O movimento feminista protagoniza a resistência popular na Grécia

19/01/2022 |

Por Sonia Mitralias

Sonia Mitralias, da Comissão pela Abolição das Dívidas Ilegítimas, fala sobre os avanços e desafios enfrentados no país

Athens, 2021

O que aconteceu na Grécia nos últimos dois anos é digno de nota: nunca antes na história do país a questão dos direitos das mulheres recebeu tanta atenção na imprensa, foi submetida a debates públicos tão acalorados e assumiu tamanho protagonismo na cena política. Tudo começou quando o governo de Kyriákos Mitsotákis tentou se alinhar com as forças neoliberais mais reacionárias e obscurantistas do planeta, lançando um ataque direto contra os direitos humanos das mulheres. Felizmente, essa tentativa não contava com a renovação do movimento feminista, que assumiu o desafio. Veja como isso aconteceu.

O caso donascituro

Estimulado pela vitória do partido de direita “Nova Democracia” nas eleições parlamentares de 2019, o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Grega inventou, no primeiro domingo depois do Natal, um dia dedicado ao “nascituro”. A decisão, segundo disseram, foi tomada para proteger a vida da criança antes do nascimento e solucionar o problema demográfico da nação grega.

Trinta e seis anos depois da legalização do aborto na Grécia – graças a uma lei bastante progressista aprovada em 1986 após uma luta obstinada travada pelo movimento feminista durante quase dez anos –, a Igreja Ortodoxa Grega sinalizava um ataque frontal contra esse direito conquistado a duras penas.

Alguns dias antes do ano novo de 2020 e no dia dedicado à “criança não nascida”, a capa de uma revista esportiva provocou uma imensa onda de indignação nas redes sociais. A imagem mostrava uma mão enorme segurando um feto de absurdas proporções minúsculas, com a frase em letras garrafais embaixo: “ME DEIXE VIVER”.

Apesar das reações nas redes sociais, o ministro do Desenvolvimento, Adonis Georgiadis, sabidamente racista e antigo neofascista, rapidamente parabenizou a revista, afirmando que o número de abortos na Grécia (300 mil por ano, segundo suas estimativas exageradas) seria o dobro do número de nascimentos, o que levaria à falta de cerca de um milhão de crianças e representaria um problema para a sobrevivência da nação.

Alguns dias depois, surgiram anúncios imensos no metrô de Atenas com a mesma mensagem e o mesmo feto. A autoria dessa campanha contra o abordo foi assumida por uma longa lista de associações cristãs ortodoxas fundamentalistas. Mas a Igreja Ortodoxa, retrógrada e obscurantista, não agiu sozinha. Ela teve apoio de muitos ministros e funcionários do alto escalão do governo. Depois de mais protestos públicos, o ministro dos Transportes mandou retirar os anúncios, mas os ataques contra o direito ao aborto foram apenas um prelúdio do que viria depois. 

Influenciado por regimes como de Viktor Orbán na Hungria, o governo Mitsotákis deu o primeiro passo para assumir um perfil pró-natalista e decidiu mudar o nome da Secretaria Geral de Igualdade de Gênero, instituição que também nasceu da segunda onda do movimento feminista, para “Secretaria Geral de Política Demográfica, da Família e de Igualdade de Gênero”.

Volta dodireito do pai

Mas outros ataques ainda viriam. O governo do Nova Democracia deixou isso evidente ao adotar, em maio de 2021, uma lei de autoridade parental compartilhada que reformou artigos fundamentais do Código Civil em termos do direito de família. Foi um momento de fato crucial para mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. O projeto de lei surgiu depois de muita reivindicação de um lobby extremamente agressivo e machista de pais neoliberais, violentos e chulos, que uniram forças com o governo da Nova Democracia com seus interesses em comum e discurso pró-família.

Assim, o governo revisou o que era o aspecto essencial do direito de família – e que até hoje é bastante progressista – conquistado em 1983. Essa lei havia representado uma verdadeira revolução antipatriarcal, porque substituiu o direito do pai – progenitor – (poder paterno) pela autoridade parental. Agora, após a dissolução do casamento, ao contrário do que versava a lei de 1983, a nova lei impõe a guarda compartilhada, então a criança é obrigada a passar um terço do tempo com o pai com quem não vive normalmente, mesmo quando não quiser. Mesmo quando o pai é violento, o desejo da criança não é considerado.

Para impedir a comunicação com um pai abusivo, é preciso que haja uma decisão judicial definitiva, o que pode levar anos ou jamais acontecer, porque é difícil entrar na justiça na Grécia. Há muitos custos e estresse, e as mulheres de famílias monoparentais são vulneráveis, pobres e enfrentam necessidades e uma situação de imensa angústia, agravada ainda mais pelas políticas de austeridade impostas em nome da dívida e da pandemia. Tudo isso significa que um pai abusivo pode assediar, estuprar e dar cabo da criança como quiser, além de utilizar a lei para chantagear, processar e até criminalizar a mãe que só quer proteger os filhos, arriscando sua vida e segurança.

O texto do projeto foi muito criticado por juristas da Grécia pela fragilidade jurídica e por violar direitos humanos e a Convenção de Istambul. O projeto também foi rejeitado por todas as organizações de mulheres e do movimento feminista, que enfrentaram uma campanha de ódio liderada pelo lobby raivoso de pais misóginos, com apoio de quase todos os grandes veículos da mídia grega.

Quando a lei foi aprovada, contrariando a maioria dos partidos de oposição do parlamento grego, os fanáticos do lobby de pais comemoraram nas redes sociais e fizeram ameaças contra a integridade física de membros do judiciário e da procuradoria do país, para obrigá-los a aplicar a lei em favor dos pais. Por exemplo, o grupo Direitos Parentais Iguais escreveu: “Voltamos a artilharia pesada contra o JUDICIÁRIO, carregamos [as armas], preparamos e esperamos! Que nossos porta-vozes informem à União de Juízes e Procuradores que eles estão na nossa mira”.

Resumindo, esses grupos masculinistas se tornaram perigosíssimos: o antifeminismo, a cultura da virilidade e a reconstrução de uma masculinidade hegemônica são portas de entrada ideológicas para a direita mais extrema e, cedo ou tarde, eles passarão a ações cada vez mais violentas não apenas no nível familiar, como também social.

O surgimento do #MeToo grego e o despertar da consciência

O cenário é desolador, mas, em meados de janeiro de 2021, em meio à pandemia, mais de três anos depois do surgimento do movimento #MeToo nos Estados Unidos, o #MeeToo grego ganhou protagonismo na cena política e social do país. O movimento foi desencadeado pelas denúncias de Sofia Bekatorou, de 43 anos, duas vezes medalhista olímpica na vela (ouro e bronze), que foi a público dizer que havia sido estuprada aos 21 anos por um alto funcionário da Federação Helênica de Vela. Ela passou uma mensagem para todas as mulheres que sofreram abuso sexual: “Rompam o silêncio, falem!”

Nesse mesmo ano, o surgimento do #MeToo grego ajudou a amadurecer a consciência feminista diante da forma mais perversa de violência de gênero, o feminicídio. Antes disso, em novembro de 2018, o assassinato da estudante de 21 anos Eleni Topaloudi em Rodes, depois de ser estuprada e torturada por dois rapazes e atirada ao mar ainda viva, havia ajudado a introduzir o termo “feminicídio” na linguagem cotidiana.

Mas também foi em 2021, sobretudo por volta do meio do ano, que em todo o país, de Atenas a Tessalônica, de Creta às ilhas Cíclades, houve uma série de assassinatos de mulheres por seus companheiros. No entanto, desta vez, houve uma diferença surpreendente em relação ao passado recente: a mídia dedicou uma cobertura bastante extensa, falou-se muito mais sobre o assunto, partidos políticos abandonaram o habitual silêncio e, acima de tudo, as mulheres tomaram as ruas, lideradas pelas feministas, para bradar sua indignação e exigir solidariedade!

A renovação do movimento feminista

Veja outro exemplo da renovação do feminismo: em junho do ano passado, foi lançado um comercial que pedia para as mulheres… procriarem, sobretudo aquelas que já “envelheceram” e estavam tão preocupadas com a carreira que acabaram negligenciando o interesse na fertilidade. Tratava-se da publicidade da 1.ª Conferência Pan-helênica de Fertilidade, realizada com apoio da igreja, de empresas de reprodução assistida, da Secretaria Geral de Política Demográfica, da Família e de Igualdade de Gênero, da cadeia pública de televisão (ERT) e da própria presidenta da República Helênica. Mas, depois de nova repercussão pública contrária, a presidenta Katerina Sakellaropoulou foi obrigada a retirar o apoio à conferência e quase todos os participantes oficiais fizeram o mesmo… A conferência foi cancelada. Foi um fiasco total!

No fim das contas, o governo Mitsotákis conseguiu aprovar o projeto de lei da autoridade parental compartilhada por margem apertada, mas mesmo a mídia governista admitiu que foi uma vitória pírrica – ou seja, acabou custando caro. A resistência feminista semeou discórdia no conselho de ministros e provocou cisões até na bancada parlamentar do Nova Democracia. Foi a primeira vez desde sua constituição, em 2019, que o governo de direita enfrentou uma crise e, como amplamente admitido, a responsabilidade por essa novidade absoluta é do movimento feminista.

A conclusão não é difícil: 2021 viu na Grécia o nascimento de uma renovação do movimento feminista, jovem, radical, mas também unitário, que já ocupa posição de protagonismo nas lutas populares contra a Santa Aliança de reação neoliberal e obscurantismo ortodoxo e nacionalista. É um evento de grande importância, quase histórico, em uma sociedade grega conservadora e desorientada, que está sempre em busca de uma esquerda digna do nome. O futuro promete.

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Sonia Mitralias foi coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres na Grécia (2000-2010) e integra a Comissão pela Abolição de Dívidas Ilegítimas. Este artigo é uma tradução do texto publicado originalmente na revista InternationalViewpoint.

Traduzido do inglês por Aline Scátola

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