Em busca da memória perdida: as origens do Dia Internacional das Mulheres

08/03/2022 |

Por Maria Lúcia da Silveira e SOF

Memória, organização internacional e revolução: conheça a história do 8 de março, um dia internacional de luta proposto pelas mulheres socialistas

1917, Petrograd. Fototeca Storica Nazionale

A principal referência histórica das origens do Dia Internacional das Mulheres é a 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas realizada em 1910, em Copenhague, na Dinamarca. Nesse momento, a dirigente socialista alemã Clara Zetkin e outras militantes apresentaram uma resolução com a proposta de instituir oficialmente um dia internacional das mulheres, seguindo o exemplo das socialistas dos Estados Unidos.

A partir daí, as comemorações começaram a ter um caráter internacional, expandindo‐se pela Europa, a partir da organização e iniciativa das mulheres socialistas. Essa resolução e outras fontes históricas instigaram a pesquisadora Renée Côté a buscar os elos perdidos da história do Dia Internacional das Mulheres. Outras pesquisadoras também se dedicaram a desvendar essa história.

A pesquisa das fontes históricas do período (jornais da época, a imprensa socialista e documentos do movimento de mulheres) evidencia que a criação do Dia Internacional de Luta das Mulheres é resultado da articulação internacional das socialistas, e que a definição posterior do 8 de março para esse dia de luta foi motivada pela mobilização das mulheres que desencadeou a Revolução Russa. Nas fontes históricas, não se encontrou qualquer registro que fizesse referência a um incêndio que levasse um grande número de mulheres à morte e que fosse motivação para a criação de um dia das mulheres.

As socialistas se organizam nos Estados Unidos

É fato que houve greves e repressões de trabalhadores e trabalhadoras no período que vai do final do século XIX até a primeira década do século XX. Mas nenhum desses eventos, até então, diziam respeito à origem de um dia de luta das mulheres. Tais buscas revelam, para Côté, que não houve uma greve heroica, seja em 1857 ou em 1908, especificamente vinculada à proposta de um dia de luta das mulheres, mas um feminismo heroico que lutava por se firmar entre as trabalhadoras americanas. As mulheres socialistas norte‐americanas, organizadas, começaram a celebrar um dia de luta das mulheres, a partir de 1908.

As fontes históricas encontradas revelam o seguinte: em 3 maio de 1908 em Chicago, nos Estados Unidos, se comemorou o primeiro Woman’s day [Dia da Mulher], presidido por Corinne S. Brown, no Garrick Theather, com a participação de 1500 mulheres que “aplaudiram as reivindicações por igualdade econômica e política das mulheres no dia consagrado à causa das trabalhadoras”, conforme documentado pelo jornal mensal The Socialist Woman. Enfim, foi dedicado à causa das operárias, denunciando a exploração e a opressão das mulheres, e defendeu, com destaque, o voto feminino. Defendeu‐se a igualdade dos sexos, a autonomia das mulheres, o direito de voto para as mulheres, dentro e fora do partido. Já em 1909, o Woman’s Day foi atividade oficial do partido socialista americano e organizado pelo comitê nacional de mulheres, comemorado em 28 de fevereiro de 1909. O material de publicidade da época convocava o Woman suffrage meeting, ou seja, um encontro em defesa do voto das mulheres, em Nova York.

Renée Coté apura que as socialistas americanas sugerem um dia de comemorações no último domingo de fevereiro. Assim, o Woman’s Day nos Estados Unidos poderia ser em diferentes datas, e foi ganhando a adesão das mulheres trabalhadoras, inclusive grevistas, com participação crescente.

Em 1910, os jornais noticiaram a comemoração do Woman’s Day em Nova York em 27 de fevereiro, com três mil mulheres no Carnegie Hall, onde se reuniram as principais associações em favor do sufrágio. O encontro foi convocado pelas militantes socialistas, mas contou também com participação de mulheres não socialistas. Várias operárias do setor têxtil participaram dessa comemoração. Elas haviam realizado uma longa greve, que durou de novembro de 1909 a fevereiro de 1910, terminando doze dias antes do Woman’s Day.

Essa foi a primeira greve de mulheres de grande amplitude nos Estados Unidos: denunciou as condições de vida e trabalho, demonstrou a coragem das mulheres costureiras e recebeu apoio massivo do movimento sindical e do movimento socialista. Muitas dessas operárias participaram do Woman’s Day e engrossaram a luta pelo direito ao voto das mulheres –conquistado em 1920 nos Estados Unidos –, mas, como se pôde ver, não foi a greve que motivou a criação do Woman’s Day.

Um dia internacional de luta: proposta das mulheres socialistas

Em agosto do mesmo ano, durante a 2ª Conferência de Mulheres Socialistas, Clara Zetkin propôs junto com outras militantes que o Woman’s Day ou Women’s Day se tornasse “uma jornada especial, uma comemoração anual de mulheres, seguindo o exemplo das companheiras americanas”, sem a indicação de uma data específica. Aprova‐se, assim, um Dia Internacional das Mulheres, para ser organizado em todos os países, com a reivindicação central do direito de voto para as mulheres.

A proposição foi divulgada no jornal alemão A igualdade, de 28 de agosto de 1910. As socialistas europeias coordenavam as comemorações do Dia Internacional das Mulheres em torno do direito ao voto, vinculando‐o à emancipação política das mulheres, mas a data específica era decidida em cada país.

Em 1911, o Dia Internacional das Mulheres foi celebrado em diferentes datas: na Alemanha em 19 de março, na Suécia junto com o primeiro de maio. Na Rússia, em 1913, sob o regime czarista, foi realizado o primeiro Dia Internacional das Trabalhadoras pelo Sufrágio Feminino. As operárias e militantes socialistas russas participaram do Dia Internacional das Mulheres em Petrogrado e foram reprimidas. Em 1914, as principais organizadoras do Dia Internacional das Mulheres na Rússia estavam presas, o que tornou impossível uma comemoração com manifestação pública.

Já na Alemanha, em 1914, o Dia Internacional das Mulheres foi dedicado ao direito ao voto para as mulheres e foi comemorado no dia 8 de março. Ao que consta, esta foi uma data mais prática naquele ano. Em tempos de guerra, as comemorações do Dia Internacional das Mulheres foram mais frágeis e esparsas em toda a Europa e o aluta contra a guerra ganhou espaço na agenda das mulheres.

A revolução russa e o 8 de março como dia de luta

Em fevereiro de 1917, na Rússia, mobilizações de mulheres tomaram as ruas de Petrogrado. Eram manifestações contra a guerra, a fome e a escassez de alimentos. Ao mesmo tempo, operárias do setor têxtil entraram em greve. Era dia 23 de fevereiro no antigo calendário ortodoxo (que corresponde ao dia 8 de março no calendário gregoriano) quando elas comemoraram o Dia Internacional das Mulheres na Rússia naquele ano.

Essas manifestações cresceram, envolveram outros grupos e duraram vários dias. A mobilização de mulheres precipitou as mobilizações que tornaram vitoriosa a revolução russa.

Alexandra Kollontai, dirigente socialista feminista da Revolução Russa, escreveu sobre o fato e sobre o 8 de março. Diz ela: “o dia das trabalhadoras em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro, no antigo calendário) foi uma data memorável na história (…). A revolução de fevereiro começou nesse dia”.

Esse fato também é mencionado por Leon Trotsky, dirigente da revolução, em A história da  Revolução Russa. Trotsky conta que, para o Dia Internacional da Mulher, estavam programados atos e encontros. Mas não se podia imaginar “que o Dia da Mulher pudesse inaugurar a revolução”. Estavam sendo pensadas ações revolucionárias, sem data prevista. Mas, pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixaram o trabalho de várias fábricas e enviaram delegadas para solicitar o apoio à greve, “o que se transforma em greve de massas… Todas descem às ruas”.

Nessas narrativas fica evidente que as mulheres desencadearam as mobilizações e a greve geral, saindo corajosamente às ruas de Petrogrado no Dia Internacional das Mulheres contra a fome, a guerra e o czarismo. A revolução foi desencadeada por militantes de base que superaram os temores das direções. A iniciativa coube, em especial, às operárias têxteis, as mais exploradas e oprimidas. O número de grevistas foi em torno de 90 mil, a maioria mulheres.

Renée Côté menciona, por fim, documentos de 1921 da Conferência Internacional das Mulheres Comunistas onde “uma camarada búlgara propõe o 8 de março como data oficial do Dia Internacional da Mulher, lembrando a iniciativa das mulheres russas”.

Assim, a partir de 1922, o Dia Internacional da Mulher passou a ser celebrado oficialmente no dia 8 de março em todo o mundo.

Essa história das mulheres trabalhadoras se perdeu nos grandes registros históricos, seja do movimento socialista, seja dos historiadores do período. Faz parte do passado histórico e político das mulheres e do movimento feminista de origem socialista no começo do século XX.

Recuperar, retomar e recontar a história do Dia Internacional das Mulheres é, também, reafirmar a história das lutas das mulheres inserida na luta pela transformação geral da sociedade. É recompor um pedaço da história do feminismo que se apresenta como um elo indispensável entre a luta das mulheres e a luta socialista.

Desencontros, mitos e fantasias

Quantas vezes não ouvimos contar que o Dia Internacional da Mulher foi criado em homenagem a operárias têxteis mortas em um incêndio em 1857, em Nova York. Ou talvez em 1908 ou 1910. Ou mesmo que a comemoração, decidida em 1910 na Conferência de Mulheres Socialistas, escolheu o dia 8 de março para lembrar o incêndio. Como vimos acima, a criação do Dia Internacional das Mulheres não tem vinculação com o incêndio ocorrido nos Estados Unidos.

Em 25 de março de 1911, ocorreu um incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist em Nova Iorque, no qual morreu mais de uma centena de trabalhadoras e trabalhadores têxteis, em sua imensa maioria mulheres. Foi um evento trágico para a história das pessoas trabalhadoras nos Estados Unidos. Nessa data, entretanto, as militantes socialistas já haviam aprovado a organização anual de um Dia Internacional das Mulheres.

Ao misturar, contar e recontar histórias relacionando o 8 de março ao incêndio, a história política das militantes socialistas organizadas internacionalmente foi escondida. Recuperar os elos perdidos dos fatos e da história enriquece a luta das mulheres socialistas hoje. O ciclo de lutas de uma era de grandes transformações sociais até as primeiras décadas do século XX tornou o Dia Internacional das Mulheres o símbolo da participação ativa das mulheres para transformarem suas vidas e a sociedade.

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Esse texto é uma versão do artigo publicado pela SOF Sempreviva Organização Feminista na ocasião dos 100 anos do dia internacional de luta das mulheres. O artigo foi redigido por Maria Lúcia da Silveira e pela equipe da SOF.

Edição por Tica Moreno e Helena Zelic

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