma assembleia nacional, com representantes de feministas de diferentes partes do País Basco. Continuamos tomando decisões e definindo o caminho que devemos seguir. Estamos somando contribuições para chegar a um acordo entre todas nós e, com isso, fazê-lo chegar aos governos basco e navarro (o País Basco está institucionalmente dividido). O guarda-chuva desse acordo será o direito coletivo ao cuidado. Com essas reivindicações, vamos convocar uma greve geral feminista nesse outono-inverno para garantir que nossas reivindicações sejam ouvidas.
Queremos realmente concretizar essas reivindicações, queremos criar pactos. Para isso, serão organizadas mesas de negociação com diferentes organizações feministas, para que elas se reúnam com os agentes políticos envolvidos na disputa. Passo a passo, vamos identificando as urgências e as mudanças institucionais, sempre tendo como horizonte o acordo social por um sistema de cuidados público e comunitário basco.
Ao longo desse caminho, vamos trazer para o debate não apenas as instituições, mas também as pessoas que têm o privilégio de não precisar cuidar. Será imprescindível garantir a liderança do movimento feminista durante todo o processo. As alianças e intersecções de lutas é que nos tornarão mais fortes.
Ainhoa Olaso Sopela nasceu em 1996 e é militante do movimento feminista do País Basco.