Lia Ukleba é uma artista feminista da Geórgia. Nascida em 1974 e formada em pedagogia, Lia começou a pintar em 2011 como forma de expressar os sentimentos e experiências das mulheres em sociedades patriarcais. No ano seguinte, sua obra “Virgem Maria com uma pistola de brinquedo” (“Virgin Mary with a toy pistol”) teve grande repercussão em seu país, resultando em perseguição e ameaças em sua cidade natal, Kutaisi. Em 2015, Lia Ukleba recebeu o prêmio Kato Mikeladze, concedido a pessoas que lutam pelos direitos das mulheres na Geórgia.
Em entrevista a Capire, Lia comentou sobre seu processo criativo e inspirações, baseadas em experiências próprias e em histórias de mulheres que enfrentam a opressão. “Desde o início, eu orientava meus pensamentos, meu pincel e minha mão para temas como a sociedade patriarcal, o estado reprimido das mulheres e os sentimentos das mulheres de modo geral. Eu queria expressar o que as mulheres sentem dentro de seu corpo.”
A entrevista foi conduzida por Mariami Gaprindashvili, integrante do Secretariado Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. A seguir, leia a entrevista e conheça algumas obras de Lia Ukleba.
Quando você pintou “Virgem Maria com uma pistola de brinquedo”, você não ficou com medo da pressão religiosa da sociedade?
A pessoa tem mais coragem na ignorância. Hoje, obviamente, estou preparada para fazer esse tipo de intervenção, mas, quando pintei a Virgem Maria, eu não sabia que haveria tanta repercussão, e aquilo me ocorreu na ingenuidade. Embora eu estivesse pronta para irritar algumas pessoas, não esperava que seria em uma magnitude dessas. Foi criado um campo de debate e as pessoas começaram a ter discussões muito acaloradas e prolongadas sobre essas temáticas. “Virgem Maria” é uma obra feminista, sobre uma mulher que quer ter sua voz ouvida pelas pessoas. Para isso, ela toma uma medida radical, senão ela não consegue convencer nem transmitir sua voz a outras pessoas.
Por que pintou a Virgem Maria grávida e não com Jesus no colo?
Havia aqui um tipo diferente de ideia. Eu queria me concentrar no Deus não nascido — quer Ele nasça ou não. Ou será que vale a pena nascer?
O que você pode nos dizer sobre a obra de Jesus com a criança nos braços?
A inspiração para essa obra veio de uma entrevista com uma mulher trans que queria ser mãe e falou sobre esse desejo, a pressão da sociedade e os problemas que ela enfrentou no processo. Decidi pintar uma mulher trans com uma criança nos braços e, durante o trabalho com ela, pensei que, para mim, uma pessoa que quer ser mãe é sagrada. Ela quer dar à luz uma nova vida, crescer e de alguma forma dar seu amor a outra pessoa, de forma totalmente abnegada. Ela quer ser mãe, de todo o coração. Era uma história tão comovente e sensível que decidi mantê-la sagrada. Ela seria coroada. Toda pessoa tem direito de ser quem quiser ser e ter filhos se quiser. Ninguém tem o direito de perturbar essa santidade. Do mesmo modo, foi assim que uma mulher trans chegou com um bebê nos braços e se tornou Jesus.
Nas suas obras, há uma divisão em períodos, uma parte iconográfica, uma série de frutas — que me lembra dos trabalhos de Georgia O’Keeffe, artista estadunidense cujas pinturas evocam interpretações vaginais. Fiquei muito impactada pela pintura da banana, porque tem um sentimento de entalhar, rematar, cortar alguma coisa…
Essa é a história das tábuas. Também vem da minha trajetória pessoal. Eu tive que me casar quando era muito jovem, por causa de tradições perniciosas, e fui obrigada, pela cultura, a fazer coisas que eu nem sabia nem gostava de fazer. Aos 16 anos, eu não precisava sovar a massa, e minha família me obrigou. Isso provocou muitos protestos do meu lado. Essa história me atraía e decidi, feito criança, que não aprenderia a cozinhar, porque fui obrigada a cozinhar. Não sou muito boa cozinheira, mas essa ainda é uma questão complexa para mim. Até hoje é um estresse. Tenho medo da cozinha, embora eu tenha tido e criado duas crianças, cozinhado para elas e ainda cozinhe. Essa tábua de cozinha é um objeto cotidiano, como é para toda mulher. Eu levei a tábua da cozinha para o ateliê — ou seja, encontrei uma função que queria para ela e na qual tinha interesse. Decidi desenhar notícias de mulheres nela e contá-las a mim mesma.
Tentei transformar o que era odioso, desconfortável e estressante para mim em uma história agradável e feliz, e funcionou muito bem.
Foi uma história de autossalvação, na verdade, e ela deixará outras pessoas felizes também. Decidi vendê-las por valores bem baixos para que a história seja acessível a todo mundo, e todo mundo tenha esse código que coloco no desenho.
Você casou cedo, mas isso está no passado. Hoje você é uma mulher diferente, artista independente e bem-sucedida, mas aquelas mulheres que vivem vidas parecidas com a do seu passado não serão esquecidas.
Para mim, é impossível esquecê-las. O que acontece hoje, o que vivi no meu próprio passado e, sobretudo, o feminicídio é um tema muito doloroso para mim. Eu acho que morro com todas as mulheres que são assassinadas. O último trabalho relacionado a feminicídio é “Belos pedaços de tecido” [“Beautiful Pieces of Fabric”]. Durante todo o processo de pintá-lo, essa ideia me exauriu. Eu tinha que costurar esses vestidos e não sabia que nome dar a eles.
Como você não sentiu desejo de ir embora dos arredores dessa pequena cidade de Kutaisi? Fico pensando como você lida com a situação no ambiente em que você vive hoje e por que você não optou por se mudar para fora.
Em 2015, meus trabalhos foram expostos na Universidade de Ilia e a notícia correu. Em declaração do Patriarca [líder da Igreja Ortodoxa Georgiana], fui tratada como a propagadora da maior ofensa. E aí começaram as ameaças e perseguições pela sociedade. ONGs me disseram: “Faça as malas agora e vá embora”. Não sei por que recusei. Talvez porque, de alguma forma, eu acredite que não existem fanáticos neste país. Tudo é frágil e ilusório, quebradiço. Se houvesse fanáticos neste país, eu não estaria viva hoje. Mas sei que essa fragilidade está se mantendo por um pequeno fio, que pode ser facilmente rompido. Eu não sentia que alguém pudesse me machucar. Não seria fácil fazer as malas e fugir. De alguma forma, eu percebia isso como um escape, e eu não estava pronta para isso, e eu não queria fugir dos outros.
Eles dão um sentido sagrado a coisas que não são sagradas. Eu acredito que as pessoas não deveriam viver seguindo padrões estabelecidos e deveriam fazer perguntas. Nós devemos buscar respostas para a pergunta “por quê?”. É uma pergunta simples, mas das mais importantes. Assim, a pergunta “por quê?” está na minha mente desde a infância — e outras perguntas similares, como “por que não?”.
A sociedade não está preparada para se afastar dos estereótipos. Eu tento fazer minhas pequenas explosões para transformar tudo em assunto. Quando se inicia um debate, significa que alguma coisa se rompeu. Existem dois lados que se opõem por meio do diálogo e, nesse diálogo, podemos até alcançar alguma coisa em comum. Se meu trabalho conseguir fazer isso, meu objetivo foi alcançado.
Suas obras discutem temas importantes. Tenho a impressão de que elas são acompanhadas de som — elas gritam e conversam. Todo mundo deve sentir isso quando as vê, mas ainda assim as pessoas têm medo do novo…
A novidade é sempre dolorosa, sair de um cômodo quente sempre significa ir para o frio. Esse frio é menos agradável quando você está confortável, é doloroso sair. Mas essa saída pode levar a uma história mais interessante. Às vezes, precisamos de um empurrão para fora dessa zona de conforto. Eu tento destruir a zona de conforto e deixar a pessoa que vê a obra desconfortável.
Como artista feminista, qual será seu apelo verbal para as mulheres do mundo?
A luta pela minha liberdade, por mim, é uma luta por todas as mulheres. Eu sempre falo para meninas que devemos começar a manhã com uma luta e devemos terminar a noite assim. E ser assim todo dia. Senão, fica simplesmente impossível viver na nossa sociedade. Tomara que chegue o tempo em que nós, mulheres, seremos livres, mas hoje não temos direito de relaxar. A pressão e o controle patriarcais são tão fortes que você pode ser esmagada e pisoteada em um segundo. É por isso que temos que lutar o tempo todo.
Nem toda mulher tem a força, a liberdade econômica ou a oportunidade de se libertar. As mulheres da minha geração “morreram”. A maioria foi vítima de casamentos violentos e não conseguiu sair dessa situação. Elas rejeitaram seus próprios talentos e a própria felicidade e ficaram presas na rotina em que a sociedade vive. Elas aceitaram essa situação.
Eu constantemente falo para meninas nas escolas para primeiro conquistarem liberdade econômica, independência. Depois, que lutem por seus direitos. Há mulheres que têm independência econômica, mas internamente não conseguem se libertar da pressão patriarcal nem ensinar suas filhas a serem livres. Essas mulheres são as primogênitas de um ambiente patriarcal. Tive contato com elas e elas disseram: “Não sou oprimida por ninguém, sou livre”. Mas eu acho que a mente delas não é livre. Se olharmos para a dinâmica, estamos avançando, estamos crescendo, ainda que lentamente. Nossas futuras gerações modernas são muito mais progressistas. Elas têm o pensamento são e estão avançando no sentido de princípios democráticos.