Yasmeen El-Hasan é diretora de Mobilização de Defesa e Comunidade na União de Comitês de Trabalho Agrícola [Union of Agricultural Work Committees – UAWC]. Ela cresceu nos Estados Unidos e voltou recentemente à Palestina – “nossa casa é sempre nossa casa, e eu queria voltar para casa”, diz ela.
Em entrevista concedida ao Capire, Yasmeen compartilhou suas preocupações com a prática imperialista de criminalizar as lutas e também falou sobre suas ideias a respeito das resistências diárias das mulheres e da juventude. A UAWC foi uma das seis organizações políticas atacadas e criminalizadas por Israel em 2021 como terroristas. Essa ofensiva exigiu e ainda exige a solidariedade dos movimentos do mundo todo. Para Yasmeen, “o que há de mais gratificante é ser capaz de trabalhar para proteger nossa terra e nossa comunidade”.
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Yasmeen, você poderia contar para a gente como aconteceu a classificação terrorista contra a UAWC? Qual é a situação hoje?
Para dar um contexto, Israel classificou legalmente a UAWC e outras organizações de defesa dos direitos humanos na Palestina como organizações terroristas, conforme a lei israelense. Israel é uma colônia de povoamento. O principal objetivo do colonialismo de povoamento é eliminar ou expulsar a população indígena e substituí-la por uma população de colonos. Para isso, eles precisam de terras. Então a base do colonialismo de povoamento é o roubo, ou seja, a desapropriação das terras dos povos indígenas – nesse caso, nós, os palestinos. Qualquer organização, pessoa ou movimento que impõe resistência contra isso ou que tenta combater a opressão do colonialismo ou a desapropriação de seus direitos, de sua terra e de seus recursos é uma ameaça direta à entidade colonizadora. Assim, as organizações da sociedade civil que vêm trabalhando há décadas para defender os direitos palestinos e proteger nossas liberdades são, para Israel, uma ameaça à sua existência.
Enquanto organizações palestinas, estamos trabalhando diretamente para defender e nos organizar por nossas liberdades, o que, portanto, significa opor-se à ocupação israelense. Por conta disso, para a ocupação, nós somos uma pedra no caminho. Em resposta, eles nos declararam organizações terroristas. Em 19 de outubro de 2021, Israel designou seis organizações palestinas da sociedade civil como sendo organizações terroristas: a UAWC, a organização de defesa dos direitos humanos Al-Haq, o centro de pesquisa e desenvolvimento Bisan, a associação de direitos humanos e apoio a pessoas presas Addameer, o comitê palestino da organização internacional Defesa das Crianças [Defense for Children] e a União de Comitês de Mulheres Palestinas [Union of Palestinian Women’s Committees]. Todas essas são excelentes organizações palestinas da sociedade civil que fazem um trabalho incrível para a comunidade. Todas elas são de base popular, além de ter legitimidade internacional. Depois disso, foi colocada em movimento uma campanha intensa de solidariedade internacional contra essa classificação. Inúmeros órgãos e organizações internacionais, figuras políticas e movimentos populares se manifestaram condenando a classificação. Essas manifestações vieram inclusive das Nações Unidas, da União Europeia, da Observatório de Direitos Humanos [Human Rights Watch] e da Anistia Internacional. A União Europeia convocou governos para retomarem o financiamento das seis organizações classificadas como terroristas e, em julho de 2022, nove países europeus emitiram uma declaração conjunta afirmando que a classificação não tem embasamento e que eles continuarão a trabalhar em parceria com essas organizações.
Segundo Israel, a classificação se baseou em fluxos financeiros. Essa alegação foi derrubada diversas vezes por auditorias rigorosas conduzidas na UAWC, principalmente pelos governos australiano e holandês. Ainda assim, embora todas as investigações tenham comprovado que a classificação é falsa, sem fundamento e sem qualquer base factual, ela nos afetou e prejudicou o financiamento que recebemos. Embora nossa classificação como terroristas e a criminalização da sociedade civil palestina sejam uma manobra muito óbvia, uma jogada política performática e comprovadamente falsa, ela se insere numa tática do medo. Infelizmente, para algumas organizações, no contexto internacional, ela funcionou. Por conta disso, alguns fundos foram interrompidos mesmo depois de as investigações terem comprovado a falta de embasamento.
Isso tudo dificultou bastante nossa situação. Mas nossa comunidade, nossas parcerias e alianças solidárias do mundo todo que ficaram do nosso lado em meio a tudo isso nos fortalecem e motivam. Sabemos que o que fazemos é uma luta pela liberdade e pela terra. Claro, ainda assim a situação é difícil. Ainda somos, legalmente, segundo o governo israelense, terroristas. Os militares israelenses invadiram as sedes das seis organizações em Ramallah, em agosto de 2022. Na UAWC, eles destruíram e roubaram nossos aparelhos eletrônicos, reviraram toda a nossa sede, lacraram as portas e deixaram um mandado militar declarando que não temos autorização para continuar nosso trabalho. Isso também gerou uma resposta internacional significativa em defesa da sociedade civil palestina.
Só para dar um pouco mais de contexto, a UAWC trabalha para apoiar, defender e proteger pequenos agricultores palestinos e seus direitos à terra. Fazemos isso desde 1986, promovendo a estabilidade dos agricultores e agricultoras e seu acesso e soberania sobre recursos naturais em vista da situação socioeconômica de vulnerabilidade que resulta da ocupação israelense e da exploração da terra e da água da Palestina. É importante observar que nosso trabalho com a terra não é abstrato, é muito concreto. As comunidades palestinas são enraizadas na terra. Estamos entrelaçados com nosso ecossistema. Não digo isso como uma metáfora ou para ser poética, mas de forma bem literal: as comunidades palestinas são fisicamente enraizadas na terra. Quando nossa terra é atacada, esse ataque não atinge somente a economia, por exemplo, ou o PIB. Esse não é o maior problema. Esses ataques são à nossa existência e ao nosso meio de subsistência.
A UAWC trabalha para proteger isso. Nosso trabalho inclui a recuperação e a regeneração da terra, a instalação de tubulações de irrigação, a construção de estradas agrícolas, a criação de projetos de geração de renda para pessoas jovens e mulheres, o estabelecimento de um banco de sementes para proteger as variedades de sementes nativas e facilitar sua distribuição para pequenos produtores locais e a troca e a transmissão de conhecimento, entre muitas outras ações. Mas esse tipo de trabalho, que é um trabalho concreto com a terra, apavora o invasor. Nós continuamos nosso trabalho. É um trabalho difícil, e nossa capacidade com certeza foi afetada, mas, apesar disso, nosso compromisso será sempre com a comunidade. Isso significa que, não importa quão desafiador possa ser, vamos continuar trabalhando para proteger e defender os pequenos agricultores, os camponeses e as comunidades rurais.
Como você vê a realidade das mulheres nessas comunidades?
As mulheres são a fundação da sociedade palestina. As mulheres são o coração da nossa luta. Há um dito islâmico [hadith] bastante arraigado em nossa cultura, que diz que o paraíso se estende abaixo dos pés das nossas mães. Nossas mães estão nas linhas de frente, de forma visível ou não. Como organização, nós apoiamos as mulheres o máximo possível. A UAWC apoia diversas cooperativas de mulheres; temos também programas que oferecem suporte à produção de artesanato das mulheres, aos produtos de suas safras, recursos, tudo o que elas cultivam em sua terra.
As comunidades rurais não funcionam sem as mulheres. Elas fazem muito trabalho invisibilizado, especialmente porque a agricultura é vista como um setor “econômico”: o foco está nos números, no dinheiro. As mulheres normalmente não são visíveis no aspecto econômico das comunidades rurais, já que elas não costumam estar à frente da contribuição da agricultura para o PIB.
Além desse trabalho que sabemos ser invisibilizado, elas são essenciais ao funcionamento das fazendas familiares. As mulheres são essenciais à manutenção e à produção contínua de recursos naturais. Elas são também com muita frequência as mantenedoras da tradição oral e da história transmitida oralmente. Um matemático e acadêmico palestino chamado Munir Fasheh certa vez falava à sua mãe sobre “um mais um”. Ele disse: “um mais um é igual a dois”, ao que sua mãe disse: “não, um mais um pode ser um”. Ela estava dizendo: “se você tem uma gota d’água e acrescenta outra gota d’água à primeira, vai continuar havendo uma gota, porque, juntas, elas não são mais entidades separadas”. Esse exemplo me marcou muito como uma forma de ilustrar jeitos diferentes de pensar que não se conformam ao pensamento hegemônico focado nos números da economia, da especulação financeira, dos ciclos e sistemas neoliberais. Geralmente, são as mulheres que exercem esse papel fundamental em nossas comunidades que nos permite continuar mantendo esses métodos de pensamento e conhecimentos embasados na terra e na comunidade.
O conhecimento mais rico que tenho sobre a terra foi passado para mim pela minha linhagem materna. Aprendi sobre a terra com as minhas avós. Nenhuma delas trabalhou formalmente numa fazenda, mas elas cresceram em comunidades rurais e cuidavam da terra e cultivavam muitas das frutas, legumes e hortaliças que comíamos. Com elas, aprendi a cuidar da nossa terra. Com a minha mãe, que cresceu em uma comunidade rural e hoje vive a um oceano de distância de sua terra natal, aprendi o que significa se relacionar com a terra como uma mulher palestina. Juntas, elas me ensinaram o significado de estar enraizada. Elas me ensinaram não apenas o que posso obter da terra, mas também o que posso dar à terra. Não é um relacionamento transacional. É simbiótico. É recíproco. Com as figuras maternas da minha vida, aprendi o que é lar e quais são as responsabilidades que isso traz.
Li uma vez um artigo sobre como as mulheres palestinas não estão na linha de frente da revolução nem são ativas na luta por nossos direitos. Foi quase cômico de tão falso, porque essa forma de pensar, especialmente no norte global, não leva em consideração todas as esferas de participação. Por exemplo, as mulheres nem sempre aparecem nas fotos que você vê de pessoas atirando pedras quando seus vilarejos são invadidos. Mas quando o gás lacrimogênio é lançado, duas formas de lidar com ele são usar cebola, porque ela estimula as lágrimas que limpam as toxinas, ou cheirar lenços com perfume. As mulheres normalmente estão dando muito suporte à resistência.
O discurso sobre isso no norte global costuma ser muito heteropatriarcal e hiperfocado no que esse discurso considera demonstrações visuais de agressão masculina, ao invés de reconhecer de forma holística todas as formas pelas quais as mulheres, e os homens também, estão resistindo na Palestina. Mas as mulheres palestinas fazem tudo isso, em todas as frentes. Uma frase repetida com frequência no contexto palestino diz: “existir é resistir”. E uma palavra árabe que descreve o povo palestino é “sumud” (صمود), que significa “firmeza”. Uma das formas pelas quais as mulheres palestinas e todos os palestinos resistem é sendo firmes, existindo e mantendo sua conexão com nossa terra.
Como as pessoas jovens estão envolvidas no movimento? Como elas estão lidando com o imperialismo no dia a dia?
A situação econômica e política está ficando cada vez pior. Há cinco minutos, conferi meu celular e vi que aconteceu outra invasão de colonizadores em Huwara, uma vila nos arredores de Nablus. Vários palestinos já foram hospitalizados.
Muitas coisas são realmente desanimadoras. Mas uma coisa que nunca deixa de me trazer esperança são os meus companheiros, a juventude palestina. A forma como os meus companheiros têm se organizado, especialmente nos últimos dois anos, tem me inspirado muito. Tivemos, por exemplo, a Intifada da Unidade [Unity Intifada] em maio de 2021, organizada principalmente pelos jovens. Encontramos novas formas de resistir. Muitos de nós não estávamos aqui durante a Primeira e a Segunda Intifadas e temos apenas lembranças vagas e histórias que nos contaram sobre elas.
As formas de resistência da juventude palestina são incríveis e se baseiam na união. Existe um só lar, somos um só povo e é isso o que orienta nossa luta. Somos as e os indígenas desta terra. Isso significa que somos seus cuidadores. É nossa responsabilidade proteger a terra. Alguns disseram: “eles matam pela terra, nós vivemos para protegê-la”. Vemos muito isso agora, especialmente entre os jovens palestinos. Só neste ano, perdi a conta de quantos palestinos foram mortos. Se você for ver a idade deles, tantos eram jovens, nos seus vinte anos, e tantos deles eram ainda crianças. É de cortar o coração. Nós rememoramos nossos mártires.
Também gostaria de tomar um momento para falar da diáspora. Os palestinos dentro da Palestina, dentro da Cisjordânia, em 1948 (que é como chamamos as partes da Palestina tomadas por Israel em 1948), em Gaza… Em toda essa região, quem está conduzindo a evolução da mudança social e política é a resistência da juventude. Mas, além disso, ela é complementada pela união da diáspora palestina. Isso foi possível principalmente durante a Intifada da Unidade. Vimos palestinos no mundo todo, não só na Palestina: nos acampamentos de refugiados e no exílio, no Líbano, na Jordânia, na diáspora, nos Estados Unidos, na América Latina, na Europa – palestinos no mundo todo. Eu estava morando nos Estados Unidos na época, e nunca senti uma união tão grande entre as pessoas em diáspora.
O Movimento da Juventude Palestina [Palestinian Youth Movement — PYM], que é um movimento transnacional da juventude palestina e árabe, é uma rede incrivelmente forte. Eles trabalham a partir da diáspora para se organizar pela libertação da Palestina. Particularmente nos últimos anos, e com o avanço da tecnologia e tudo o mais, conseguimos ver os palestinos de fora e os de dentro complementando-se, lutando e trabalhando em conjunto. A juventude palestina não é só o futuro, mas o presente também.
Nós, que somos jovens hoje, não estávamos aqui quando nosso lar foi colonizado. Nossos avós estavam aqui na época da Nakba em 1948, e também em 1967, quando aconteceu a Naksa e a Guerra dos Seis Dias. Nossos pais viveram a Primeira Intifada. Éramos muito jovens durante a Segunda Intifada. Não conhecemos nada além disso. Algumas das minhas lembranças mais antigas são soldados israelenses parando as pessoas nos postos de verificação com armas apontadas para nossas cabeças. Mas mesmo que isso seja tudo o que você conhece, mesmo quando criança, você se recusa a aceitar isso como normal. Por que esse é nosso status quo? Você se dá conta disso muito rápido, de que isso não é normal. Isso não deveria ser normal. Não está certo. E por isso a juventude se levanta contra isso. E é inspirador.