Os desafios do feminismo popular nos países do mundo árabe

25/03/2021 |

Por Souad Mahmoud

Dez anos após a “primavera árabe”, Souad Mahmoud reflete sobre as condições de vida e luta das mulheres, enfrentando o conservadorismo e a instrumentalização.

Tébourbi Photography, 2013.

É preciso reconhecer que a lógica voluntarista do desenvolvimento nos diferentes países árabes, que já existe há décadas, ainda que em diferentes níveis, permitiu melhorar a situação das mulheres de forma palpável. O acesso das mulheres à escolarização e ao emprego, combinado com a urbanização e a melhora do padrão de vida, especialmente nas áreas urbanas, contribuiu para sua promoção, mas também, de modo mais geral, para transformações sociais, como o aumento da idade ao casar, a diminuição da taxa de natalidade, a nuclearização das famílias etc. As mulheres surgiram como atrizes-chave do desenvolvimento e como um fator de transformação social, embora essas dinâmicas continuem sendo contrariadas por regras e normas sociais conservadoras.

Uma das forças motrizes por trás das recentes revoltas no norte da África e no Oriente Médio tem sido e continua sendo o desejo de acessar uma cidadania plena. Essa busca pela cidadania abrange uma série de reivindicações que são indissociáveis das experiências de opressão das populações envolvidas. Essas revoltas populares foram marcadas por uma presença maciça de mulheres, que não são necessariamente todas feministas, longe disso! A exemplo do “dégage!” tunisiano ou egípcio, ou do Movimento 20 de fevereiro no Marrocos[1], as mobilizações em questão são explicadas, em primeiro lugar, pela precariedade das condições socioeconômicas (principalmente a pobreza e o desemprego) e políticas (ausência de liberdades públicas), duas dimensões fundamentais da cidadania.

Outra explicação é que o elemento determinante dessas forças mobilizadoras é, antes de tudo, sua transformação em uma luta pela dignidade. Nessa perspectiva, quanto mais esse objetivo de forte carga emotiva é exacerbado, mais ampla a mobilização promete ser, pois oferece a todos a possibilidade de se encontrar nas reivindicações. Como a dignidade anda de mãos dadas com os ideais democráticos de liberdade e de igualdade de direitos, não é surpreendente que as militantes feministas e as mulheres “comuns” tenham aproveitado a oportunidade para denunciar as discriminações contra elas, ilustrando a opressão social e a falta de igualdade que sofrem por meio da energia com que se lançam na batalha política.

À parte alguns avanços obtidos em certos Estados (como a igualdade inscrita na nova Constituição da Tunísia e do Marrocos), as chamadas “revoltas árabes” não cumpriram suas promessas, sobretudo as de um reequilíbrio das relações de poder entre homens e mulheres. Na verdade, mesmo no auge dos protestos, essas revoltas permaneceram em sua maioria cegas à desigualdade de gênero e à violência contra as mulheres. Ainda mais grave: várias delas se tornaram palco para a violência sexual. Mas, antes disso, nos parecia importante focalizar o fenômeno da instrumentalização das mulheres trabalhadoras, tanto em círculos laicos como religiosos, enquanto a distância entre o direito à igualdade e sua aplicação na vida real não parou de crescer.

Além disso, as reformas em curso estão enfrentando situações paradoxais: a dualidade das normas jurídicas – em parte de inspiração religiosa – e dos modernos códigos de família, que mais uma vez representam a distância entre os sistemas jurídicos e a realidade social, o que leva a um dualismo no status jurídico das mulheres, dependendo se elas estão inscritas na vida pública ou privada.

A presença de partidos com referências religiosas no poder em um grande número de países põe em questão a relação entre democracia e mulheres. Além disso, no contexto atual da globalização, os regimes políticos nessa parte do mundo buscam oferecer “promessas” de boa vontade aos doadores de fundos internacionais e à opinião internacional, modificando certas políticas públicas relacionadas com temas de grande visibilidade em nível internacional. Assim, assumir a questão da condição feminina permite que os Estados se posicionem em relação à implantação internacional dos direitos humanos para que eles se apresentem como regimes “modernistas”. Esse mesmo argumento torna a igualdade de gêneros uma condição indispensável para o desenvolvimento e o bom funcionamento dos sistemas políticos e econômicos, uma condição que é constantemente reafirmada em várias publicações de instituições internacionais (como o Relatório do Banco Mundial).

Dez anos depois, o resultado está longe de ser satisfatório. As desigualdades persistem de maneira gritante na representação política, no acesso aos recursos e a trabalhos dignos, e a pobreza afeta particularmente as mulheres provenientes das classes trabalhadoras (urbanas, semiurbanas ou rurais). Nós, mulheres, estamos convencidas de que as decisões são tomadas sem a nossa presença, ou nos excluindo. Nós continuamos a nos organizar e a resistir, e iniciamos mudanças a favor das mulheres e dos movimentos sociais.

Se a “primavera” não foi especialmente feminista, com uma participação massiva, nós, mulheres, a obrigamos a levantar a questão da cidadania para que os homens não fossem os únicos a se beneficiarem dos avanços potenciais. Diariamente, nós reinterpretamos tradições para criar novas margens e espaços de liberdade, de influência e de poder, afirmando todos os dias o nosso lugar em espaços públicos onde sempre estivemos presentes, apesar das restrições. Esse lugar é construído por “pequenas transgressões” que nos permitem conquistar espaços de liberdade. Nós nos deslocamos pela cidade, produzimos, negociamos, resistimos, nos empoderamos e frustramos as relações de dominação. Não estamos dispostas a desistir. Nós rejeitamos a violência que custa nossas vidas e destacamos nossa resistência e mobilizamos a opinião pública nacional e internacional. Nossa consciência das desigualdades é forjada através da participação em massa em oficinas interativas e pelo trabalho com as famílias para mudar a ordem estabelecida e nos tornarmos cidadãs plenas.

Os regimes geralmente manipulam “a questão das mulheres” para servir a múltiplos interesses que, no final, pouco têm a ver com as próprias mulheres. Por outro lado, nós, mulheres da região MENA (Médio Oriente e Norte da África), estamos nos mobilizando para fazer valer nossos direitos a uma cidadania plena e inclusiva. Se, todavia, as experiências de emancipação em relação às várias formas de tutela patriarcal ou estatal variam de acordo com as relações sociais de gênero, classe e religião em particular, todas nós exigimos justiça de gênero para acessar espaços urbanos e para lutar contra a violência, ou ainda para obter a nossa justa parcela de recursos em termos de herança, propriedade, cuidados de crianças, e também no controle sobre nossos próprios corpos.

Para além do questionamento geral da estrutura patriarcal que sustenta a violência contra as mulheres, podemos considerar que essas violências são limites essenciais para a participação delas na política? É o caso da Líbia, em que há uma lacuna significativa entre a vontade de intervir na violência doméstica e a realidade vivida. Ali, as violências institucional e pública, em geral, são uma fonte importante de insegurança e uma barreira ao acesso das mulheres aos assuntos públicos. A participação de mulheres militantes de base é uma demonstração da grande contribuição das feministas nas lutas pela cidadania das mulheres nas sociedades. Mesmo sendo destacadas somente nos momentos de explosão de raiva dos movimentos sociais, essas são também lutas cotidianas em sociedades onde as conquistas das mulheres continuam sendo alvo de contestações, tanto em textos jurídicos como em práticas sociais.

Esses fatores nacionais, tais como o acesso das mulheres à educação, à formação, ao trabalho e ao planejamento familiar, bem como a relativa liberdade de expressão, são combinados com fatores internacionais, tais como os programas resultantes das conferências mundiais sobre mulheres. Tudo isso resulta na eclosão, nos países árabes, de uma importante rede associativa feminina que está rompendo com as organizações oficiais e reavivando as demandas por emancipação e igualdade de direitos. Essas associações provêm de mulheres de vanguarda da esquerda, principalmente das que passaram pela experiência da prisão desde a época do presidente tunisiano Habib Bourguiba e das gerações seguintes, por vezes já envolvidas com partidos ou sindicatos.

Direitos jurídicos: um nó górdio[2]

Os direitos legais das mulheres no mundo árabe e muçulmano são por excelência a cristalização das lutas contra o conservadorismo. Apesar das peculiaridades da história política, econômica e social de cada país do Magrebe, as tendências em termos de trabalho feminino são semelhantes. A transição demográfica, o acesso à educação e à formação (a presença de jovens mulheres nos níveis secundário e superior é agora maior do que a dos rapazes) e a evolução das representações sociais em relação às mulheres trabalhadoras certamente fizeram evoluir sua presença no mundo do trabalho. Entretanto, essa dinâmica ainda é frustrada pelas tendências de declínio do trabalho remunerado e estável, pelo desenvolvimento do trabalho precário e informal, e pelo crescimento do desemprego e da pobreza. Embora a luta pelo fim da discriminação baseada no gênero raramente seja considerada uma prioridade, na Palestina, por exemplo, a luta das mulheres está entrelaçada à luta pela independência, e esse é um ganho político para todas nós.

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Souad Mahmoud é membra da Marcha Mundial das Mulheres na Tunísia, da Associação Tunisiana de Mulheres Democratas (Association Tunisienne des Femmes Démocrates – ATFD) e da União Geral Tunisiana do Trabalho (Union Générale du Travail Tunisien – UGTT).

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[1] O slogan “dégage!” (fora!), iniciado na Tunísia, tornou-se um símbolo comum nos cartazes, nas manifestações e nas reivindicações da chamada “primavera árabe” nos diferentes países – mesmo no Egito, país anglófono. O “dégage” se relacionou, em cada lugar, com reivindicações específicas. No Marrocos, por exemplo, em 2011, o Movimento 20 de fevereiro, formado no contexto dessas mobilizações, reivindicava “Article 19, dégage!”, exigindo uma reforma constitucional que suprimisse esse artigo da constituição, que colocava todos os poderes nas mãos do rei.

[2] Lenda envolvendo o rei da Frígia, na Ásia Menor, e Alexandre, o grande. Costuma ser usada como metáfora para um problema insolúvel que é resolvido de maneira astuta por alguém que consegue “pensar fora da caixa”.

Traduzido do francês por Andréia Manfrin Alves. 

Revisado por Helena Zelic e Aline Scátola.

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