As sociedades colonizadoras dependem de uma continuidade para acumular recursos e alienar os nativos de seus meios de vida, desenraizando qualquer relação produtiva ou sentimental com sua terra. O “Terracentrismo” age metodicamente para assegurar a permanência das sociedades colonizadoras, pois o controle da terra está aliado ao controle sobre as condições de sobrevivência. O território visado por colonizadores de povoamento é visto como “terra livre”, sem levar em conta as comunidades que já residem ali.
No caso do sionismo, o objetivo era (e ainda é) criar uma colonização de povoamento etnoexclusiva através da “nativização” da sociedade colono-imigrante. Isso se deu por meio do desenho de contínuos históricos entre a terra e os colonizadores, evocando discursos bíblico-religiosos acompanhados de um processo de “memoricídio”, o apagamento completo das histórias nativas e a construção de novas histórias para os colonizadores. Decisivamente, o ato de imigração para a Palestina foi denominado como “retorno” à “terra prometida”, na Bíblia, “Aliya”: o nome dado às ondas de imigração judaica para a Palestina.
Como o sociólogo Baruch Kimmerling escreveu[1], “todo pedaço de terra que passou a ser controlado pelos judeus, pelo menos até 1947, estava na posse de outra pessoa antes de eles o adquirirem”. O preço a ser pago pela posse e povoamento da terra foi administrado e adquirido, principalmente, pelo Fundo Nacional Judaico (FNJ), organização que cumpriu os objetivos de aquisição de terras discutidos na Primeiro Congresso Sionista. Através do cultivo, o sionismo cumpriu os dois pilares centrais da colonização de povoamento: controle territorial através da apropriação da terra nativa e o estabelecimento de uma nova comunidade social e política. Isso desempenhou um importante papel ideológico para o sionismo, atraindo mais imigrantes-colonizadores judeus, criando demanda por trabalho, comida, moradia e um senso de comunidade – recursos vitais para a formação de um coletivo nacional. Também fabricou uma ligação entre os colonizadores e a terra, necessitando da presença, manutenção e, posteriormente, da soberania sobre a terra.
O cultivo é a extensão operacional do mito sionista de “fazer o deserto florescer” reiterado na Declaração de Independência e nas declarações de vários primeiros-ministros israelenses. A imigração de colonos para terras cultiváveis idealmente localizadas nas proximidades de recursos hídricos se justifica pelos argumentos da modernização e da civilização. Depende da suposição de que quando os nativos de fato “existiam”, eles administravam mal a terra (e a água) e, portanto, o colonizador branco moderno pode “desenvolver o verdadeiro potencial da terra” e “dobrar a natureza a serviço da humanidade”. Isso decorre da lógica colonial-imperial que classifica os indígenas como inferiores e bárbaros e os colonizadores como superiores e inteligentes.
Hidrofronteiras: entre imperialismo, ocupação e invasão
Período Pré-Nakba/Estado
A área que envolve a Palestina foi governada pelo império otomano até sua queda após a Primeira Guerra Mundial. Autoridades britânicas, francesas, italianas e russas se envolveram em negociações secretas para dividir a área. Essas conversas resultaram no acordo Sykes-Picot de 1916, que estabeleceu sistemas de mandato e governança direta no “crescente fértil”, porções do Hejaz, na Turquia, até o Monte Ararat. A criação de fronteiras imperiais no Levante é uma consequência direta da lógica de desfazer/fazer espaços coloniais “produtivos” – algo que coincidiu com as aspirações sionistas. No entanto, nesse cenário, a maior parte da Palestina foi alocada como zona internacional. A fronteira norte da Palestina naquela época se estendia de um ponto próximo a Nahariya até um ponto noroeste no Lago Tiberíades. A declaração Balfour contestou esse arranjo em 1917. Era uma promessa por escrito do governo britânico a Lorde Rothschild para ajudar no estabelecimento de um “lar nacional” para os judeus na Palestina, que na verdade significava os interesses britânicos alinhados com os interesses sionistas.
As aspirações sionistas para as águas do norte foram anunciadas pelos britânicos nas discussões franco-britânicas de 1920, onde eles solicitaram expandir os limites do território para incluir toda a bacia do rio Jordão desde o assentamento de Mettula [al Mattaleh] para o norte e leste até as nascentes Banias e a cidade de Quneitra, bem no território ocupado pela França. Em troca, os franceses receberam o direito de governança direta em toda a Síria e Líbano, negando o Sykes-Picot e matando qualquer aspiração de estado árabe independente. As partes se comprometeram que todos os assentamentos judeus no Norte estariam sob o mandato britânico em preparação para a tomada sionista da terra, e as Colinas de Golã ficariam sob o mandato francês. Este acordo foi assinado em 1923 entre o coronel Paulet, francês, e o coronel Newcombe, britânico.
Após as revoltas do campesinato palestino em 1936, a comissão Peel apresentou a primeira proposta de partição do Mandato Britânico da Palestina. Dividiu o território entre um estado judeu, um estado árabe e uma zona de mandato britânico, propondo uma transferência de população. A fronteira traçada alocava os distritos do norte ricos em água e metade da costa ocidental ao estado judeu, enquanto o estado árabe ficaria com a metade inferior da costa e o deserto do sul e a maior parte da fronteira oriental (posição a jusante do rio Jordão). Jerusalém e Tel Aviv permaneceriam sob o mandato britânico. Esta proposta foi rejeitada tanto pelos sionistas quanto pelos palestinos.
Com as crescentes tensões e os horrores da Segunda Guerra Mundial contra a população judaica da Europa, a Liga das Nações propôs a partição da Palestina em 1947, alocando mais da metade do território para um estado judeu. Isso também foi rejeitado e resultou na guerra de 1948. Os palestinos foram expulsos de suas casas no que ficou conhecido como Nakba (catástrofe) e os sionistas declararam um estado israelense nas terras esvaziadas e reivindicadas por suas forças.
Período Pós-Nakba/Estado
Depois que o movimento sionista conseguiu pressionar os mandatos britânico e francês para incluir as férteis terras pantanosas da Alta Galiléia e Hulla (conhecidas como Jorat al Thahab) no Mandato da Britânico da Palestina, os líderes israelenses almejavam uma maior expansão territorial. A Operação Hiram foi lançada pelo exército israelense e ocupou 18 aldeias na volta do rio Litani. Israel conseguiu puxar 2.000 dunams (2 km²) dos territórios libaneses para o seu lado da fronteira do Armistício formulada em março de 1949. Desde o início, Israel ultrapassou todos os três acordos do Armistício e estava ansioso para estabelecer sua posição como uma hidro-hegemonia conquistadora de territórios. Israel estava interessado em controlar os aquíferos de Wadi Araba e os leitos dos rios ricos em minerais. Estabeleceu colônias agrícolas bem dentro do território jordaniano em 1951, estendendo-se a leste da fronteira por 320 km² e ocupando a área de Jisr al Majame’/al Baqoura no triângulo de Yarmouk. Além disso, Israel começou a operar seu projeto de construção do Aqueduto Nacional na zona desmilitarizada ao norte de Tiberíades, uma clara violação dos termos de paz com a Síria.
Para tentar aliviar as “tensões”, os americanos propuseram o Plano Principal [Main Plan] sob as negociações de Johnston de 1953, ao qual Israel apresentou um contraplano chamado Plano Algodão [Cotton Plan]. O plano de Israel incluía desviar a água do rio Litani para o rio Hasabani para ser bombeada para Tiberíades e então para o Aqueduto Nacional. Os planos falharam após serem rejeitados pela liga árabe e a ascensão de Ben Gurion ao poder. Enquanto Israel completava seu agressivo projeto de aqueduto, privando os estados ribeirinhos de grandes fluxos de água, a Cúpula Árabe de 1964 recomendou um plano de desvio para combater a hidro-hegemonia israelense.
Os fracassos dos projetos árabes combinados com a guerra de 1967 fizeram com que os líderes israelenses não precisassem mais esconder seus planos de expansão territorial. Israel invadiu as Colinas de Golã, as fazendas de Cheba e a Cisjordânia naquele ano. Ao fazê-lo, Israel estendeu seu controle a todos os afluentes da bacia do alto Jordão. O mapa oficial do Estado de Israel publicado pelo Ministério das Relações Exteriores não reconhece a Cisjordânia e as Colinas de Golã como território ocupado e estende suas fronteiras internacionais até suas bordas orientais. As Colinas são uma área hidroestratégica e abastecem um terço do consumo de água doce de Israel. Controlar as Colinas significava controlar o Monte Sheikh/Hérmon, um objetivo central da hidropolítica sionista inicial. Além disso, a ocupação privou a Síria de sua parcela de água na bacia do rio Jordão.
A invasão do sul do Líbano em 1978, a operação Litani (em homenagem ao rio!), seguida pela ocupação de 1982, e a invasão de 2006 foram justificadas por preocupações com segurança. No entanto, é bastante suspeito que as ambições em Litani e Wazzani tenham sido de fato parte integrante das agressões.
O tratado de paz com a Jordânia em 1994 deu origem a formas de práticas hidro-hegemônicas em negociações. Em primeiro lugar, as terras de Wadi Araba, onde os assentamentos israelenses foram construídos, foram demarcadas sob o território israelense. Em troca, Israel ofereceu terras rochosas, impróprias para a agricultura, para ficar sob a soberania jordaniana. Ao visualizar o mapa de satélite da região, pode-se ver como todos os leitos dos rios e nascentes, anteriormente no território jordaniano, foram alocados à soberania israelense (nomeio as nascentes Wiba/Yahev, leitos dos rios Paran, Arava, Shilhav e Shivya).
Em segundo lugar, o Artigo Quatro do Anexo Dois do tratado menciona explicitamente o direito de Israel de continuar usando a água dos poços perfurados no lado jordaniano de Wadi Araba e solicitar mais suprimentos de água sob o véu do Comitê de Águas Compartilhadas. Duas regiões ocupadas, al Baqoura/Nahariyam e al Ghamr/Tzofar permaneceram sob total controle israelense (em “regime especial”) por 25 anos, em que os israelenses tinham acesso irrestrito aos fluxos de água da Jordânia. A Jordânia podia exercer sua soberania sobre esses locais ainda em novembro de 2019.
Desequilíbrio de poder
Concluindo, tentei localizar as atuais agressões espaciais israelenses na história mais ampla do pensamento sionista. O que este estudo mostrou foi a centralidade da água na fronteira sionista e israelense, um processo que prospera ao estender o controle estatal para o máximo de recursos hídricos. Israel é um estado de colonização de povoamento com base na hidroterritorialização, seja por meio de lobby, negociação ou uso explícito da força.
Reconheci o desequilíbrio de poder e, portanto, rejeitei a suposição de que Israel é um ator com mesmo peso nos conflitos hídricos, acreditando, sim, que é uma força hegemônica que se apropria histórica e sistematicamente da terra e da água na Palestina e na região. As ambições sionistas de estender as fronteiras do estado “futuro” para todo o Golã e sul do Líbano se materializaram logo após o início do Estado com total desrespeito às leis internacionais. Seguiu-se a prática da hidro-hegemonia para a bacia do rio Jordão e a negação de participação dos estados ribeirinhos.
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[1] Baruch Kimmerling, 1983. Zionism and territory: The socio-territorial dimensions of Zionist politics. Universidade da Califórnia.
Rama Sabanekh é jornalista e pesquisadora. Ela escreve sobre economia política, geografia e violência no Oriente Médio. Este artigo é uma versão resumida do artigo “Understanding Israeli Boundaries As Hydro-territorial: A Study In Zionist History And Practice”, apresentado para uma disciplina do King’s College London.