Mulheres pelo direito à terra e à herança igualitária na Tunísia

13/07/2021 |

Por Halima Jouini

Em artigo, Halima Jouini analisa a posição das mulheres na economia tunisiana e apresenta propostas a partir do movimento de mulheres.

Zohra Bensemra, 2016

Na Tunísia, a questão da herança, da distribuição igualitária das riquezas e do direito das mulheres em possuir e usufruir da terra é considerada uma das mais sobressalentes, devido à realidade da discriminação. O assunto é uma preocupação permanente do movimento feminista, porque é um pilar da autoridade patriarcal. A questão da terra representa a dimensão econômica e social da hegemonia dos homens na sociedade, que justifica e fortalece o exercício de poder sobre as mulheres. Assim é formada a equação de um sistema que, por um lado, santifica a propriedade e, por outro, permite que o gênero masculino marginalize e exclua as mulheres.

As mulheres ocupam uma posição relevante na sociedade, em especial aquelas que fazem parte do setor agrícola, produzindo a comida da sociedade e trabalhando na terra, ainda que não a possuam. Na Tunísia, a porcentagem de posse de terra por mulheres não ultrapassa a margem de 5%, um valor bem próximo do índice global. A falta de acesso à propriedade de terra pelas mulheres não é, assim, algo exclusivo das sociedades islâmicas, mas uma ilustração de como o sistema patriarcal se manifesta, lembrando, em seu formato, a escravidão.

Por outro lado, reserva-nos o direito de questionar a forma imposta às mulheres de participar e se relacionar com a terra. Em todo o interior da Tunísia, as mulheres do campo sofrem com o trabalho braçal, por vezes acompanhado de inúmeros tipos de violência e precárias condições de deslocamento, onde dezenas de pessoas morrem a cada temporada. Esse fenômeno do transporte inseguro de trabalhadores rurais começou a ser frequente e, sem qualquer solução à vista, ganhou o nome de “caminhões da morte”. Além de tudo, as mulheres sobreviventes recebem metade do salário pago aos homens.

A Associação Tunisiana de Mulheres Democratas [Association Tunisienne des Femmes Démocrates] iniciou uma discussão social sobre o assunto e, em seguida, realizou levantamentos, tendo uma pesquisa em desenvolvimento junto com a Liga Tunisiana para a Defesa dos Direitos Humanos [Ligue Tunisienne des Droits de l’Homme]. Ambas são associações que formam a espinha dorsal da Marcha Mundial das Mulheres.

Para as mulheres, a herança igualitária já era considerada uma questão de justiça e de direitos humanos antes da revolução. Essa foi uma das justificativas para as restrições, realizadas pela Tunísia, à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, sigla em inglês). Também é uma questão política, ainda que desejem maquiá-la como assunto religioso ou relativo à Sharia, lei muçulmana baseada no Alcorão.

Além disso, é uma questão social que exige reconsiderar a posição da mulher dentro das famílias e, até mesmo, rever as relações que foram reguladas pelo Código do Estatuto Pessoal[1]. Embora preserve o modelo patriarcal da família, esse código continua sendo um texto jurídico positivo; não pode ser santificado, embora seja inegável que suas disposições em relação à herança familiar são deduzidas, até certo ponto, das regras do Alcorão, como a regra “um homem é afortunado pela herança equivalente à de duas mulheres”. O código também enquadra a herança na categoria das transações, e sua jurisprudência se diferencia conforme as idades, locais e tradições em resposta às exigências do tempo e das sociedades.

A revolução tunisiana de 17 de dezembro de 2010 a 14 de janeiro de 2011 foi motivada, principalmente, pela crise na base da economia, pelo fracasso de uma tendência como projeto de desenvolvimento baseada na discriminação geográfica e de gênero, e pela recusa à tirania de uma ditadura fascista que suprimiu liberdades tanto em âmbito público quanto privado. A adesão das mulheres tunisianas nesse movimento revolucionário é uma prova concreta do anseio por liberdade e igualdade, levantando os emblemas da revolução: emprego, emancipação e dignidade nacional.

O feminismo tem se envolvido com o movimento revolucionário levantando a bandeira da igualdade para as mulheres e para os partidos. Expressam, assim, sua crítica à exclusão e marginalização tanto dos partidos rebeldes quanto das mulheres na sociedade.

Após a revolução, conflitos entre as forças progressistas e as forças reacionárias conservadoras se desenvolveram e mudaram os rumos da disputa, que ocultava grande parte das controvérsias, decorrentes dos diferentes projetos de sociedade e de desenvolvimento. A questão da igualdade de gênero se tornou o centro das polarizações e embates políticos. Esse foi um período importante no qual o movimento feminista teve grandes vitória. Dentre as principais, estão derrubar as restrições à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres em 2011; e a luta para incluir, na Constituição, o princípio da igualdade entre os gêneros, os direitos humanos e a proteção das mulheres contra a violência e a discriminação.

O assassinato de dois líderes de esquerda em 2013 foi um dos maiores conflitos vividos pela sociedade tunisiana.

Em 2017, conseguimos a formulação de uma lei abrangente para a eliminação da violência contra as mulheres. Em 2018, um grupo de especialistas e ativistas foi indicado ao chefe de estado no Comitê de Liberdades Individuais e Igualdade para concluir um relatório.

Também foi proposto um projeto de lei para alterar o Código de Estatuto Pessoal em relação à igualdade na herança. Após a saída do ex-presidente Béji Caïd Essebsi e a eleição de um novo presidente em 2019, o caminho foi interrompido. O presidente eleito não adotou o princípio da herança igualitária, mesmo expondo uma abordagem de justiça e igualdade em relação à economia e aos direitos humanos. O movimento feminista e por direitos humanos exigem a herança igualitária como um pré-requisito para alcançar a justiça e a equidade.

A família é um espaço privado que não está sujeito à igualdade entre homens e mulheres. Tanto na esfera pública quanto na privada, a cidadania é negada às mulheres. As organizações da sociedade civil enviaram ao novo presidente uma mensagem para responder às alegações.

A exigência de herança igualitária ainda está em disputa pelas forças conservadoras e pelo movimento progressista. Nós a consideramos o cerne das questões relativas ao desenvolvimento, porque ela estabelece, para as mulheres, um direito ao patrimônio que sempre foi violado.

Quanto às vozes que alegam que essa demanda é menos importante no contexto atual, argumentamos que não há hora para exigir liberdade, dignidade, igualdade, justiça social e justa distribuição da riqueza. Essas são demandas que pertencem a todos os grupos oprimidos, seja nos países de nossa região ou em outras partes do mundo.

A igualdade na herança é uma das formas de distribuição igualitária da riqueza entre mulheres e homens

Chegou a hora de desafiar os covardes que não se envergonham de se alimentar à custa do trabalho das mulheres e nem de impedir seus direitos mais básicos. Chegou a hora de desfrutar de plenos direitos, dignidade e justiça social.

Seguimos unidas: pelo direito à liberdade, igualdade, qualidade de vida, repartindo a riqueza e transformando nossa relação com a terra.


[1] O Código do Estatuto Pessoal foi decretado em 1956 na Tunísia, menos de cinco meses depois da proclamação da independência do poder colonial francês. Instituiu uma série de leis progressistas para a promoção da igualdade entre mulheres e homens em áreas como casamento, divórcio, custódia e herança, e representou uma mudança importante no direito da família e na situação jurídica das mulheres na Tunísia.


Halima Jouini é militante feminista na Tunísia. Integra a Associação Tunisiana das Mulheres Democratas. Este texto foi publicado originalmente no Sairat Journal, o blog regional da Marcha Mundial das Mulheres no Oriente Médio e Norte da África.

Tradução do árabe por Vitória Trombetta
Revisão por Helena Zelic e Aline Scátola

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