No Iraque, as mulheres constroem resistência no cotidiano

05/08/2022 |

Por Teeba Saad 

Teeba Saad analisa os impactos de décadas de guerras e os desafios para a igualdade

Desde o início do século 20 e até hoje, o mundo árabe vem sendo exposto a muitas guerras, conflitos armados e colonialismo direto e indireto. Essas guerras deixaram os piores tipos de devastação humana, moral e psicológica em todos os nossos países, que devem ser enfrentados por todas as classes da sociedade, sobretudo as mulheres. As mulheres precisam desempenhar dois papéis em casa: criar e cuidar dos filhos e suprir a ausência dos pais, que estão nos campos de batalha, são mantidos em cativeiro, tombaram em martírio ou estão presos. As mulheres trabalham fora de casa e enfrentam os problemas da discriminação de gênero.

As mulheres também enfrentam o destino de defender sua pátria. Nós as vemos lado a lado com os homens nos campos de batalha, lutando de forma aguerrida para proteger sua terra, incluindo aquelas que são submetidas a detenção, prisão, tortura e privação de seus direitos humanos mais básicos. As lutas das mulheres palestinas são emblemáticas nesse sentido. Elas sofrem com a ocupação sionista e com a despossessão de suas terras há mais de 70 anos. Há gerações, as mulheres palestinas sacrificam e oferecem suas posses mais preciosas para conquistar a independência e recuperar suas terras usurpadas pelos sionistas. Elas são tratadas pela ocupação com os métodos mais pavorosos de tortura nos presídios quando são detidas e mesmo em suas vidas cotidianas. Discriminação, separação, marginalização e tratamento desumano são cometidos contra elas, e elas lutam e redobram esforços para viver uma vida justa.

O mesmo cenário se repete com mulheres do Líbano, do Iêmen, da Líbia, da Síria e do Iraque. As mulheres desses países sofrem com conflitos armados entre elementos terroristas e grupos islâmicos extremistas, que as deixam vulneráveis a migração e deslocamento forçado para as regiões fronteiriças de seus países. Elas fogem para se proteger de assassinatos, casamentos infantis, estupros e a imposição de normas religiosas extremistas por xeques de partidos religiosos, pelo controle do governo e pelas leis.

Décadas de conflitos militares no Iraque

O acesso à exploração dos territórios é o primeiro motivo para as guerras em nossa região, que sempre foi rica em recursos naturais, como o petróleo.

Há décadas, a política para acessar e controlar esses recursos é mesma: impedir os processos e movimentos de libertação das mulheres e dos povos na região.

A partir da independência dos países do mundo árabe e, no Iraque especialmente a partir de 1977, os Estados Unidos começaram a implementar uma estratégia política de interferência indireta para ocupar o país e acessar nossos recursos. A manipulação econômica tem destaque nessa política. A partir de então, temos os conflitos dos países entre si, e os novos conflitos por meio de grupos extremistas: primeiro o Talibã, depois o Estado Islâmico. Outra dimensão de interferência indireta é a disseminação das drogas, provocando novos problemas especialmente entre a juventude.

A guerra entre Iraque e Irã (1980-1988) nos deixou muitas mortes e impactou muito a vida das mulheres. A estimativa é de que quase um quarto (25%) do povo iraquiano morreu naquela guerra. As mulheres estão lidando com os custos até hoje, já que muitas ficaram viúvas e tiveram que reconstruir as vidas de suas famílias.

Na Guerra do Golfo (1990-1991), os Estados Unidos lideraram a coalizão de 33 países contra o Iraque. Em dois anos, toda a infraestrutura do país foi destruída: fábricas, escolas, ruas. E, entre 2003 e 2011, a invasão e ocupação direta, novamente com protagonismo dos Estados Unidos, assolou o país em nome da “libertação do povo iraquiano”.

Desafios políticos para a paz e a justiça

Para combater essa realidade imbricada, observamos muitos desafios para quem luta por paz e justiça. As forças democráticas e laicas não conseguem ter uma estratégia evidente para contrapor esses cenários conflituosos. Elas têm um papel fraco e pouca influência nos eventos e conflitos que ocorrem em nossos países e na relação com a sociedade, sobretudo com a classe trabalhadora e grupos marginalizados. Falta compatibilidade e harmonia entre estratégias das forças democráticas árabes e as das forças da Aliança do Curdistão, além de haver visões diferentes sobre muitas questões, o que impede uma visão comum e uma cooperação efetiva entre esses grupos. Há uma exacerbação do comportamento político sectário, o que, por sua vez, leva a ainda mais conflitos políticos.

No Iraque, um desafio é a ausência de um papel efetivo, influente e cotidiano para as mulheres intelectuais e o papel dos políticos na ausência e no isolamento desse grupo esclarecido de outros grupos da sociedade, o que leva ao surgimento de novos problemas.

Nesse cenário, além das organizações e partidos de esquerda e nacionalistas, surgiram novas organizações, especialmente a partir da Primavera Árabe. Com presença de jovens e em nome do feminismo, essas organizações se conformam como ONGs e estabelecem dinâmicas de projetos. Captam recursos externos, mas sem um processo de organização popular. Por exemplo, em lugares periféricos, onde 70% das mulheres são analfabetas, estabelecem projetos com outras prioridades, focados no empreendedorismo, com valores e dados que não são transparentes. Não pretendem resolver os problemas desde as raízes.

A participação das mulheres também se dá em partidos políticos e no parlamento, mas é uma participação fraca no processo político geral. Um grande número de mulheres que atuam na política e no parlamento está ligado a forças políticas islâmicas muito conservadoras, e é difícil elas expressarem os interesses das mulheres no tempo em que vivemos, pois elas representam uma era passada que não tem mais lugar na atualidade, além de não se debruçarem sobre problemas atuais, como a ignorância, a pobreza e o desemprego.

Assim, essa é uma participação muito subordinada aos homens e com uma atuação contrária às mulheres da esquerda. Por exemplo, as mulheres comunistas atuam para ampliar a conscientização e organização das mulheres numa perspectiva de esquerda, tentando organizar marchas e debates, mas as mulheres de outras forças se colocam contrárias.

Não temos casas de atendimento e apoio às mulheres vítimas de violência. Tudo o que havia avançado nos anos 1960 e 1970 se perdeu. Mesmo com a participação das mulheres no parlamento, a legislação continua sendo muito atrasada e contrária às mulheres. Um exemplo é que, até hoje, a lei prevê que uma solução para casos de estupro é que o estuprador se case com a mulher.

Em meio a todos os problemas aqui apresentados, nosso esforço, como organizações e militantes pelos direitos das mulheres e como sociedade civil, está em promover uma luta permanente e cotidiana para encontrar soluções e elevar o nível intelectual de nossas mulheres, com a realização de oficinas, seminários, manifestações e marchas para conquistar os direitos que foram roubados em todos os aspectos da vida, política, econômica e socialmente.

Em 2020, começamos um movimento de jovens – homens e mulheres – dedicado a ampliar a consciência sobre os direitos das mulheres e a igualdade de gênero. Somos cerca de 120 pessoas, mulheres trabalhadoras e estudantes. Não é fácil organizar um grupo permanente desse tipo. No Iraque, quem denuncia a situação de subordinação e desigualdade que as mulheres enfrentam pode ser perseguida e ameaçada com violência. Essa é uma grande dificuldade.

Nós realizamos várias atividades: oficinas de formação, encontros online e palestras. Além disso, produzimos e distribuímos materiais sobre os direitos das mulheres em linguagem coloquial, usando as gírias que falamos normalmente.

Panfletar esses materiais é a forma que usamos para conversar com as pessoas e proteger as mulheres de violências como casamento infantil e crimes de honra, que crescem no Iraque.

O crime de honra não tem a ver apenas com traição. Podem ser vários os motivos que permitem que os homens da família – maridos, primos, irmãos – tenham o direito de agredir e até matar a mulher. É nítido que, depois de 2003, enfrentamos uma ofensiva de aumento da ignorância e desconhecimento entre os homens. Por isso apostamos que a educação é fundamental e é parte da nossa resistência cotidiana como mulheres.

Em nossa luta, temos uma montanha para escalar em direção à igualdade. Subimos um degrau, caímos três. Precisamos nos manter resistentes e organizadas. É por isso que apostamos na construção da Marcha Mundial das Mulheres na região.

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Teeba Saad é integrante da Marcha Mundial das Mulheres no Iraque e do Iraqi Feminist Uprising Movement

Edição por Tica Moreno
Tradução de trechos em árabe por Yara Osmani e em inglês por Aline Scátola
Língua original: árabe e inglês

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