Sehjo Singh faz parte da Confluência de Alternativas (em hindi, Vikalp Sangam), uma articulação de organizações e movimentos em defesa da natureza, das comunidades e da soberania alimentar na Índia. Sehjo concedeu esta entrevista durante o 13.º Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, em Ancara, na Turquia. No Encontro, foi expressiva a presença de delegações vindas de países asiáticos, entre militantes do movimento e de organizações aliadas.
Na ocasião, Capire conversou com Sehjo sobre a história da construção do feminismo na Índia e sobre as atuais resistências e alternativas propostas pelas mulheres da região. Segundo Sehjo, os enfrentamentos antipatriarcais passam pela crítica ao sistema de castas e pela luta pela terra, partindo da realidade e das necessidades das mulheres populares. Para ela, a primeira batalha a ser travada é a de reconhecer a centralidade das mulheres agricultoras na produção de alimentos e na garantia da biodiversidade: “Não é que as mulheres contribuem — eu diria que são ‘as mulheres que sustentam’”.
Primeiro, você poderia se apresentar e contar sobre sua trajetória política?
Eu tive a sorte de ter uma criação com pais que faziam parte de uma coisa chamada movimento sufi na Índia, então tive uma criação bem progressista. Cresci depois do surgimento e da ascensão de movimentos fortes de esquerda no país, então, para mim, foi natural ter uma visão que vai mais além e um desejo de vida orientado pela justiça. Essas foram as principais circunstâncias responsáveis pela pessoa que sou.
Quando eu ainda estava na faculdade, houve um grande avanço do movimento por direitos humanos e do movimento pelos direitos das mulheres. Dos direitos humanos, por causa da experiência de supressão de direitos que nosso país tinha. E dos direitos das mulheres, provavelmente pelo momento em que aconteceu: na década de 1970, quando se publicaram muitas notícias e estudos sobre direitos das mulheres pelo mundo. Foi algo que de fato uniu muitas mulheres na Índia. Claro, eram inicialmente as mulheres privilegiadas, mas a própria perspectiva delas nasceu para se conectar com os movimentos populares.
É interessante que uma das primeiras mobilizações de mulheres do país foi sobre ecologia. Chamava-se “Movimento Chipko”. “Chipko” significa abraçar, fincar, e o movimento abraçava árvores em um vale da Cordilheira do Himalaia para impedir o desmatamento. Mais tarde, houve movimentos e leis relacionados ao direito das mulheres à propriedade, para mudar a forma como a justiça tratava o estupro… Muitas leis mudaram, mas também houve muita mobilização nos territórios.
Foi uma época em que as mulheres ainda eram espancadas e até mortas por uma coisa chamada “dote”. É um conceito muito estranho dentro das sociedades de castas hindus. Significa que, se você dá sua filha a alguém, você também precisa pagar uma indenização, o que é muito contraintuitivo e ilógico. É como se a mulher fosse um fardo que está sendo transferido, com uma expectativa que não pode ser atendida. Nessa época, isso começou a vir a público e a mídia começou a noticiar sobre o assunto. Eu lembro que, ainda menina, eu ia junto com outras meninas até a casa de pessoas que tinham exigido dote e pintava a cerca ou a casa de preto.
Há uma conexão profunda entre feminismo e ecologia. A desigualdade e a injustiça começam em casa. É nela que estabelecemos as bases de como os seres humanos podem tratar se tratar de forma desigual, como os seres humanos podem oprimir uns aos outros. O patriarcado é um sistema de que todo mundo participa. Na Índia, sobre o patriarcado repousa a coisa mais genial e perversa que se poderia conceber: o sistema de castas, que se recusa a desaparecer.
O sistema de castas precisa do patriarcado para se manter forte.
Sehjo Singh
Se as mulheres tivessem suas próprias escolhas e direitos, rapidamente se demoliriam as castas, porque as mulheres casariam, amariam e se reproduziriam da forma como escolhessem — coisa que o sistema de castas não pode admitir. O tratamento entre seres humanos tem ligações profundas com a forma como as pessoas tratam a natureza.
Como é a participação das mulheres nos movimentos agroecológicos e pela proteção das florestas? Quais as contribuições das mulheres nesses processos?
Eu diria de outra forma: não é que “as mulheres contribuem” — eu diria que são “as mulheres que sustentam”. As mulheres são pequenas agricultoras, são as pessoas que ficam em casa quando os homens migram. São as mulheres que cuidam e cultivam. E não são só as mulheres — são as mulheres mais pobres.
São as mulheres mais pobres, com menos privilégios, que de fato sustentam e defendem a agroecologia.
Sehjo Singh
São mulheres agricultoras com todo tipo de talento. A existência tanto de adivasis (povo originário da Índia) quanto de dálites (termo para “intocáveis”) é o que de fato garante a defesa das florestas, o resgate das sementes e a cooperação que toda agricultura natural necessita.
Cada vez mais, tudo acaba entrando no setor comercial. Quando a agricultura orgânica se torna uma proposta da elite, outra pessoa é creditada pelo trabalho das mulheres. O padrão dessas mulheres já é a agricultura orgânica. O mais importante para as mulheres é e deve ser seu reconhecimento como agricultoras. Essa é a primeira batalha: a luta pela ideia de que a mulher é agricultora. O conceito patriarcal é de que a mulher pertence à família agricultora e seu trabalho faz parte da família. Ela é a chefe da família e sequer recebe por isso.
Essa é uma batalha não só com o governo, com a academia, com pesquisadores, pessoas que contam estatísticas, e nem mesmo só com as próprias mulheres. O termo “mulher agricultora” se tornou conhecido. Eu lembro de ter dificuldade com esse termo no início dos anos 1990 e ninguém o conhecia. Na época, a internet era uma novidade. Eu queria montar um site para mulheres agricultoras, e ninguém entendia do que eu estava falando.
Vamos falar da luta feminista hoje na Índia. Qual é o papel das mulheres nas imensas mobilizações políticas da atualidade?
É muito interessante ver que a mobilização das mulheres hoje não está acontecendo com pessoas que “conhecem os termos”. Não são a “classe descolada”. Vou dar um exemplo: a mobilização recente mais impressionante foi feita por mulheres esportistas da Índia que tinham sofrido abuso e assédio sexual pelo presidente da Federação de Luta Livre. Ele tinha conexões políticas profundas e, no judiciário, ninguém podia fazer nada a respeito dele. Então essas mulheres foram às ruas falar de assédio sexual. Não são mulheres com uma criação que permitiria falar sobre essas coisas, mas elas conseguiram tratar do assunto. Isso também se reflete hoje na mídia, pois não é possível mais ignorar os problemas das mulheres dessa forma.
No entanto, o clima geral não é propício para os direitos de ninguém. Há uma preocupação profunda com as narrativas de “mulheres como deusas”, “mulheres em um pedestal”, “mulheres que devem ser veneradas” em contraste com “mulheres como iguais”. A direita afirma: “Claro que nós veneramos as mulheres, mas claro que não vamos permitir que elas sejam iguais — e no caso de mulheres dálites, não nos importamos mesmo”. Houve casos perturbadores de estupro e assassinato de mulheres dálites que foram silenciados.
Não é o melhor momento, mas é pouco provável que esse tipo de mobilização se retraia. É um processo longo que veio para ficar.
Sehjo Singh
Agora você está participando do 13.o Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, como parte da delegação da região asiática. Quais são os desafios regionais que você observa?
A Marcha Mundial das Mulheres me agrada muito por ser um movimento político. O mais importante para conectar as mulheres da Ásia é se conectar com o que elas estão discutindo e com o que se preocupam. Há sem dúvida uma preocupação com as florestas, as sementes, a educação de meninas, a segurança alimentar e nutricional de toda a família. Elas se preocupam com a água e por quanto tempo ainda terão águas subterrâneas e outros recursos.
A melhor forma é se conectar, é ver como vencer em suas lutas e oferecer exemplos de mobilizações boas e bem-sucedidas de outras regiões do mundo, feitas por mulheres como elas. O momento é difícil, e eu acredito que só encontraremos força nos territórios, nas pessoas que estão unidas, e não em algum líder carismático ou algum tipo de messias que algumas pessoas podem estar buscando. Devemos olhar para o território, para quem está pisando no solo, e não para cima.
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